quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Laura Noemi Chaluh, Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo

Escritos de aula. Vestígios emancipatórios, talvez...
Laura Noemi Chaluh lchaluh@rc.unesp.br
Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo. mrosamc@rc.unesp.br
UNESP (Univ Estadual Paulista)


... lhe será pedido que fale, que diga o que vê, o que pensa disso, o que faz com isso.

            Com reticências iniciamos este texto. Inacabamento e incompletude? Talvez.
            Somos professoras de futuros professores, em cursos de licenciaturas em Pedagogia, Ciências Biológicas e Matemática. O que nos move neste texto é socializar uma prática instituída junto com os nossos alunos: a escrita de acontecimentos vividos na sala de aula. As nossas propostas não necessariamente seguem pelos mesmos caminhos; o que as unifica, é acreditar na potencialidade da escrita como processo formativo e a utilização de um caderno coletivo.
Uma de nós optou pela escolha de um “escriba” em cada uma das aulas que ficaria responsável por redigir um texto que trouxesse pensamentos, sensações, inquietações e descrição da aula. O escriba, na aula seguinte, irá socializar com o grupo a “leitura dos acontecimentos vividos no encontro anterior”. O caderno coletivo e o rodízio de alunos configuram o movimento dos encontros. A outra tem instituído o caderno coletivo no final de cada aula, tendo como proposta para que o aluno que assim quiser pode deixar sua marca naquele caderno. Os alunos são convidados a escrever suas percepções, sentimentos, incluindo uma análise, ainda que bastante preliminar, de como viram a aula daquele dia. O caderno passa de mão em mão ao final de cada aula e vem para a mão da professora ao final do semestre letivo. Não se sabe quem vai ser o próximo a escrever. Nem sempre se sabe quem escreveu antes. Pode-se dizer que há uma entrega de si, em certo sentido, na medida em que, o que se tem de imediato, é um caderno. É o caderno em mãos o que abre para a leitura do que foi escrito em dias anteriores.
            O que passa por esses cadernos? O que se passa com esses cadernos? Livre das amarras de tarefas escolarizadas que implicam resultados, conteúdos a serem avaliados, ideias a serem cotejadas, o que leva um aluno ou uma aluna a tomar nas mãos o caderno circulante e nele registrar a aula, o que nela se passa, como a vê? O que pensa dela? O que – escrevendo - faz com ela?
            Por que escrever? Emergindo a escrita nos avatares da linguagem, campo de estudos e de realização dos elos comunicativos, quase nos leva a pensar que ela – a escrita - se torna soberana, ato de vontade, um querer fazer, desejo de se fazer presente.     
            Neste texto, temos a intenção de problematizar a escrita como movimento que potencializa a emancipação. Para isso, dialogamos com Rancière (2002). O autor, em seu livro “O mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual”, traz o percurso educativo e as considerações elaboradas por Joseph Jacocot, um pedagogo francês (começo do século XIX), que questiona as bases que sustentam a razão pedagógica moderna. É a partir do diálogo que Rancière estabelece com Jacocot que tecemos relações entre a palavra e seu vínculo com a emancipação do homem.  Rancière enfatiza a palavra do outro como meio para a emancipação:
No ato da palavra, o homem não transmite seu saber, ele poetiza, traduz e convida os outros a fazer a mesma coisa. Ele se comunica como artesão: alguém que maneja as palavras como instrumentos. O homem se comunica com o homem por meio de obras de sua mão, tanto quanto por palavras de seu discurso: “Quando o homem age sobre a matéria, as aventuras desse corpo tornam-se a história das aventuras de seu espírito”. E a emancipação do artesão é, antes de mais nada, a retomada dessa história, a consciência de que sua atividade material é da natureza do discurso. Ele se comunica como poeta: um ser que crê que seu pensamento é comunicável, sua emoção, partilhável (RANCIÈRE, 2002, p. 74).

            Como já referido, neste texto trazemos a intenção de problematizar a escrita como movimento que potencializa a emancipação. Que aspectos podem ser focados nessa problematização?
            Ao agir sobre a matéria – a palavra (a ser) escrita – algumas relações podem ser pensadas. Uma delas diz respeito à abertura para manifestações, de um espaço “próprio” que, assim como a página em branco, circunscreve um lugar de produção para o sujeito (CERTEAU, 1994), aspecto este que remete quase diretamente à página em branco do caderno, quase sempre brochura. Outro aspecto diz respeito ao objeto: a escrita como instrumento, de códigos a textos ensaios; a escrita como conteúdo, de comunicação a experimentações; a escrita destinada, desde quem vai ler a como dizer; a escrita registro, coalhada pelas dúvidas, indagações, não-entendidos aflorados, posições opinativas subsidiadas pelos acontecimentos que fazem a aula, sugestões. Ainda outro aspecto a ser focado remete ao caderno, página em branco e objeto, como campo fértil de interlocução: entre sujeitos - de aluno/a para aluno/a, de aluno/a para a professora, de um para tantos outros/as e para si mesmo.
            Como campo fértil de interlocução, quem diz o quê, para quem, como, em que se (nos) inspira, a que vínculos (nos) remete? As relações dialógicas que se estabelecem no caderno, no exercício de escrever, na composição dos enunciados: como analisá-las?
            Do artesão a que se refere Rancière, o que poetiza e convida o outro a entrar, entremear, entranhar sua palavra, nos orientamos em direção a Bajtin (1997), acompanhando sua intenção em buscar compreender a forma da enunciação poética, na especificidade da comunicação estética, realizada no material da palavra. Com essa intenção, o autor se dispõe a analisar mais detalhadamente alguns aspectos da enunciação artística fora da arte, no discurso cotidiano comum, pois ali se encontram os fundamentos e as potencialidades de uma forma artística. Para aquém da intenção de análise artística, chegamos perto da relação entre a palavra na vida, posta pelo autor, que transcrevemos:
La palabra en la vida, con toda evidencia, no se centra en sí mesma. Surge de la situación extraverbal de la vida y conserva con ella el vínculo más estrecho. Es más, la vida misma completa directamente a la palabra, la que no puede ser separada de la vida sin que pierda su sentido (BAJTIN, 1997, p.113).

