quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Alain Kenji Kanai

Prisioneiros do cotidiano: Brasil e Japão
Alain Kenji Kanai[1]

A nossa educação, entendida a concepção de educação da maneira mais ampla possível (cultural, política ou acadêmica), faz com que nos tornemos prisioneiros do cotidiano. Nós somos criados por ela de forma que lembremos os produtos fabricados em massa. Dois compositores, uma delas brasileira e o outro japonês, tratam desse assunto em suas canções, com a finalidade de retratar a sociedade de cada um de seus países, respectivamente, Brasil e Japão: Pitty e Wowaka. Aqui, refletiremos junto com eles sobre a questão colocada a partir de duas canções, uma de cada autor. Comecemos por Pitty:

Admirável Chip Novo

Pane no sistema, alguém me desconfigurou
Aonde estão meus olhos de robô?
Eu não sabia, eu não tinha percebido
Eu sempre achei que era vivo
Parafuso e fluído em lugar de articulação
Até achava que aqui batia um coração
Nada é orgânico, é tudo programado
E eu achando que tinha me libertado...
Mas lá vem eles novamente e eu sei o que vão fazer:
Reinstalar o sistema

Refrão:
Pense, fale, compre, beba
Leia, vote não se esqueça
Use, seja, ouça, diga
Tenha, more, gaste e viva
Não sinhô, sim sinhô, não sinhô, sim sinhô...
           
            Pitty, com sua canção “Admirável chip novo” (2003), critica a educação brasileira dizendo que a sociedade percebe que está virando “robô”, como aparece na letra. O educador sempre consegue re-implantar as ideologias as quais mais convêm para o sistema, uma vez que o professor é agente que deveria educar, mas trabalha como representante do Governo, uma vez que a escola é um dos “Aparelhos Ideológicos do Estado”, segundo Althisser. Mesmo assim na letra, o sujeito quer sair da rotina e do programa para ele traçado. Por isso nega ao seu senhor, resiste, reflete, grita a todos sobre “esquema” sistêmico. Ao mesmo tempo em que o sujeito da canção apresenta esperança ou ideal de mudança, quando pensa conquistar sua humanidade e liberdade, é surpreendido por pessoas que representam o sistema e que voltam a enquadrá-lo socialmente, o que é metaforizado pela expressão “Reinstalar o sistema”. As necessidades e desejos que se seguem aparentemente tão humanos, colocados no imperativo como aparecem na canção, na verdade, surgem como parte da programação sistêmica e colabora para camuflar/alienar a situação, uma vez que aparentam transmitir uma vontade típica do sujeito, mas até suas vontades são programadas.
            Quando escutamos a canção seguidamente, é quase imperceptível onde ela começa e termina, o que transmite uma idéia circular, sem saídas e sempre repetível.
            Segundo a letra, a sociedade não percebe que não vive por vontade própria, mas sim por uma educação quase que dogmática, o que faz com que o sujeito não tenha vontade própria e viva de forma programada ou robótica, como Pitty canta no refrão.
            Mas, o que isso tem a ver com educação? Diretamente ou de maneira institucional, nada. Mas, indiretamente, tudo, pois podemos entender “Admirável Chip Novo” como uma espécie de resposta da educação (cultura) brasileira, uma vez que esta é uma das responsáveis pela vida programada de forma robotizada e repetível na sociedade. E mesmo que a sociedade queira sair dessa rotina pré-estabelecida, muitas vezes, a educação, que deveria instaurar o senso crítico no sujeito, por meio da escola, vista como instituição formal representante do Estado, aliena-o e o enquadra ao atribuir notas e avaliar as ações humanas em série, de maneira quantitativa e por meio de “múltiplas escolhas” sem brechas (logo, sem escolhas) para vozes outras que não aquelas “programadas”.
            Na educação japonesa, a mesma temática aparece. Vejamos a letra de uma das canções compostas por Wowaka[2] traduzida por nós:

Reversive doll (Boneca reversível)[3]

Três anos atrás, atingiram-me
Convidada por uma voz sem voz
Sempre fugindo da música que é tão importante
A linha simples e inútil que
Cansei de esticar e o fim disso
Mordi o som arrogante e joguei fora cuspindo

Durante três segundos, num mundo em que paralisa
O psicológico vai embaraçando,
Dispensando a partida que estava de frente e me fez andar
Muitas vezes foi assim
Fui vendida,
Mesmo zoando de jogar fora
O senso de preço egocêntrico[4]
Fica perseguindo

“Murmurei uma resposta errada
que eu não tenho jeito”
Mesmo dizendo tal coisa
Não vai ter ouvidos para escutar não é

São negócios que já começou. Tudo?
Não tem coisas que perdi
Ah... Já cansei.
O boneco que ficou arrogante
Dança, roda, salta

Para todos os lados!

