quinta-feira, 6 de outubro de 2011

José Sena Filho

Complexidade e responsividade: Aproximações entre morin e bakhtin[1]
José Sena Filho[2]
Universidade Federal do Pará

O que nos salva é que, felizmente, temos uma vida dupla, uma vida tripla;
 não somos só cientistas, também somos pessoas em particular, também somos cidadãos, também somos seres com convicção metafísica ou religiosa
e, então, podemos, nas nossas outras vidas, ter imperativos morais
e é isso que nos impede de sermos doutores Mabuse ou doutores Folamour
Edgar Morin[3]

I
...trata-se daquilo de que o homem se subtraiu
e não, de modo algum, daquilo que lhe fundamenta
Edgar Morin

...porque somos respondentes ao ‘objeto’ investigado. Nos constituímos na relação com o outro. Com Bakhtin tomamos o outro em uma dimensão ampla que leva em consideração o outro humano, o outro discursivo, o outro presente no acabamento estético de um texto, o outro como memória, até o outro como devir. É nessa ligação fundamental entre os seres e as coisas do mundo que nos constituímos seres respondentes, ação e reação. Essa dimensão é extremamente produtiva quando levamos à discussão a produção de conhecimento no mundo contemporâneo, frente aos saberes que existem, acontecem e fazem acontecer a vida humana. 
Em Morin, é a concepção da complexidade que ‘fala’ da ligação entre os seres e as coisas. Morin responde, com seu pensamento complexo, a tudo que a ele foi possível compreender e sentir. Em seu texto Ninguém sabe o dia que nascerá o pensador francês fala de si para falar de tudo que está para além de si mesmo. Vai do particular ao universal e vice-versa com a consciência de si enquanto parte de um todo, sem deixar de ser ele mesmo um todo complexo, como unidade da sociedade humana. Essa compreensão do pensador francês desestabiliza dicotomias enraizadas na produção de conhecimento. Se com os gregos podemos encontrar as bases de uma racionalidade clássica na qual localizamos a fonte de uma série de dicotomias como: cultura escrita x cultura oral, saber erudito x saber popular, racionalidade x sensibilidade, teoria x prática. Com Morin, temos a compreensão da condição fragmentaria das ciências humanas apontando para a necessidade de por em evidencia a ‘multidimensionalidade e a complexidade humana’ por meio de um remembramento entre ciências humanas e naturais.
Aproximar Morin e Bakhtin, nesta leitura, é uma tentativa de refletir sobre a construção do conhecimento a partir da compreensão de que os saberes estão em uma relação complexa e interconectada, e que se dedicar ao estudo de um dado ‘objeto’ social – sujeito, sociedade, obra, etc. – implica em levar em consideração a complexidade desse objeto enquanto evento único, entrelaçado em condições particulares de acontecimento e compreensão, e de um fazer ético.
Construir sentidos de modo interconectado e complexo parece ser o processo que une esses pensamentos originários de contextos sociais tão conturbados e multiculturais do qual são oriundos, em diferentes cenários, o russo e o francês marrano.

II
...uma experiência de mim que eu próprio não tenho,
mas que posso, por meu turno, ter a respeito dele
Mikhail Bakhtin

