quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Pamela Aparecida Cassão

Professores em diálogo: experiência e (re)significação.
Pamela Aparecida Cassão 
cassaopa@gmail.com. (Univ. Estadual Paulista – Campus de Rio Claro).

Introdução
Neste trabalho narro a experiência de trabalhar com entrevistas coletivas (KRAMER e SOUZA, 2003) na coleta de dados de minha pesquisa de mestrado intitulada “Primeiros anos de prática docente: experiência, memória e formação na constituição do sujeito professor”. A pesquisa trata dos primeiros anos da carreira docente, problematiza de que modo esta fase marca a carreira do professor, e tem como foco principal a busca pela identificação das dimensões formativas (organizacionais, curriculares, didáticas, pessoais e profissionais) presentes nesse processo. O tema desta pesquisa vem ao encontro de minha constituição profissional, pois sou professora iniciante e, como tal, sinto a necessidade de encontrar-me com outras vozes que falam sobre o início da docência, suas dificuldades e conquistas. Para a realização da pesquisa, constitui um grupo do qual particiapam  dez professores iniciantes. Este grupo recebeu o nome de GTED (Grupo de Troca de Experiências Docentes) e tem como finalidade criar um espaço para a troca de experiências, para o diálogo e para a reflexão coletiva sobre o dilemas, as angustias, os sucessos e os insucessos da carreira de cada um dos professores participantes. Nesse espaço atuo como coordenadora do grupo de professores e também como professora iniciante que relata suas experiências no início da profissão. Tal movimento me permite desmistificar um pouco o “lugar do pesquisador” dentro do grupo, como aquele que apenas ouve, registra e coordena.
Kramer e Souza, (2003) utilizam-se de uma perpectiva bakhtiniana, compartilham a experiência das entrevistas coletivas na realização da pesquisa "Formação de Profissionais da Educação Infantil no Estado do Rio de Janeiro".  Segundo elas, as entrevistas coletivas possuem um carater interativo, o que contribui muito na relação entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados, como também na relação dos sujeitos entre si. Elas consideram que um dos objetivos desta modalidade de entrevista é  “estimular as pessoas a tomarem consciência de sua situação e condição e a pensarem criticamente sobre elas” (p. 66). Este é o ponto que destaco como marca de minha experiência com as entrevistas coletivas no GTED: a tomada de consciência em relação a condição de professor iniciante e a (re)signigicação que se dá no encontro das experiências dos professores participantes.
Indentifico na escrita de Kramer e Souza (2003), o sentido de uma prosposta que considero essencial para a realização de uma pesquisa nas ciências humanas: a compreensão de que os sujeitos de pesquisa são humanos e por isso possuem histórias de vida. Histórias que eles gostam e querem compartilhar. As mesmas autoras falam da percepção de pesquisar pessoas que se reconstituem como sujeitos e que “a compreensão implica não só a identificação da linguagem formal e dos sinais normativos da língua, mas também os subtextos, as intenções que não se encontram explicitadas” (p. 58).
Como já referido, as autoras trabalham com um aporte teórico fundamentado nas contribuições de Mikhail Bakhtin, e consideram o seu conceito de consciência como algo dialógico e que se constitui a partir da linguagem. Aqui não pretendo aprofundar-me nos conceitos gerais desse autor, pois acredito que esta tarefa exige um olhar mais aprofundado de suas obras. Atenho-me a compreender a dimensão da consciência individual e da consciência coletiva nas discussões do GTED, tendo como pano de fundo as reflexões de Kramer e Souza (2003) e Bakhtin (1997, 2006).

