Das palavras minhas à palavra outra: escritas memorialísticas de professores em processo de formação continuada
Maria Francisca Mendes
Universidade Federal Fluminense – UFF
Nos últimos anos tem sido destacado o valor formativo de se refletir sobre a experiência profissional, característica de uma formação em contexto de trabalho. Essa observação, que busca compreender e conceitualizar a realidade, surge na relação entre sujeitos implicados com o saberfazer, resultando na resolução de impasses na sua prática cotidiana. Confere-se, desse modo, um caráter cíclico à aprendizagem na medida em que a observação e a reflexão das experiências vividas levam à busca de respostas para as inquietudes.
O objetivo deste texto é partilhar das reflexões suscitadas através da escrita de memoriais desses professores na medida em que as narrativas encontraram eco em minhas próprias experiências de professora e pesquisadora que escreve sobre seu cotidiano educativo e que entende a escrita enquanto constitutiva do sujeito. Nesse sentido, a concepção de uma investigaçãoformação[1]leva necessariamente em conta a intencionalidade de problematizar as relações do sujeito com sua prática e com os outros, através de um trabalho autoreflexivo das aprendizagens e conhecimentos conquistados e de sua participação nesse processo.
Um outro aspecto concernente à investigaçãoformação relaciona-se diretamente ao lugar ocupado pelos integrantes: tanto pesquisador quanto professores pesquisados são sujeitos participantes na elaboração dos saberes, daí seu caráter abrangente. Distanciados da concepção de objetos da pesquisa, os professores em exercício são considerados atores e autores no processo de investigação, problematização e escritura da realidade educativa.
A prática educativa, as relações interpessoais, os dilemas e contradições subjacentes à ação pedagógica revelam experiências permeadas pela dinâmica relacional coletiva. Identidade e subjetividade encontram-se entrelaçadas afirmando o sujeito um ser de cultura e de histórias inscrito em suas narrativas: escritas que trazem, entre outros achados, as infâncias do professor-criança na relação com suas crianças da creche. Com base nos pressupostos da teoria enunciativa da linguagem, de Bakhtin, destaco a discursividade na relação com memoriais e histórias de vida dos professores, na fundamentação teórico-prática e nas reflexões críticas de uma práxis tão produtiva quanto contraditória.
Narrativa e reflexão constituem, assim, os eixos deste estudo evidenciando o caráter potencializador das histórias que emergem de sujeitos na busca por produzir novos significados para a docência. Escrever e socializar saberes produzidos na prática cotidiana significa legitimar profissionais e autorias.Essa é uma trajetória onde o comprometimento com a formação intelectual é exigência sem-par do processo de pesquisa. Interessa-me, neste trabalho, perseguir um caminhar semelhante ao de Pérez (2002) e Josso (2010), ou seja, acentuando a formação como projeto, produção de nossa vida e elaboração de sentidos.
Agora, não são só palavras minhas a se ouvir, ainda que permeadas de palavras outras. Elas passam a dialogar, a buscar caminhos, a se aproximar da palavra do outro: um outro que “não é somente o outro em relação a você, mas é também outro você, o outro de cada um” (PONZIO, 2010, p. 10). E, como estamos falando de escrita de memoriais, são múltiplas as razões da escolha do que se contar/narrar. A dinâmica do vivido, expressa nas atitudes e sentimentos de cada tempo e lugar, quando registrada, evoca o caráter da permanência.
Na trajetória de um professor, dois saberes se tornam presentes: ler e escrever. A leitura e a escrita possibilitam descortinar conhecimentos, promover aprendizagens e expressar ideias e sentimentos. Através da leitura nos deparamos com o universo letrado; enquanto que a escrita nos eleva à condição de autores. Essa dupla apropriação faz com que nos sintamos pertencentes a um mundo repleto de sentidos, compartilhando experiências que, quando reveladas, deixam de ser individuais para se transformarem em coletivas. Esse é um encontro que se dá conosco e com o outro. Um encontro nem sempre desprovido de riscos.
A partir da escrita de memoriais de formação, as professoras das creches buscam articular questões pertinentes à prática cotidiana a referenciais teórico-metodológicos presentes em seus estudos. A produção das narrativas implica num processo reflexivo sobre o saberfazer incorporado ao próprio processo de formação e amplia as possibilidades de entendimento das ações educativas. Essas vozes, quando socializadas nos encontros do Grupo de Estudos[2], ganham mais significações a partir da multiplicidade de interpretações.
Nas dúvidas e incertezas que se encontram – ou se confrontam – o sujeito se vê desafiado a compreender e produzir novas formas de serestar em permanente relação com outros sujeitos. Analisar a própria narrativa diante da narrativa do outro promove a descoberta de uma coletividade em sua própria singularidade e redimensiona as reflexões acerca do até então instituído.Compreendo, assim como Pérez, que
O ato de narrar sua própria história, mais do que contar uma história sobre si, é um ato de conhecimento. Através da narrativa, o sujeito constrói uma cadeia de significantes que estrutura formas cognitivas de representar o mundo e compartilhar a realidade social, ao mesmo tempo em que engendra sonhos e desejos, mitos e utopias (2002, p. 55).
Reconhecer que há sempre um destinatário pensado nos enunciados, mesmo que, por vezes, possa não diferenciá-lo, já exerce influências sobre as palavras que tenho a dizer/escrever afetando, dessa forma, composição e estilo da enunciação. Assim, “ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidade constitutiva do enunciado, sem a qual não há, e não poderia haver, enunciado” (BAKHTIN, 2000, p. 325) onde percebemos que “o enunciado está voltado não só para o seu objeto, mas também para o discurso do outro acerca desse objeto” (idem, p. 320).