            Em seguida, na mesma página, o autor traz exemplos com algumas características e valoração que podem contribuir para pensar os enunciados da vida: “es mentira”, “es verdade”, “está dicho atrevidamente”, “no había que decirlo”, etc.
Entonces, éstas y otras valoraciones semejantes, no importa qué criterio las dirige – ético, cognoscitivo, político u otro –abarcan más lejos y más extensamente lo que se encuentra en el aspecto propiamente verbal, lingüístico del enunciado: junto con la palabra abordan también la situación extraverbal de la enunciación (BAJTIN, 1997, p.113).

            Uma folheada num dos cadernos, o texto em discussão era “Aula universitária: pesquisa e inovação” (CUNHA, 1997) e o contexto era a discussão de como repercute nos alunos a professora que “problematiza, cutuca, bota nossa cabeça prá ferver”,  deparamo-nos com o trecho:
Caderno 2009, turma da Licenciatura em Ciências Biológicas:
É bem nítido que todos nós experimentamos na vida algum tipo de sofrimento, mas que, no fundo, queremos ser felizes. É nítido também que a enorme quantidade e variedade de aspectos violentos e tristes da realidade causam forte impacto em cada um de nós. Que grande cumplicidade! (Caderno, 2009).

            Descolada do contexto de realização, tal fragmento pouco acrescentaria à discussão que propomos; continuemos, pois, com Bajtin adentrando a relação da palavra, em seu contexto valorativo, que remete à entonação:
¿Qué es lo que nos falta? Nos falta, justamente, aquel contexto extraverbal en el que la palabra (...) tenía un sentido para aquel que la oyera. Este contexto extraverbal del enunciado se compone de tres momentos: 1) un horizonte espacial compartido por ambos hablantes (...); 2) el conocimiento y comprensión común de la situación, asimismo compartido por los dos y, finalmente, 3) la valoración compartida por los dos, de esta situación (BAJTIN, 1997, p.114). 

Protagonistas nessas relações, os sujeitos, alunos/as e professora(s) que compartilham em rodízio e de modo diverso o caderno coletivo, configuram o movimento dos encontros e de situações compartilhadas que podem levar a uma compreensão comum, não exatamente igualitária ou hierárquica; cada um/a, na página em branco, deixa, a seu modo, marcas de seu pensar, de seu querer, de seu posicionamento frente a questões que emergem em uma aula. São questões que emergem e remetem a estarmos atentos a questões de outra natureza.
Há desigualdade nas manifestações da inteligência, segundo a energia mais ou menos grande que a vontade comunica à inteligência para descobrir e combinar relações novas, mas não há hierarquia de capacidade intelectual. É a tomada de consciência dessa igualdade de natureza que se chama emancipação, e que abre o caminho para toda aventura no país do saber. (RANCIÈRE 2002, 38)

Para além de qualquer compreensão mútua, de consenso pedagógico, ou de pretensas mudanças, como registrado por uma aluna “ninguém vai pensar em todo o sentido de ‘ensinar’, da responsabilidade de participar da formação de alguém em um semestre, às quintas-feiras. Muito menos em sala de aula” (Caderno, 2009), a intenção posta neste texto, ao problematizar a escrita como movimento que potencializa a emancipação, remete a mais uma das considerações de Rancière, em seu diálogo com Jacotot,
A consciência da emancipação é, antes de tudo, o inventário das competências intelectuais do ignorante. Ele conhece sua língua. Ela sabe, igualmente, usá-la para protestar contra seu estado ou para interrogar os que sabem, ou acreditam saber, mais do que ele. Ele conhece seu ofício, seus instrumentos e uso; ele seria capaz, se necessário, de aperfeiçoá-las. Ele deve começar a refletir sobre essas capacidades e sobre a maneira como as adquiriu (RANCIÈRE, 2002, 47).

            Finalizamos, por ora, este texto; a posição de inacabamento, de incompletude de pensamento assumida de início, quando o tema é a emancipação potencializada pelo exercício da escrita, talvez dê força à indagação: o que pensamos que podemos fazer com isso?
           
Referências bibliográficas
BAJTIN, Mijail M. La palabra en la vida y la palabra en la poesía. Hacia una poética sociológica. In: Hacia una filosofía de lacto ético. De los borradores: Y otros escritos. Barcelona: Anthropos; San Juan: Universidad de Puerto Rico, 1997.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
CUNHA, Maria Isabel. Aula universitária: inovação e pesquisa. In: LEITE, D.; MOROSINI, M. Campinas: Papirus, 1997.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 

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