Crítico a um abstracionismo Saussureano e ao materialismo Marxista, Bakhtin pensa a linguagem indo além da abstração e do material, para pensá-la como acontecimento social. Um importante aspecto de sua concepção de linguagem está no fundamento filosófico da eventicidade. É assim que para ele o enunciado é acontecimento, um evento único na cadeia ininterrupta da fala. O enunciado, como unidade da comunicação, é único e irrepetível. Uma palavra pode ser dita milhares de vezes, mas o enunciado é único. Ele é a palavra vivendo um sentido e um tempo. Ao tratar a noção de enunciado, Bakhtin fala, como uma metonímia, do próprio homem. Somos nós humanos que produzimos enunciados, o enunciado marca nossa existência única e irrepetível. É desse acontecimento que nos constituímos seres respondentes e que instauramos uma ética do ser frente aos outros. Somos seres responsivos e responsáveis, pois tomar a linguagem como constitutiva da realidade, implica em uma ética no processo que é a vida, processo também simbólico e por isso de linguagem.
Neste aspecto, Morin e Bakhtin aproximam-se uma vez que ao propor uma reforma do pensamento em que é necessário desconstruir o conhecimento, certas bases cristalizadas, o autor francês aponta para a importância de se construir relações dando margem a curiosidade e a renovação do pensamento. A compreensão dialógica em Bakhtin se fundamenta na base das relações que durante muito tempo foram desligadas ou que se estagnaram em dogmatismo. É assim que o autor russo em A cultura porpular no renascimento e na idade média: o contexto de François Rabelais desenvolve sua tese sobre o processo de carnavalização, discutindo no campo da arte literária a cultura popular e sua força expressiva. Para isso, Bakhtin recorre ao estudo da cultura popular e de lá traz à tona uma concepção de cultura que aliava o homem à natureza que o contextualizava, tomando o cultivo da terra, do corpo e da mente como entrelaçado e dinâmico, em que os tempos de carnaval caracterizavam-se como um tempo de alternância e renovação, um rito de passagem que renova os saberes. O carnaval era uma resposta renovadora frente a um mundo e a uma sociedade em processo, inacabada.
Em Morin encontramos a idéia de multimodalidade que é a compreensão do homem como unidade complexa sendo ‘ao mesmo tempo biológico, psíquico, social, afetivo e racional’, e a sociedade nas suas dimensões ‘histórica, econômica, sociológica, religiosa, etc.’. Tal compreensão agrega a noção de dialogismo em que as condições de produção dos discursos e das práticas sociais se dão no campo tenso e múltiplo do social no qual está implicada a cultura na sua complexidade a qual agrega um “conjunto de saberes, fazeres, normas, proibições, estratégias, crenças, idéias, valores, mitos...” etc.
A dimensão do humano desdobra-se para além dessa relação tensa entre cultura e natureza em que o sujeito humano aprisiona-se em um tipo de antropocentrismo que nega, em certa medida, uma dimensão mais ampla do qual faz parte. O que Morin nos traz com sua perspectiva da complexidade é justamente a possiblidade de pararmos para exercitar a reflexão sobre a complexidade dos sistemas sociais no qual somos produzidos e produzimos sentidos. A complexidade possibilita o estranhamento frente a racionalidade para o desafio de lançarmos nossos olhares para ‘irracionalidades’, o eu a partir do olhar do outro, desestabilizar a naturalização do conhecimento. A noção ecossistêmica, ligada a concepção da complexidade, fruto da sanfona temporal que desdobra diferentes concepções nesse balaio “Teorias do conhecimento”, motiva um pensamento que deve ir em direção a outras sensibilidades.
Se, da natureza, a cultura nutre sua matriz para sustentar a dimensão do simbólico, a natureza tem na cultura a possibilidade de desdobrar-se em uma refração de sentidos para a própria vida não esgotar-se em um monologismo existencial.
Sendo assim, um aspecto fundamental que percorre o pensamento de ambos os filósofos é a idéia de dinamicidade, de movimento, de interação. Não se trata de lidar com o conhecimento de modo a acumulá-lo mas, em um outro sentido, do saber usá-lo na sua potencialidade frente aos contextos que se dispõe.
Dessa discussão os saberes passam por uma instabilidade, todo o conhecimento que se julgava ‘verdadeiro’ agora pode se julgar como ‘falso’. Essa compreensão parte da observação sobre as rupturas que vem sofrendo as concepções que regem a ciência clássica e a ciência contemporânea, o que gera significativa mudança no comportamento científico.
Responder ao ‘objeto’ de investigação parece lançar a necessidade de uma agenda ética que revise o sujeito cientista e o fazer ciência. Como já nos tem afirmado Morin, é preciso duvidar e exercitar a curiosidade para agirmos, de acordo com Bakhtin e Morin, de modo responsável.
É fundamental estar atento ao ato ético, responsável, que permeia nossas práticas sociais. Tanto em Morin, quanto em Bakhtin, encontramos a idéia que pode parecer demasiado repetida, mas que na prática é regularmente esquecida, que é a atualização diária da ciência e do ensino, a necessária luta contra a estagnação das idéias moldadas e pré-fabricadas, prática que inicia no individual, por uma reforma da prática do educador, por exemplo, como unidade complexa, responsiva e responsável, para podermos dar conta de complexidades como a escola. Pensar a complexidade do uno pode nos orientar para pensar a complexidade de outras unidades, e pode ainda apontar caminhos para a superação de desigualdades sociais e desequilíbrios humanos na sua relação com o conhecimento cultural e natural a que pertence.
 A perspectiva da complexidade instaura uma problematização ainda maior visto que duvida do que tem sido produzir ciência até os dias atuais. Não se trata de rechaçar o estruturalismo, o pensamento cartesiano, etc., mas se trata de nos colocarmos a estranhar nossas práticas de fazer ciência que estão muito próximas dos movimentos repetidos e conformados das máquinas. Para uma ciência com consciência é preciso o estabelecimento de uma ética que pense a ciência e o sujeito cientista. Em Bakhtin, encontramos uma problematização do homem diante da vida, de sua responsabilidade frente a seus gestos de ação no mundo social. Tal reflexão do pensador russo nos traz a possibilidade de fundamentar uma perspectiva que olhe a ciência em sua atual conjuntura.

