quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Ana Maria de Campos, Corinta Maria Grisolia Geraldi

A vida vem primeiro
Ana Maria de Campos[1]
UNICAMP – FE - GEPEC
Corinta Maria Grisolia Geraldi[2]
UNICAMP – FE – GEPEC

Houve um tempo em que a terra gemia
E um povo tremia de tanto apanhar
Tanta chibata no lombo que muitos morriam
No mesmo lugar [...]
Liberdade além do horizonte, morreu tanta
Gente de tanto sonhar. Foi Zumbi!
A Princesa Isabel assinou um papel
Dia 13!
Itamar Assumpção

“Esta é uma história verdadeira. A minha história de vida.
Eu nasci em Minas Gerais no lugar chamado Francisco Badaró. Minha mãe conta que quando eu nasci não deu tempo para chamar uma parteira e minha mãe teve eu sozinha. Ela disse que eu parecia uma rosa e todos gostavam muito de mim, por que era a primeira menina na família. Meus pais moravam num sítio muito grande era uma espécie de fazenda e dali tirava todo sustento da família. Naquele tempo não tinha escola na redondeza perto do sítio, só na cidadezinha. Eu tinha muita vontade de aprender a ler, não havia quem a ensinasse. Foi daí que eu me ofereci para trabalhar com uma senhora na cidade de Teófilo Otoni, mais ela só passou o meu nome na escola por que quando tinha que encerar a casa eu não podia ir a escola. A professora nem se importava com as minhas faltas por que ela sabia que, eu era uma menina escrava naquela casa. Enfim eu tinha 12 anos quando, foi ficar com essa família fiquei até aos 14 anos.
Essa família mudou pra outra cidade, e me levou junto com eles, mudamos para Belo Horizonte ela não quis mais me colocar na escola.
Eu tinha muita vontade de estudar
Um dia uma senhora vizinha me viu lavando a calçada da casa descalça, ela ficou muito triste e me perguntou se eu tinha um pagamento eu disse não ela me propôs ir para a casa dela.
Ela disse que me punha numa escola. Então eu comecei a pensar naquela ideia. Eu disse para essa senhora que gostaria de ir para um convento de freiras assim eu poderia aprender a ler e escrever. Então essa senhora me disse que eu tinha que escrever para minha mãe e que ela mesma escrevia para mim eu aceitei a ideia dela. Havia uma nova esperança para mim.
Eu pensava só indo para um convento, assim eu poderia aprender ler e escrever. Mais eu tinha medo de não poder ver mais a minha família eu tinha muitas saudades da minha mãe. Então tive uma ideia vou falar com D. Glorinha que eu quero ir embora para casa. Ela não gostou, disse que não podia me levar embora.
Eu comecei a chorar e ela dava côco na minha cabeça foi dai que lembrei de um fato que tinha acontecido na família dela que uma senhora tinha me contado.
Os pais dela tinha adotado um menino. Essa senhora que me contou era cozinheira dessa família essa senhora disse que um dia o menino desobedeceu eles então disse, essa cozinheira a mãe da D. Glorinha pegou um pedaço de sabão de soda e enfiou na boca do menino fez ele comer tudo esse sabão e o menino passou muito mal e acabou morrendo e foi dai que eu usei de chantagem com a D. Glorinha falei que eu sabia dessa história do menino.
Ela ficou apavorada com que eu tinha dito, e mais que depressa ela me mandou para minha casa. Foi um irmão dela que me levou, e ela escreveu uma carta para minha mãe dizendo que eu estava muito bem e que eu queria ir embora eu fiquei foi feliz indo embora para junto da minha família. O que mais me marcou nessa história foi nas poucas vezes que fui nas aulas eu nem sequer podia levar uma banana para o lanche pois ela não deixava”.