Refrão:
Só quero dizer que amo
Fiquei enfileirando os maços de som
Agora como que o amor
Se esvazia e some?
“‘Odeio’ tropeçou” estava
Falando.
De acordo com este horário
No três fui correndo
No quarto que não tem nada fiquei imaginando, imaginando

Três anos atrás, atingiram-me
Convidada por uma voz sem voz
Três anos depois com a caneta que dei estive traçando na suas costas
Como que, com um traço simples e sem sentido
Consegui conectar e fiquei pensando
Exibindo a arrogância gananciosa e os caminhos se fecham

Ah... As coisas todas
Guardei no quarto que vai se afundando
Com um cumprimento de costas
Vou enrolando com as palavras a noite que chora[5]

“Agora, a partir daqui por favor,
pode fazer como preferir”
Como ficou?
E daí em diante ficou um pouco desaparecido

Quem é que rodopiou tanto
Disseminando esse sentimento
Mesmo escutando isso
Você não consegue interpretar?

São negócios que já começou. Tudo?
Não tem coisas que perdi
“Aa.. que sufoco.”
Brinco, abandono, recolho, giro e giro.[6]

Refrão:
Só quero dizer que amo
Fiquei enfileirando os maços de som
Como que agora o amor
Se esvazia e some?

“‘Odeio’ tropeçou” estava
Falando.
De acordo com este horário
No três fui correndo
No quarto que não tem nada fiquei imaginando, imaginando

Apenas a palavra “amo”
Quero afundar junto ao som
Assim que se faz o sentimento, só isso[7]
Colocado e diz imprudentemente

Verdade que vai desmoronar o “odeio”
Virei um boneco que só berra
No três fui fugindo

No céu que não tem nada só, é, último.

            A letra “Reversive Doll” versa sobre uma pessoa perseguida pela sociedade e que não consegue ser ela mesma, apesar de muita batalha. No final, ela se revela ao ouvinte como uma boneca.
            O início da canção trata do passado do sujeito e informa que a boneca foi atingida por uma “voz sem voz” que, ao nosso ver, representa a voz da sociedade. Não adianta a tentativa de mudança dessa vida robotizada, pois ela é perseguida até o final do enunciado da canção. O ponto de vista do sujeito jamais é aceito e ele sofre, por querer ter sua voz ouvida, pois há perseguição social todo o tempo.
            Após o primeiro refrão, o sujeito já se encontra cansado de correr atrás dos seus ideais e se rende à educação dogmática vivida e imposta pela sociedade. Por mais que os outros da canção lhe ofereçam a liberdade, trata-se de uma liberdade aparente, logo, sufocante, pois o sujeito fica preso àquele formato que lhe obrigam seguir. Nos refrões, fica mais visível o desejo do sujeito da canção: ele quer apenas declarar o seu amor ao sujeito amado, mas, numa sociedade preconceituosa, que impõe seus ideais e impede a pessoa de se expressar de forma livre, sem remorso ou vergonha, o que lhe resta é imaginar. No final, como dissemos, o sujeito se revela uma marionete e apenas grita: “vou destruir o que odeio”, o que retrata o resultado de uma educação repressora imposta pela sociedade.
            A educação atual desenvolvida na sociedade, não apenas na escola, mas cotidianamente (com os pais, na igreja, em cursos, grupos de amigos, etc.), seja no Japão ou no Brasil, transforma o povo em robô ou boneco. A idéia de disciplina é o grande problema da questão, pois disciplinar significa domesticar e não educar. Com a ênfase no que Foucault chama de “docilização dos corpos selvagens”, a educação dogmática e opressora transforma os sujeitos sociais em prisioneiros do cotidiano.
            Todavia, não é apenas responsabilidade da sociedade a educação dos sujeitos, mas dos próprios sujeitos, também responsáveis pelas situações em que se encontra a sociedade e por aquelas em que se encontram os sujeitos das canções em seus desfechos. Em ambos os casos, os sujeitos se rendem à opressão, sem lutar até o fim, aceitando a disciplina imposta pela sociedade, sem resistência. E essa resposta conformada de seus comportamentos é que justifica ou, melhor, mantém a sociedade como está. Como diz Bakhtin: “Nada de citar a ‘inspiração’ para justificar a irresponsabilidade. A inspiração que ignora a vida e é ela mesma ignorada pela vida não é inspiração (...)”. O sujeito não pode justificar o seu rendimento à opressão, pois a escolha final foi do próprio sujeito, sua resposta. Assim, fica o questionamento: a educação imposta é uma educação responsiva? Se todo ato é dialógico, como nos ensina o Círculo russo, é porque todo enunciado é responsivo. E se todo enunciado é responsivo é porque a comunicação verbal é ativa e os sujeitos (eu-outro), mesmo que aparentemente não respondam, emitem sempre uma resposta. E se não há álibi da existência, como afirma o filósofo russo, a aceitação do sujeito à essa ordem educacional, social, política, econômica e cultural reflete e refrata, de alguma maneira, alguma(s) das camadas sociais vigentes e garantem a hegemonia hierárquica ideológica e a alienação imperante. Onde se encontra a educação? Poderíamos chamá-la de disciplinarização.