As entrevistas coletivas
Compartilho a minha experiência com as entrevistas coletivas (KRAMER e SOUZA, 2003) no GTED com o intuito de identificar os significados que esta modalidade constitui para a minha pesquisa, com o olhar voltado para a consciência do eu individual e coletivo na troca de experiências que esse espaço de pesquisa e de inter-relações pode possibilitar. A escolha desta modalidade de entrevista partiu da vontade de se constituir no GTED um espaço dialógico e inter-relacional. Kramer e Souza (2003) descrevem sua experiência com as entrevistas coletivas e afirmam:
Durante as entrevistas coletivas, o diálogo, a narrativa da experiência e a exposição de idéias divergentes ocorrem com intensidade muito maior, na medida em que professores podem falar e também escutar uns aos outros. Além disso, como não só o pesquisador detém autoridade para fazer perguntas ou comentários sobre a fala dos entrevistados, a influência do poder e da posição hierárquica parecem diminuir; os problemas são apresentados com suavidade e tensão, o conhecimento é compartilhado e confrontado, a diversidade é percebida face a face (p. 64).
Encontro na descrição da modalidade explanada por Kramer e Souza (2003) os caminhos ligados ao que eu penso para o GTED enquanto espaço disparador de sentidos. Um espaço no qual sujeitos pesquisados e sujeito pesquisador possam dialogar no mesmo nível, ainda que minha figura represente (para os professores sujeitos da pesquisa) o status da pesquisadora. Necessitava de uma modalidade de entrevista que proporcionasse a diminuição da relação hierárquica existente, pois como já dito também sou uma professora iniciante e também compartilho as minhas experiências no grupo. Desse modo, a abertura para os relatos acontecem de maneira mais dinâmica e natural.
Ao todo serão realizados sete encontros, todos estruturados como entrevistas coletivas. Cada encontro traz uma questão disparadora de um tema pertinente no contexto das experiências de um professor principiante. As seguintes questões estão no roteiro de trabalho do grupo: Como lidar com os adultos do ambiente escolar?; Como vejo a escola onde trabalho?; Sala de aula: minha, sua, deles ou nossa?; Alunos: meus, seus, deles ou nossos?; Quando ensino o que estou deixando de ensinar?; Que marcas ficam e/ou ficaram em mim do meu primeiro ano como professor (a)?; Que professor eu fui em meu primeiro ano de prática docente?;
A partir destas questões, os professores têm espaço para falar sobre suas sensações, suas vivências, dizer o que pensam e o que desconhecem sobre o assunto. Kramer e Souza (2003) falam justamente do diálogo como instrumento base das entrevistas coletivas, pois com o diálogo surgem os problemas e tensões, mas há a solidariedade, o reconhecimento da condição do outro e consequentemente a tomada de consciência de si. Segundo elas:
Parece que as condições de produção desses discursos — além de diferentes do ponto de vista do lugar em que estavam os interlocutores — foram muito diferentes por conta da situação dialógica e pelo caráter coletivo das entrevistas que gerou a possibilidade de que as histórias de formação contadas ganhassem novos sentidos tanto para quem falava quanto para quem escutava (KRAMER e SOUZA, 2003, p. 74).

Percebo através dos encontros que já aconteceram no GTED que o diálogo trás aos sujeitos a possibilidade de reavaliação de suas posturas através da experiência e da reflexão do outro. Bakhtin (1997) diz que “na vida, depois de vermos a nós mesmos pelos olhos de outro, sempre regressamos a nós mesmos” (p. 37). Esse movimento de retornar aos nossos pensamentos depois do encontro com o outro, é por mim percebido nos encontros do GTED, a (re) significação que ocorre quando o sujeito se vê a partir do outro e volta-se a si mesmo, a sua consciência individual.

(Re)significações: professores em diálogo
O pensamento bakhtiniano tem suas bases no dialogismo. Sobre a subjetividade Bakhtin (1997) aponta para a necessidade do outro. O autor fala também que somos seres inacabados, pois é na busca por um valor que está por vir que nos constituímos. Sobre a compreensão Bakhtin (2006) fala da palavra e da contrapalavra.
Compreender é opor a palavra do locutor uma contrapalavra. Só na compreensão de uma língua estrangeira é que se procura encontrar para cada palavra uma palavra equivalente na própria língua.  É por isso que não tem sentido dizer que a significação pertence a uma palavra enquanto tal.  Na verdade, a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, isto é, ela só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor.  Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro (p. 135).

