quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Luciana Alves de Oliveira

O centro de estudos de uma escola carioca – atitude como resposta responsável de educadores ou ação política de uma política governamental?
Luciana Alves de Oliveira (UFRJ/LEDUC)[1]
 “A compreensão é uma forma de diálogo [...] Compreender é opor á palavra do locutor uma contrapalavra.” (Bakhtin)

Este texto foi elaborado, a partir de reflexões teóricas e metodológicas, no âmbito das discussões sobre as contribuições da teoria de Bakhtin para uma análise dos discursos docentes durante a realização dos Centros de Estudos, numa escola carioca. Para tanto, recorremos ao conceito de exotopia, na tensão entre o eu e o outro, no desdobramento dos olhares a partir do lugar exterior da pesquisa que permite ao pesquisador compreender modos de ser e estar professor. Paralelamente, foi se desenhando e demarcando uma nova interferência da pesquisa em educação, na realidade escolar, através do projeto de pesquisa intitulado “As (im)possíveis alfabetizações de alunos de classes populares pela visão de docentes na escola pública”[2], coordenado pela Professora Doutora Ludmila Thomé de Andrade, propondo, a partir de uma perspectiva compreensiva, a constituição de um olhar reflexivo dos sujeitos, pesquisador e professor, sobre a realidade da escola visando à transformação do fazer docente, inscrevendo-os como sujeitos que buscam atos responsivos e de não-álibi de estar no mundo, sujeitos inacabados e em constante constituição.
O espaço de formação continuada, intitulado Centro de Estudos[3] (CE), como ação de política pública no Município do Rio de Janeiro, caracteriza-se como uma dimensão de tempo destinado à troca de experiências e que se realiza, conforme calendário escolar[4], em todas as Unidades Escolares, nos mesmos dias e horários.  O CE constitui-se, assim, como uma ação política com o desafio de inserir, na escola, um lugar de promoção de formação continuada de professores, através de um trabalho de reflexão crítica sobre a prática docente.
Na pesquisa em andamento, buscamos observar os modos de dizer presentes no discurso dos professores alfabetizadores, que assumem a posição de enunciadores de discurso e não de repetidores da pesquisa acadêmica neste espaço específico de formação continuada. Afinal, nossa motivação é procurar, na voz do professor alfabetizador, a sua própria voz, a voz que não é dita, a voz deturpada e tantas outras vozes hibridizadas, que se constituem de um amálgama de discursos que inclui saberes e fazeres heterogêneos. A análise das interações discursivas tem possibilitado a compreensão dos aspectos da construção dos saberes docentes nesse espaço de estudo, reflexão e formação continuada.
Desta forma, apostamos na disposição para escutar o professor, em fazê-lo formular em palavras seus gestos pedagógicos cotidianos (ANDRADE, 2010), permitindo estabelecer uma “topologia de formação” (ANDRADE, 2007, p.51), trazendo as interlocuções de como esses discursos estão sendo tratados pelo professor, e buscando compreender, em seus enunciados, as representações dos saberes da formação continuada.  Empenhamo-nos em estudar o espaço de formação, o Centro de Estudos, como constituinte da interdiscursividade entre formação docente e prática pedagógica ou simplesmente como uma política governamental de formação continuada em serviço. Para tanto, refletir sobre o cenário em que se inscreve a formação em serviço, ao dar acesso e visibilidade à voz docente, constitui-se em um acontecimento enunciativo. Assim, as questões postas são: Que formatos discursivos presentes na formação continuada de professores nos Centros de Estudos são mais propícios à reflexão e ao entendimento de sua prática pedagógica? Que concepções estes professores têm sobre a sua formação e as relações que se estabelecem entre esta e a sua prática?
Ancorado em dois conceitos de Mikhail Bakhtin, dialogismo e polifonia, este estudo objetiva constituir-se como mais uma voz de análise das vozes docentes. Ao conjugar a formação continuada de professoras e a ação política de uma política governamental, pretende-se articular produções discursivas, subjetividades e identidades profissionais de professores alfabetizadores.
Nesta perspectiva de análise, concebemos que o discurso polifônico dos sujeitos ensinantes torna-se lugar de conflito e tensão. E partindo do princípio da noção de polifonia, enquanto formadora da linguagem e da consciência dos sujeitos, é possível destacar aspectos da reflexão sobre a relação estabelecida entre conjuntos de saberes importantes para o professor alfabetizador e sua prática pedagógica no âmbito da escola.