Sendo assim, encerro o texto com duas citações de ambos os autores para inacabar esta reflexão em refração de leituras, para pensar os saberes.
As células do nosso corpo se transformam sem parar, morrem e renascem. O fato de podermos reconstituir nossas células faz que possamos rejuvenescer. Efetivamente, nossas células vivem da morte das moléculas, nossos organismos vivem da morte de nossas células. E diria mesmo que a sociedade vive da morte dos indivíduos. Pois indivíduos novos aparecem, e eles recebem cultura e educação, e rejuvenescem a sociedade. Logo vivemos de morte.
 Edgar Morin

Uma percepção forte e diferenciada do tempo pôde surgir pela primeira vez somente com base no trabalho agrícola coletivo (...) Esse tempo é o tempo do crescimento produtivo. É o tempo da vida vegetativa, da floração, da fecundidade, da maturação, da multiplicação dos frutos, da proliferação. O curso do tempo não destrói e não diminui, mas multiplica e aumenta a quantidade de coisas preciosas; em vez de um grão semeado nascem muitos grãos, a proliferação sempre recobre a destruição dos espécimes isolados. E as unidades destruídas não são individualizadas nem isoladas, elas se perdem na massa crescente e múltipla das novas vidas. O perecimento, a morte são percebidos como semeaduras, após as quais seguir-se-ão a seara e a messe que irá multiplicar o que foi semeado. O curso do tempo assinala não só o crescimento quantitativo, mas também o qualitativo: a floração, a maturação. Visto que a individualidade não ocupa um lugar de relevo, a velhice, a decrepitude, a morte podem ser somente elementos subordinados ao crescimento e à multiplicação, indispensáveis a um desenvolvimento fecundo. Somente num plano puramente individual pode revelar-se o seu lado negativo, o seu caráter puramente destrutivo e final. O tempo produtivo é prenhe dos frutos que carrega, os frutos nascem e recomeça uma nova gestação.
Mikhail Bakhtin

III
O agir ético foi efetivado neste momento, nesta ação, pela minha parte,
que não era só minha, suscitada pelo meu olhar,
que também não era mais só meu.
Rosa Brasil

Com Bakhtin, compreendemos o excedente de visão como fundamental para situar-se fora do outro e nesse movimento ir além. Compomo-nos outro e compomos os outros. Nesse movimento somos espaço aberto, o por vir, inacabados continuamente entre acabamentos provisórios. Como nós a ciência e o saberes devem ser entendidos como espaço aberto. É a complexidade que Morin nos apresenta e a ética que ambos propõe ao sujeito cognoscente.
Longe de uma discussão exaustiva, essa experiência ética de leitura constitui-se a partir do meu olhar extraposto. A leitura dos autores enquanto acabamento provisório, aqui materializado em texto, é uma resposta ao mundo e de minha responsabilidade, possibilitando a refração dos sentidos com base em uma reflexão, sobre a prática cientifica, que se pretende ética.

Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos – SP: Pedro e João Editores, 2010.
________. Estética da Criação Verbal. São Paulo: HUCITEC, 1997.
________. A cultura popular no Renascimento e na Idade Média: o contexto de Fraçois Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da UnB, 2002.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e Diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003.
MORIN, Edgar. Ninguém sabe o dia que nascerá. São Paulo: Editora Unesp; Belém-PA: Editora da UEPA, 2002.
________. A cabeça bem – feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
________. Os sete saberes necessários a educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2007.
________. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.


[1] Agradeço o diálogo e a orientação atenciosa do Prof. Dr. Salomão Hage durante e posteriormente a disciplina Teorias do Conhecimento, por ele ministrada, no Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes (PPGLS/UFPA).
[2] José Sena da Silva Filho é graduado em Letras (2008) e mestrando no programa Interdisciplinar em Linguagens e Saberes (PPGLS – Campus de Bragança/UFPA). É integrante do Grupo de Trabalho em Imagem (GTI/UFPA).
[3] Apud Morin (2005): “Sábios loucos do imaginário cinematográfico, o primeiro de um filme de Fritz Lang, em especial em 0 Testamento do Doutor Mabuse, e o segundo de um filme de Kubrick, Doutor Folamour”.

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