Quando conheci Vitalina[3], no ano de 2005, em um desses encontros inesperados que a vida nos proporciona, estava com mais de sessenta anos de idade. Contou-me que havia voltado a estudar em 2004, no Centro Cultural Poveda[4].
Nossas vidas se aproximaram porque uma das educadoras do Centro Cultural Poveda comentou comigo acerca de sua participação nas aulas de alfabetização de adultos. No ano de 2003 o Centro Poveda iniciou parceria com a Prefeitura Municipal de Campinas criando uma sala de alfabetização de adultos vinculada ao Projeto LETRAVIVA[5]. Fui uma das pessoas responsáveis pela Coordenação do LETRAVIVA, juntamente com Dulcinéia de Fátima Ferreira Pereira, no tempo em que a Secretária Municipal de Educação era a Professora Corinta Maria Grisolia Geraldi.
Nesse projeto a sociedade civil campineira foi convidada a participar, colaborando de diversas maneiras. O Centro Cultural Poveda, como muitas outras instituições, tornou-se parceiro, criando uma classe de alfabetização de jovens e adultos e por esse motivo passei a me encontrar periodicamente com os educadores e educadoras, visto que uma das minhas atribuições era a da formação continuada dos participantes do projeto. A responsável pelo trabalho no Centro Poveda era Guadalupe de la Concha, com quem estabeleci laços fraternos de amizade, o que favoreceu nosso trabalho e a troca de informações sobre os avanços e dificuldades dos educandos e educadores. Trilhando esse caminho encontrei-me com Vitalina.
Por me interessar pelo seu aprendizado da leitura e da escrita começamos a dialogar sobre seus estudos, contudo essa nossa aproximação se deu apenas em 2005 ou 2006, época em que eu já não estava mais na Coordenação do LETRAVIVA, mas encontrava com Vitalina aos domingos, após o culto dominical, pois frequentamos a mesma instituição religiosa de tradição protestante. Em um desses encontros ela entregou-me o depoimento que está no início desse texto. Foi escrito em 12 de outubro de 2010, a lápis, em letra manual, em folhas que foram destacadas de um caderno.
Depois de muito tempo de nossos primeiros contatos contei a ela que havia sido uma das pessoas responsáveis pela Coordenação do LETRAVIVA, o que a deixou muito contente e emocionada! Após alguns dias da nossa conversa, entregou-me uma carta expressando a sua surpresa:

Campinas, 6 de Julho de 2009.
Eu Vitalina Vieira dos Santos estive na casa da irmã Aninha.
Fiquei muito feliz por passar uma tarde com ela, fiquei ainda mais feliz porque foi através dela que eu estou estudando no Centro Cultural Poveda. Sou muito grata por essas senhoras voluntárias que se dedicam a me ensinar, e ensinar também todas aquelas que passam por lá. Não só a Aninha mas também as outras senhoras que também nos ensinam e fazem nós se sentir cidadãs com os mesmos direitos de estudar e saber quais são os nossos direitos dentro da sociedade. Depois que comecei estudar fiquei mais segura para se comunicar com outras pessoas. Tenho orgulho de falar para as pessoas que estou começando estudar. No Centro Cultural Poveda as senhoras não somente ensinam a escrita e a leitura mas também trabalham com a nossa mente como se fosse psicólogas.
Mas também não somente estudar com elas no Centro Cultural e sim se esforçar em casa, para que elas sinta que os trabalhos delas não estão sendo em vão. Lembrando também que temos uma professora de artes plásticas que está nos ensinando a 1ª cultura brasileira. Finalizando quero agradecer todas professoras com um enorme carinho que tenho por todas elas muito obrigado por tudo.
Assinado, Vitalina.