Também na formação continuada dos docentes, entrelaça-se a ideia de que, em seu discurso, o professor nunca achará a palavra despovoada das vozes dos “outros”, pois é no movimento de interação social que os sujeitos se constituem e também constituem seus discursos. Discursos providos de palavras alheias de outros sujeitos, que se configuram no discurso interior e produzem um emaranhado discursivo que se forma no discurso social e individual.
A compreensão do conceito de dialogia, como princípio constitutivo da linguagem e como construção de sentido de todo e qualquer discurso, e também, da noção de polifonia, como um efeito de sentido decorrente da multiplicidade de vozes encontradas no universo social da escola, propicia a análise e a discussão da percepção da imagem do professor alfabetizador como sujeito da própria consciência.
Nesta perspectiva, abre-se o debate para a instauração do efeito de sentido que revela a este sujeito a posição de um dizer povoado da “voz do outro”, sendo esse outro, povoado por outros, que estão em permanente evolução, inconclusivos e inacabados, em um mundo pluralista de vozes equipolentes e de consciências independentes, onde nenhuma voz social se impõe como a última e definitiva palavra, mas permitindo que se manifestem suas individualidades, tornando-se sujeito da própria consciência, como autor e regente do grande coral de vozes que participam do processo dialético, e marcando a possibilidade de assumir o seu papel ativo em seu caráter dialógico ligado à consciência ativa e isônoma do outro.
Em seu cotidiano, esse sujeito se encontra sob uma chuva de produção científica, entretanto ele permanece impermeável (ANDRADE, 2010). Embora o impacto desse cardápio de formação sobre os docentes continua na opacidade para os pesquisadores e/ou formadores, muitos professores chegam a aprender a dizer o que fazem, mas não fazem o que sabem e assim seu fazer continua inalterado. Contudo, pretendemos analisar a interferência da formação na ação, não somente como escuta, mas como resposta, investindo no processo de aprender a dizer o que se faz na e pela escola. As perguntas, cujas respostas são refutáveis, apontam para a existência de uma relação problemática entre os professores e as influências da formação continuada sobre a sua prática enquanto professor alfabetizador, caminhando na contramão do que vem sendo tratado no campo da pesquisa e das políticas públicas, pois se configura como novo e relativamente inexplorado. No entanto, não pretendemos subsidiar respostas completas e definitivas a cada uma das questões levantadas, mas no mínimo oferecer elementos para respostas e possibilidades de perspectivas de pesquisa para futuras experiências, onde os atores da escola sejam estimulados, na formação continuada nos Centros de Estudos, a produzir discursos sobre a sua prática, de modo que passem a ter escuta, e se envolvam responsavelmente com o firme propósito de construir a sua autoria profissional.  O foco está na produção discursiva, assumindo o caráter político de transformação do estado das coisas, e encaminhado na perspectiva da polifonia a ser realizada na formação continuada, no sentido de empoderar os atores envolvidos nos processos de formação continuada (ANDRADE, 2010), fortalecendo as experiências escolares das práticas alfabetizadoras que auxiliam na superação do fracasso escolar.
Através desse recorte teórico preliminar, e compreendendo a diferença de polissemia e polifonia, é possível articular discursivamente as vozes desses professores alfabetizadores que se orquestram no chão da escola, deslocando a palavra encarnada, que não está solta e nem acabada, para a rede social da linguagem. Tal procedimento não impede, por outro lado, a tarefa de analisar e (re)dimensionar os múltiplos discursos docentes, rompendo com a ilusão de transparência, possibilitando emergir a tensão entre o discurso do sujeito a ser analisado e o discurso do pesquisador.
Desse modo, o desafio se coloca na discussão sobre e com o discurso docente do sujeito, observando a produção discursiva no fazer e no falar, e apoiando-se no conceito de polifonia, que amarra, tenciona e qualifica as identidades docentes destes sujeitos. Estes,  historicamente constituídos como pontos de estofo, ou seja, pretende-se aprofundar o diálogo com o saber docente que não é solitário, que precisa ser ancorado para existir, e tem um lugar na formação discursiva social, sem deixar de ser singular, para então fugir de uma postura relativista.
Nesse processo, destacamos a necessidade de dialogar com os princípios bakhtinianos nos discursos revestidos por efeitos de sentido polifônico que resplandecem uma imagem, que refletida e refratada no social, constitui-se num dizer que se instaura em uma esfera de representação e recupera a intensidade da voz que quer ser social e política.