Memoriais de formação, assim como diários, biografias e autobiografias situam-se no contexto dos documentos pessoais contribuindo para novos enfoques qualitativos no conjunto das ciências sociais. Narrar experiências e refletir sobre elas representam a possibilidade de socializar saberes e inquietudes e buscar, a partir das trocas com seus pares, ressignificar, compreender e superar as próprias indagações. Outras, por certo, surgirão. Esse é um percurso que não cessa.
Não há uma única forma de se expressar, assim como são múltiplas as possibilidades de se registrar o vivido. Os registros que se constroem na tessitura das experiências cotidianas contribuem significativamente na formação profissional e nas marcas que revelam o constituir-se humano de um sujeito que é histórico e social. Professores têm histórias: muitos não as revelam; alguns as reconhecem apenas; outros, além de reconhecê-las as tornam coletivas pois entendem que é na coletividade que essas histórias são estruturadas.
A análise dos discursos contidos nos memoriais de formação exige flexibilidade no sentido de se ouvir as palavras do outro, as palavras alheias. Entender que as ideias encontram-se infiltradas por outras tantas enunciações e entonações, afetará a elaboração e a complexidade do próprio discurso pois, de acordo com a argumentação de Bakhtin (1998, p. 87), “o objeto revela antes de tudo justamente esta multiformidade social plurilíngue dos seus nomes, definições, avaliações”.
De acordo com Bakhtin (1998), a existência de uma única interpretação acerca de um objeto não é possível, principalmente quando se entende a palavra como viva. Longe de situarem-se num contexto monológico, as enunciações encontram eco em outras enunciações, que passam a interagir entre si em um contínuo processo de centralização e descentralização das palavras de uma vivência, de um dia, de um momento.
A palavra de um texto já foi uma palavra falada antes. Ela surge da memória, do presenciado e vivido, de outros tempos, lugares, autores. Mas, essa mesma palavra se renova através de minha própria voz, não somente porque o contexto da enunciação é outro, como também novos sentidos a ele são configurados. Palavras estas situadas no interior de uma linguagem que se manifesta sob a perspectiva dialógica e polifônica. Tento, portanto, compreendê-las de forma ativa e responsiva onde “a compreensão responsiva nada mais é senão a fase inicial e preparatória para uma resposta (seja qual for a forma de sua realização)” (BAKHTIN, 2000, p. 291).
Os memoriais carregam enunciados vivos com os quais preciso interagir concordando ou discordando, completando, adaptando, compreendendo seus discursos, através de uma atitude responsiva ativa, na medida em que “toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor” (BAKHTIN, 2000, p. 290).
E é no ato de apropriar-se da palavra que se funda a questão deste texto. A intenção agora é pensar os enunciados à luz dos sujeitos da linguagem transcrita nos memoriais de formação. Sejam palavras interiormente persuasivas, sejam autoritárias (BAKHTIN, 1998) – como identificá-las nessa trama discursiva? – escritas ou lidas, faladas ou silenciadas são, todas, palavras. Antes soltas, sem acento, desprovidas de intenção, adquirem forma e passam a povoar histórias e reflexões vivas, dialógicas e autorais.
As experiências inscritas nas narrativas dos memoriais se entrecruzam, dirigem-se a alguém e recebem deste uma compreensão responsiva ativa, ou seja, são discursos que ocorrem na relação imediata com outros discursos, na corrente de uma comunicação ininterrupta e contextualizada. Bakhtin (2000, p. 357 – grifos do autor) ressalta que “a palavra quer ser ouvida, compreendida, respondida e quer, por sua vez, responder à resposta, e assim ad infinitum. Ela entra num diálogo em que o sentido não tem fim (...)”.
Agora, estas palavras ganham novos horizontes em busca das réplicas e contrapalavras de interlocutores e destinatários com os quais passo a dividir um caminhar. O sentido deste texto resume-se a esse encontro. Larrosa (2003) aprofundameuentendimento:
Para que las palabras duren diciendo cada vez cosas distintas, para que una eternidad sin consuelo abra el intervalo entre cada uno de sus pasos, para que el devenir de lo que es lo mismo sea, en su vuelta a comenzar, de una riqueza infinita, para que el porvenir sea leído como lo que nunca fué escrito... hay que dar las palabras que hemos recibido (p. 117).
O desafio está em se efetivar uma prática dialógica na qual a respondibilidade exigida pelas palavras possa conjugar escritas e experiências vividas resultando em um convite à autoria.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
______________. Questões de literatura e de estética. São Paulo: Hucitec, 1998. ______________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981.
JOSSO, Marie-Christine. Caminhar para si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.
LARROSA, Jorge. Dar a ler... quizá – Notas para uma dialógica de latransmisión. In: YUNES, Eliana & OSWALD, Maria Luiza (Orgs.). A experiência da leitura. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal. Vozes, palavras, textos: as narrativas autobiográficas na formação de professoras-alfabetizadoras. Tese de Doutoramento. Universidade de São Paulo. Faculdade de Educação, 2002.
PONZIO, Augusto. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
[1]Josso (2010) chama de Pesquisa-formação uma estratégia de pesquisa da qual participam tanto o pesquisador quanto os sujeitos pesquisados a partir do entendimento do processo de pesquisa como inserido em um processo de formação do qual todos fazemos parte. Minha fundamentação parte desse entendimento, contudo procuro ir mais além. Quando falo de investigaçãoformação trata-se de uma ação intencional que não separa a investigação da formação.
[2] Em nossos encontros do Grupo de Estudos discutimos questões, esclarecemos dúvidas e nos abrimos a novas interrogações. A intenção é aprofundar as reflexões sobre o cotidiano da creche como professores – e professores de crianças – através de um olhar investigativo assumindo uma postura crítica diante do fazer. Os processos reflexivos acontecem tanto oralmente quanto por escrito através de memoriais.
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