Recebi essa carta como um presente que não poderia deixar de partilhar! Essa pessoa maravilhosa, marcada pela violência de uma sociedade excludente, tem dentro de si um poço de generosidade para repartir. Só de pensar nos percursos escolares tão diversos que nós duas vivemos ao longo de nossas vidas, sinto uma imensa responsabilidade.
A história vivida, escrita com lágrimas e incontornavelmente marcada na pele, denuncia que o papel assinado pela Princesa Isabel não garantiu a liberdade contra a escravização da protagonista e nem de muitos outros milhões de brasileiros, como todos sabemos. Tal qual Vitalina muitas pessoas ainda lutam insistentemente pela liberdade de viver na aurora desse século XXI! Como cantou João Nogueira,

É preciso navegar
Pra poder se esclarecer
Do lado de lá do mar
É preciso ver pra crer
Gente que lutou para se libertar
Ver no amanhã
Novo sol chegar
Ter que trabalhar, reconstruir
Bom futuro há de vir

A crueza da escravização da criança relatada por meio de um olhar retrospectivo e memorialístico da senhora idosa de hoje  mostra que a luta em prol da própria libertação fortaleceu seu espírito, mas não encharcou de tristeza seus sonhos a ponto de imobilizar a construção do presente e do futuro.“Ter que trabalhar, reconstruir, bom futuro há de vir...”. Conforme apresenta Wanderley Geraldi (2003, p. 48) em estudo sobre Paulo Freire e Bakhtin, em citação retirada de ‘Autor e Heroi’: “é somente no futuro que se situa o centro de gravidade efetivo de minha própria autodeterminação”.
Assim, a vida continua sendo de luta para Vitalina. Quem sabe seu nome não seja uma incrível profecia para sua vitalidade e gana! “Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre”! Quase chegamos a ‘ouvir’ a voz de Elis Regina ou Milton Nascimento cantando... E a luta de hoje é pela garantia do direito ao estudo. Vitalina mobiliza suas energias criativas nas aulas do ciclo inicial do ensino fundamental, demonstrando um poder de superação impressionante para demandar da professora que planeje aulas compatíveis com as suas necessidades formativas.
Quando ouço suas histórias sou tomada por uma emoção misturada à perplexidade. Saber que em pleno século XX, uma menina, ainda no início da adolescência, teve que forjar com sua inteligência e perspicácia sua própria alforria, é no mínimo, constrangedor, porém, como alerta Geraldi (2003, p. 41): “Na seriedade superficial e cotidiana de uma imprensa que comenta factos e prega o discurso hegemónico e com pretensões de ser único, os discursos que apontam as desgraças, as misérias e os sofrimentos são ironizados”.
E para intensificar o drama, por conta da ideologia vigente na sociedade capitalista, ela acredita que seu artifício para conseguir se ver livre da escravidão é chantagem! Dialogamos sobre esse assunto, mas essa não é uma questão que se supere com facilidade. Um dos maiores danos para a autoimagem das pessoas é a introjeção e naturalização da inferioridade, por isso, para nós educadoras e educadores, uma das questões fundamentais na relação educativa é lançar luz sobre este processo a fim de colaborar na recuperação da humanidade roubada, como enfatizou Freire (2000, p. 84): “É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidade por sua situação”.
Como sujeito de sua própria história e da história de seu grupo, Vitalina está reconfigurando a sua vida e a vida na cidade. Abrindo brechas onde não havia, continua criando, com muita persistência, o seu lugar e tomando coragem para dizer a sua palavra:
En un régimen de dominación de conciencias, en que los que más trabajan menos pueden decir su palabra, y en que inmensas multitudes ni siquiera tienen condiciones para trabajar, los dominadores mantienen el monopolio de la palabra, con que mistifican, masifican y dominan. En esa situación, los dominados, para decir su palabra, tienen que luchar para tomarla. Aprender a tomarla de los que la retienen y niegan a los demás, es un difícil, pero imprescindible aprendizaje: es “la pedagogía del oprimido” (FIORI, 1973, p. 26, prefacio à edición argentina de Pedagogía del Oprimido).   