Pensar em um espaço como o GTED, na maneira em que se dá o diálogo (entrevistas coletivas) é caminhar no sentido de identificar de que maneira os sujeitos compreendem a palavra do outro e se reconhecem através do outro. Todos são professores iniciantes, e, por esse motivo, como considerado por Bakhtin (2006) para se entender o enunciado os contextos necessitam ser semelhantes.
Mas pensando no foco da escrita deste trabalho, resgato duas ideias: a tomada de consciência individual dos participantes do GTED na (re)significação e no reconhecimento de si através do outro e na consciência coletiva (no corpo de professores iniciantes, enquanto classe profissional). Sobre a consciência individual Bakhtin (2006) que considera que se trata de uma cadeia ideológica, no qual a compreensão de um signo desloca-se para a compreensão do novo signo, de maneira única e contínua. Segundo o autor “essa cadeia ideológica estende-se de consciência individual em consciência individual, ligando umas às outras. [...] A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de interação social” (p. 32).
Nos encontros do GTED, é possível a percepção da reação às palavras aos sujeitos quando um outro fala e o ouvinte se reconhece no discurso do interlocutor. É comum a interrupção do relato de um participante por outro que reconhece na fala do narrador algo que o faz pensar em sua prática docente, e isso dispara nesse sujeito a reflexão de si, de sua experiência. No último encontro, no qual a pergunta disparadora foi “Quando ensino o que estou deixando de ensinar?” uma das professoras, após um tempo sem se pronunciar, inicia sua narrativa, identificando na fala dos outros participantes elementos para a compreensão de suas experiências.

Encontro do GTED – 13 de agosto de 2011. Fala da Profa. Milene.
“Enquanto vocês falavam, eu fiquei aqui pensando um monte de coisas [...] Primeiro quando a Ju estava falando de que sempre é uma escolha [...] e depois você (Profa. Pamela) contou essa história que me deixou perturbada, essa história da chuva, eu pensei [...]
A minha narrativa serviu como disparador para a Profa. Milene refletir sobre suas experiências. É nesse ouvir/falar em diálogo que torna possível a (re)significação do pensamento de cada sujeito no grupo. Freire (1987) em “Pedagogia do oprimido” nos fala da questão do diálogo e dos círculos de cultura. O autor nos diz que:
Ao objetivar seu mundo, o alfabetizando nele reencontra-se com os outros e nos outros, companheiros de seu pequeno "circulo de cultura". Encontram-se e reencontram-se todos no mesmo mundo comum e, da coincidência das intenções que o objetivam, ex-surge a comunicação, o diálogo que criticiza e promove os participantes do circulo. Assim, juntos, re-criam criticamente o seu mundo: o que antes os absorvia, agora podem ver ao revés. No circulo de cultura, a rigor, não se ensina, aprende-se em "reciprocidade de consciências"; não há professor, há um coordenador, que tem por função dar as informações solicitadas pelos respectivos participantes e propiciar condições favoráveis à dinâmica do grupo, reduzindo ao mínimo sua intervenção direta no curso do diálogo (FREIRE, 1987, p. 6).

O GTED é para mim um espaço de encontrar-me com outros e nos outros, como os alfabetizandos de Freire (1987). E as entrevistas coletivas contribuem para que seja possível essa interação. É um espaço no qual eu me sinto a vontade para ouvir, contar, refletir. E pela riqueza do material que tenho coletado posso dizer que os demais participantes também sentem no grupo um espaço aberto para suas vozes e suas histórias.
O trecho da fala da Profa. Milene é apenas um fragmento de um diálogo no qual acontecem (re)significações em vários momentos, quando um sujeito está narrando sua experiência, e de repente lhe falta uma palavra, o outro complementa, solidariza, enunciando uma palavra que encaixa no complemento da fala do narrador. Quando os contextos são semelhantes a consciência individual em interação com outra consciência individual cria um espaço coletivo de abertura, compreensão e diálogo.

Referências Bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal (tradução feita a partir do francês por Maria Emsantina Galvão G. Pereira revisão da tradução Marina Appenzellerl. 2ª ed. São Paulo Martins Fontes, 1997. (Coleção Ensino Superior).
_________________. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 12.ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
KRAMER, S.; SOUZA, S. J. E. Entrevistas coletivas: uma alternativa para lidar com diversidade, hierarquia e poder na pesquisa em ciências humanas. In: KRAMER, S.; (ORG.)., F. M. T. Ciências Humanas e Pesquisa Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, v. 107, 2003. p. 57-76.

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