quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Ageu Quintino Mazilão Filho, Aline Aparecida Angelo, Ana Caroline de Almeida, Flávia Aparecida Mendes de Oliveira Cruz

A responsividade bakhtiniana e a proposta freiriana de educação:
aproximações possíveis
Ageu Quintino Mazilão Filho
Aline Aparecida Angelo
Ana Caroline de Almeida
Flávia Aparecida Mendes de Oliveira Cruz

“O existir, isolado do centro emotivo-volitivo único da responsabilidade, é somente um esboço ou um rascunho, uma variante possível, não reconhecida, do existir singular; somente através da participação responsável do ato singular pode-se sair das infinitas variantes do rascunho e reescrever a própria vida, de uma vez por todas, na forma de uma versão definitiva” (BAKHTIN, 2010, p. 102).

“O operário precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania que não se constrói apenas com sua eficácia técnica mas também com sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais humana” (FREIRE, 1996, p. 102).

O presente texto tem como objetivo fazer algumas aproximações entre as propostas de educação de Paulo Freire e de responsividade em Bakhtin. A idéia da escrita deste texto tem origem nas reflexões e discussões realizadas no âmbito do Grupo de Estudos Críticos do Discurso Pedagógico - GECDiP da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), criado com o objetivo de estudar a Teoria da Enunciação na obra de Bakhtin. Trata-se de um grupo composto por professores, estudantes de Mestrado em Educação e estudantes de graduação em Pedagogia, que desenvolvem pesquisa na área de educação e, assim, procuram dialogar suas reflexões com o campo teórico Bakhtiniano. No decorrer das discussões foram muitas as aproximações feitas entre Bakhtin e Paulo Freire, pelo fato de ambos destacarem em suas obras entendimentos semelhantes. Assim, tentaremos aqui resgatar um pouco dessas discussões levantadas no grupo e aprofundar nosso debate sobre a responsividade bakhtiniana pensando ao mesmo tempo na concepção de educação proposta por Paulo Freire.
            Como estudantes de Mestrado em Educação, tendo em vista nossas pesquisas e seus sujeitos, consideramos importante comentar sobre a responsabilidade ética e estética na forma de escrever e interpretar nossos dados. Sobre esse aspecto Bakhtin (2010) alerta a necessidade de compreender o objeto (sujeitos) de pesquisa de maneira participativa, ética, responsável e reflexiva, para não pensarmos que o nosso conhecimento teórico dará conta de explicar, em forma de verdade, o mundo real, que é histórico, inacabado e passível a várias interpretações. Ou seja, “tudo que é teoricamente concebível não é mais que um aspecto” (Idem, p. 53). E, isso também nos ajuda a refletir sobre a forma responsável como nos colocamos nos trabalhos que escrevemos, ao realizar comparações, análises e aproximações entre um campo teórico e outro.
            O presente texto é apenas uma amostra entre tantas aproximações e interpretações possíveis para relacionar dois autores como Paulo Freire e Bakhtin, com especial atenção na questão da responsividade, portanto, na relação com o próximo apregoada por estes autores, uma relação que apresenta o “outro” como elemento indispensável para a realização do “eu”. Sobre tal relação social, cabe a contribuição para nós muito esclarecedora de Augusto Ponzio – que, talvez tenha sido italiano no sentido intelectual do termo, por demonstrar suas simpatias pelo Renascimento em suas analogias – ao afirmar que “a Revolução Bakhtiniana consiste em deslocar o centro, como em Copérnico, deslocando o centro da Terra em relação ao sol. E o sol é o próximo, é a luz do outro”. No mesmo sentido nos é útil também outro marxista de possíveis aproximações a Bakhtin e Freire, Antônio Gramsci, quando afirma: “Creio que agora me... reformei, conciliando em meu espírito Renascimento e Reforma, utilizando esses dois termos que, me parece, simbolizam muito bem, em grandes linhas, todo movimento das civilizações” (GRAMSCI apud NOSELLA, 2004, p. 143).
Paulo Freire também deixa claro que é dialética a questão – como o movimento de Renascimento e Reforma para Gramsci –, o processo de transformação não pode deixar de vir de fora, e também não pode deixar de partir de dentro, o educador necessita do educando, assim como o educando necessita do educador, ambos se educam. “Em suma, em toda enunciação, por mais insignificante que seja, renova-se sem cessar essa síntese dialética viva entre o psíquico e o ideológico, entre a vida interior e a vida exterior” (BAKHTIN, 1995, p. 66). Freire explica que “o inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez seres éticos” (FREIRE, 1996, p. 59), e cobra nossa responsabilidade quando afirma que “não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos” (Idem, p. 17).             Wanderley Geraldi, contribuindo no entendimento do futuro como centro de gravidade das decisões do presente para Freire e Bakhtin, chama atenção para o fato de que “talvez sejam estes os ensinamentos maiores de Paulo Freire e Mikhail Bakhtin: a grandeza da inconclusão humana e a partilha de um futuro em que a diferença sobrepuje a desigualdade. Por isso, a importância para ambos da ética, da estética e da política” (GERALDI, 2004, p. 51). Para Freire, que via a educação como um ato político e um ato de conhecimento, por isso mesmo, como um ato criador, uma prática consciente capaz de escrever, reescrever, transformar o mundo, a ética é um saber e uma postura necessária para aqueles que exercem uma prática educativa, pois para ele essa tem de ser “um testemunho rigoroso de decência e de pureza” (FREIRE, 1996, p. 33) e cabe ao educador saber que “as palavras a que falta a corporeidade do exemplo pouco ou nada valem” (Idem p. 34).
Essa postura ética do educador destacada por Paulo Freire dialoga com o que Bakhtin chama de responsividade através do ato. Para Bakhtin, o ato é orientado em duas direções diferentes: a singularidade irrepetível e a unidade objetiva, abstrata. A concepção de ato nessas duas direções pode ser compreendida quando Bakhtin analisa a relação entre arte e vida, afirmando que “a ciência, a arte e a vida adquirem unidade somente na pessoa que a incorpora na sua unidade” (PONZIO, 2010, p. 21). Todavia essa unidade exige uma “responsabilidade especial”, que decorre da pertença a um todo, a um determinado setor da cultura, a um certo papel e função e, portanto, uma responsabilidade delimitada, definida, referida a identidade reiterável do indivíduo objetivo. Segundo Ponzio, do outro lado da “responsabilidade moral”, uma “responsabilidade absoluta”, sem limite, sem álibi, sem desculpa, que por si só se torna único, irrepetível o ato, enquanto responsabilidade não transferível do indivíduo (Idem). O próprio Bakhtin evidencia tal idéia ao afirmar que:
“um pensamento participativo é precisamente a compreensão emotivo-volitiva do existir como evento na sua singularidade concreta, sob a base do não-álibi no existir. Isto é, é um pensamento que age e se refere a si mesmo como o único ator responsável” (BAKHTIN, 2010, p. 102).