Bibliografia:
BAKHTIN, M. “Arte e responsabilidade”. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2007
BAKHTIN, M. M. / VOLOCHINOV. Discurso na vida discurso na arte. Versão acadêmica traduzida por Carlos Alberto Faraco.
PITTY. “Admirável Chip Novo”. Admirável Chip Novo. São Paulo: Deckdisk, 2003. Disponível em http://www.pitty.com.br/#page=disco. Acesso em 08 de setembro de 2011 às 04h50.
TINOCO, Robson Coelho; ALEXANDRIA, Marília de. “Poemas Música e Dialogias: novos processos melopoéticos”. Mimeo sem referência.
WOWAKA. “Reversive Doll”. Seven Girls’ Discord. Tókio: Tora no ana, 2010. Disponível em http://hinichijourecords.com/release/sevengirls.html Acesso em 08 de setembro às 04h55.


[1] Graduando de Letras; UNESP – Assis; GED; akmilkcandy@hotmail.co.jp
[2] Wowaka pode ser visto como um representante de uma tendência musical típica e muito ouvida no Japão: Vocaloid. Esse tipo de canção é composta (letra e música) por um sujeito que a grava via aparelhagem tecnológica. Assim, um único sujeito pode tocar todos os instrumentos, pois os grava um a um e, depois, ajusta o som. O mais interessante, porém, é que este sujeito não canta, ele utiliza o programa de computador Vocaloid2, da Crypton, com a voz de Hatsune Miku (personagem imagem da voz) como cantora. Assim, a cantora é uma animação. Milhares de pessoas vão a shows desse tipo de canção e, neles, assistem a um ânime que canta e dança. Seria esse tipo de produção, execução e circulação (via internet) uma fuga da “realidade” opressora da cultura japonesa e, por isso, essa temática de uma educação opressora aparece aqui na canção retratada? Seja como for, real e virtual se misturam na contemporaneidade, não apenas no Japão, haja vista a canção de Pitty, de 2003 tratar da mesma temática e Gilberto Gil, nos anos 70, já ter trazido à tona tal questão – na canção “Cérebro Eletrônico”.
[3] Título original “リバシブルドール
[4] Na letra original, os versos 12 e 13 estão invertidos. Como o japonês possui sua estrutura frasal praticamente contrária à nossa, para melhor compreensão do sentido, traduzimos os versos de maneira invertida (12 é, no original, 13 e vice-versa).
[5] Na canção, quando este verso é cantado, há uma expressão que lembra o  anoitecer.
[6]くるくる” ou “Kuru-kuru” é a onomatopéia do som do giro em japonês.
[7] A expressão “Só isso” é cantada em tom irônico. Tom este que não se limita ao ato sentimental.

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