Como educadora faço esse destaque porque tenho observado muitos adultos que tiveram os seus direitos educacionais subtraídos, ao chegarem às salas de Educação de Jovens e Adultos – EJA – permanecerem, muitas vezes, em posição de subordinação em relação ao currículo prescrito e preelaborado nas instituições de ensino, também por conta da vida de privação de direitos. Vitalina, ao contrário, expõe sua palavra, demandando da professora o estudo que a habilite para atuar na sociedade da qual participa. Essa atitude propositiva e de partilha da palavra experimentada no encontro com a educadora e com seus colegas de estudo é fundamental para que se viva uma educação responsável, dialógica, acolhedora dos educandos como seres em relação, por isso mesmo produtores dos sentidos para o ato educativo.
Somos responsáveis pela história que criamos. “Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo” (FREIRE, 2003, p. 53).  Partilhando as memórias singulares de Vitalina e as suas contrapalavras, ressignificando seu percurso e suas lutas, acredito que podemos “tomar o futuro como centro de gravidade das decisões do presente” (GERALDI, 2003, p. 47) e tecer novas possibilidades para enfrentar as questões relativas à desigualdade social e a desumanização cotidiana vivida também nos processos educativos.
            Por fim, gostaria de salientar que Vitalina trouxe à tona uma história silenciada, bem como a sua batalha atual por uma escola que dignifique a pessoa humana. Por certo pode nos estimular a sonhar e trabalhar por uma educação humanizadora, dialogal, para todas as pessoas desse país, pois a vida vem primeiro como cantou a poeta:
Vou na vida por inteiro
Vou enquanto ela durar
Sei que a vida vem primeiro
É a vida que eu tenho pra levar

Referências
ASSUMPÇÃO, Itamar. Batuque. Intérprete: Virgínia Rosa. In: ROSA, V. Batuque. São Paulo: Movieplay do Brasil, 1997. 1 CD. Faixa 04.
FIORI, Ernani Maria. Aprender a decir su palabra. In: FREIRE, P. Pedagogía del oprimido. 8. ed. Buenos Aires: Siglo XXI: Tierra Nueva, 1973, p.9-26.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação. São Paulo: UNESP, 2000.
_______. Pedagogia da autonomia.  27. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
GERALDI, João Wanderley. Paulo Freire e Mikhail Bakhtin: o encontro que não houve. In: Diálogos através de Paulo Freire. Col. “Querer Saber” nº 3. Disponível em: <http://www.ipfp.pt/public.html>. Acesso em: 10 set. 2011.
NASCIMENTO, Milton; BRANT, Fernando. Maria, Maria. Intérprete: Milton Nascimento. In: NASCIMENTO, M. Clube da Esquina II. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1978. 2 discos sonoros. Disco 2. Lado B, faixa 08.
NOGUEIRA, João; VESPAR, Geraldo. Lá de Angola. Intérprete: João Nogueira. In: NOGUEIRA, J. Boca do Povo. Rio de Janeiro: Universal, 1980. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 03.
ROSA, Virgínia; SWAMI JR. Vou na vida. Intérprete: Virgínia Rosa. In: ROSA, V. Batuque. São Paulo: Movieplay do Brasil, 1997. 1 CD. Faixa 02.


[1] Educadora, Doutoranda em Educação pelo GEPEC – UNICAMP.
[2] Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Educação - UNICAMP – Fundadora do GEPEC – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada.
[3] Estudante do Ensino Fundamental, trabalhadora doméstica aposentada, diaconisa da Primeira Igreja Presbiteriana Independente de Campinas, São Paulo.
[4] O Centro Cultural Poveda é ligado à Instituição Teresiana do Brasil. Fundado em 1954, está localizado à Rua Dr. Quirino, nº 1733, no centro de Campinas.
[5] O Projeto LETRAVIVA foi implementado pela Secretaria Municipal de Educação em parceria com o MEC e a sociedade civil campineira através do Programa Brasil Alfabetizado no ano de 2003, durante a gestão do Partido dos Trabalhadores. Em Campinas adotou o nome de Projeto LETRAVIVA.

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