Na perspectiva da educação freiriana relacionada à responsividade bakhtiniana, podemos considerar que o educador, através de uma postura ética e responsável possibilitada pela compreensão emotivo-volitiva do existir como evento único e irrepetível, materializada no seu ato (ação educativa), concretiza uma ligação entre “cultura e vida, entre consciência cultural e consciência viva”, nos termos de Bakhtin. Freire deixa claro que, sendo a educação a alavanca das mudanças sociais por modelar almas e recriar corações, o processo de transformação é uma questão dialética, que não pode deixar de vir de fora, e também não pode deixar de partir de dentro, como aqui já apontamos na relação com o outro:
“nenhum de nós está só no mundo. Cada um de nós é um ser no mundo, com o mundo e com os outros. Viver ou encarnar esta constatação evidente, enquanto educador ou educadora, significa reconhecer nos outros o direito de dizer a sua palavra, direito deles de falar a que corresponde o nosso dever de escutar” (FREIRE, 2009, p. 26).
           
Neste sentido, a atenção de Bakhtin como filósofo da linguagem que permite a comunicação transformadora, apregoada pela proposta educativa freiriana encontra também respaldo na filosofia de Paulo Freire quando afirma que “a linguagem e a realidade se prendem dinamicamente” (Idem, p. 11).  E a linguagem é composta de palavras que, na educação devem ser preferencialmente as “palavras do Povo, grávidas de mundo. [...] codificações, que são representações da realidade” (Idem, p. 20), concordando assim com Bakhtin quando afirma ser cada signo ideológico “um fragmento material dessa realidade” (BAKHTIN, 1995, p. 33). E “é neste sentido que a leitura crítica da realidade, [...] pode constituir-se num instrumento para o que Gramsci chamaria de ação contra-hegemônica” (FREIRE, 2009, p. 21). “Agora já não é possível texto sem contexto” (Idem, p. 30).
            Na perspectiva dialógica, sociointeracionista da linguagem e da interação de Bakhtin, os interlocutores vão construindo sentidos e significados segundo as relações que cada um mantém com a língua, com o tema o qual se fala e escreve,  ouve ou lê, segundo as relações que os interlocutores mantêm entre si e ainda de acordo com o contexto social em que a interlocução ocorre. É nesse processo interacional, que os sujeitos constroem uma relação dialógica, marcada por diferentes vozes (BAKHTIN, 1995). A palavra é dialógica por natureza e “se transforma em uma arena de lutas de vozes, que situadas em diferentes posições, querem ser ouvidas por outras vozes” (BRANDÃO, 2004, p. 9). Assim, não podemos deixar de considerar que “o signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes” (BAKHTIN, 1995, p. 46) e que “o conflito parteja a nossa consciência. Negá-lo é desconhecer os mais mínimos pormenores da experiência vital e social. Fugir a ele é ajudar a preservar o status quo” (FREIRE, 2008, p. 64).

Referências Bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail M., (V. N. Volochínov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora HUCITEC, 1995.
BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do Ato Responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. São Paulo: Editora da Unicamp. 2004
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Editora Olho d’água, 2008.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2009.
GERALDI, João Wanderley . Paulo Freire e Mikhail Bakhtin - o encontro que não houve. In: CORTEZÃO, Luiza; MACEDO, Eunice; NUNES, Rosa; GERALDI, João Wanderley; ROMÃO, João Eustáquio; FREIRE, Abreu; TRINDADE, Rui. (Org.). Diálogos através de Paulo Freire. 3 ed. Porto - Portugal: Edição Instituto Paulo Freire de Portugal e Centro de Recursos Paulo Freire da FPCE, 2004.
NOSELLA, Paollo. A escola de Gramsci. São Paulo: Cortez, 2004.
PONZIO, Augusto. A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo (introdução). In: BAKHTIN, Mikhail M. Para uma Filosofia do Ato Responsável. Tradução: Valdemir Miollo & Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.

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