Assim, dialogismo e polifonia se constituem em conceitos fundamentais nesta investigação, significando que o discurso dos professores, realizado nas e pelas interações entre os sujeitos, configuraram-se não somente sob o aspecto da fala individual, mas da inter-relação de discursos veiculados socialmente.
Sem dúvida, no movimento de entrelaçamento de discursos, encontramos outros discursos que se contradizem, refutam-se e, nos conflitos dos dizeres que se constituem de outros dizeres, a polifonia se define em uma multiplicidade de vozes e consciências independentes, abertas à interação, sem perder a singularidade, de vozes plenivalentes e consciências equipolentes, não somente como objeto do discurso, mas como sujeitos de seus próprios discursos.
A compreensão de que o sujeito tem de si, constitui-se através do olhar e da palavra do outro, a percepção de cada um ocupa um espaço determinado e deste espaço revelamos nosso modo de ver o outro e o mundo. Nesta perspectiva, vale ressaltar o lugar ocupado pelo olhar e pela palavra na constituição de sentido que conferimos à nossa experiência de estar no mundo. Por isso, para Bakhtin (2010), ser significa ser para o outro e, por meio do outro, para si próprio, e ao mesmo tempo, a minha visão precisa do outro para eu me ver e me completar, e minha palavra precisa do outro para significar.
Refletir sobre as questões suscitadas na constituição progressiva e processual é dialogar com a realidade, acolhendo o desafio de compreender os limites da formação do professor alfabetizador, a fim de abraçar os anseios e perscrutar novos rumos para que se possam produzir mudanças qualitativas e transformadoras na vida e na profissão docente, e inclusive, fazer com que assumam a responsabilidade da sua própria formação. Nesse sentido, necessário se faz edificar, coletivamente, pontes e atalhos para que os professores assumam-se “como produtores da sua profissão” (Nóvoa, 1992, p.28).
Como construir pontes e atalhos? Que materiais, sujeitos e caminhos contribuem para a constituição de professores autores e sujeitos do seu fazer? Diante dessas indagações, espera-se que os espaços de atuação desses profissionais sejam ressignificados. Talvez a resposta esteja na necessidade de o professor ter clareza dos princípios que orientam sua prática, de pensar na possibilidade de uma educação transformadora, feita de escolhas e incertezas diante dos dilemas e desafios, longe do senso comum e da perspectiva limitada do “eu” individual.
Em síntese, essas são algumas reflexões, ainda iniciais, ancoradas a partir dos conceitos bakhtinianos, sobre as contribuições da perspectiva discursiva, dialógica e polifônica na formação continuada e prática pedagógica de professores alfabetizadores. Reflexões marcadas pela preocupação ética e estética de que a pesquisa deve se configurar como encontro entre sujeitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, L. T. Professores leitores e sua formação: transformações  discursivas de conhecimento e de saberes. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2004.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 2010.
BRAIT, B. Bakhtin: conceitos chave. SP, Martins fontes, 2008.                                    
GERALDI, J. W. Portos de Passagem, Martins Fontes, São Paulo, 1991.
KRAMER, S.  Leitura e escrita de professores: Da prática de pesquisa à prática de formação. Revista Brasileira de Educação. ANPed, jan-abr 1998, n.7 , p.19-41.
NÓVOA, A. Vidas de professores, Porto , Porto Editora, 1995.
SOARES, M. Letramento e alfabetização: muitas facetas. Revista brasileira de Educação. ANPed. jan/fev/mar/abr.2004, n.25, p. 5-17.
TARDIF, et alli. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educação & Sociedade. SP: Campinas; Cortez; Cedes,n.73, v.21, dez, 2000.


[1] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), integrante do Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação (LEDUC/UFRJ) e Bolsista da CAPES.
[2] Projeto selecionado pela CAPES – Programa Observatório, edital 38/2010.
[3]Estes horários são organizados quinzenalmente e/ou mensalmente, em horário parcial (2h30min), e deveriam se configurar como espaço de reuniões de equipe dos docentes com a gestão escolar, na perspectiva de garantir condições de trabalho e desenvolvimento profissional coletivo, fortalecendo o desenvolvimento profissional do indivíduo.
[4] As escolas da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro obedecem a um calendário oficial publicado em Diário Oficial, no início do ano letivo.

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