quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Jean Carlos Gonçalves

Educação em Teatro: Diálogos com Bakhtin[1]
Jean Carlos Gonçalves[2]
Universidade Federal do Paraná

Ao falar de um processo, tendo participado dele, o autor sempre vai fazê-lo a partir da sua ótica, portanto os registros aqui contidos narram minhas experiências e vivências durante este processo, que para cada pessoa se deu de uma forma diferente.
(Autor de um memorial de prática de montagem teatral)

Esse texto tem como objetivo refletir sobre a educação em teatro na perspectiva bakhtiniana, a partir de algumas questões levantadas durante meu percurso enquanto doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. Descrevo, primeiramente, o percurso da pesquisa, que obviamente não poderá ser apreendido totalmente nestas poucas linhas, e em seguida falo da maneira como a investigação suscita outras questões, outras reflexões, para além daquelas levantadas no texto descritivo da tese. Na primeira parte do texto o tom é mais acadêmico. Na segunda meus critérios são outros, mais voltados a devaneios de um apaixonado pelos diálogos com Bakhtin.
O estudo consistiu na análise de memoriais de prática de montagem, escritos por acadêmicos formandos do curso de Bacharelado em Teatro-Interpretação da Universidade Regional de Blumenau, em Santa Catarina. Na ocasião, dois memoriais, um de 2007 e outro de 2008, formaram o corpus de análise. O primeiro falava do processo de criação do espetáculo teatral A vida é sonho?, de Calderón de La Barca e Tzvetan Todorov. O segundo, do processo vivenciado na montagem do espetáculo Era uma Vez outra História, de Fátima Ortiz.
Os enunciados dos acadêmicos apontaram para diferentes vozes que permeiam a criação teatral no contexto universitário. Para organizar o texto da tese, e dar conta (?) da análise de uma forma que fosse possível um diálogo sincero com os dados, dividi a discussão em dois grandes temas: Vozes da educação no teatro e Vozes do teatro na educação. Com a plena consciência de que eu, enquanto pesquisador, realizo escolhas ao me debruçar sobre a materialidade enunciativa, esses dois grandes temas passaram a nortear meu diálogo com os memoriais. A partir do pensamento bakhtiniano de que nas ciências humanas “a investigação se torna interrogação e conversa, isto é, diálogo” (BAKHTIN, 2006, p. 319), a pesquisa foi alterando meus modos de pensar o próprio teatro e sua relação com a educação.
O tema Vozes da educação no teatro surgiu das aproximações entre enunciados a partir dos quais foi possível compreender os modos como as vozes da educação estavam presentes na montagem dos espetáculos teatrais. Vozes que sinalizam o imaginário social de professor como um condutor de processos, e para o qual se direcionam todas as responsabilidades da montagem cênica, desde a escolha do texto, passando por definições de espaço cênico e correntes interpretativas a serem utilizadas durante o processo de trabalho. Vozes de autoridade, vistas na maneira como as sugestões docentes figuravam entre os memoriais, e aproximadas do que Bakhtin (1998) chamou de palavras persuasivas interiores. Vozes de avaliação, encontradas nas descrições dos sujeitos sobre a forma como o professor olhava as criações dos acadêmicos, de fora, sem efetiva participação, de sua posição enunciativa. Vozes que nomearam o processo como um evento educacional, a sala de ensaio como sala de ensaio, isso porque é impossível negar a esfera da qual se fala (Bakhtin, 2006). Os sujeitos escreveram sobre as montagens teatrais, mas elas aconteceram em um contexto educativo, por isso as vozes da educação foram tão recorrentes nos enunciados.
A outra discussão, Vozes do teatro na educação, foi composta por dizeres nos quais as vozes do mundo teatral estavam mais destacadas. Enunciados que falavam de um fazer teatral exterior à universidade, mas que adentrou o ambiente acadêmico por razões distintas. Vozes do processo colaborativo de criação cênica, unidas a uma tentativa de trabalho nestes moldes no contexto do ensino superior. O que levou-me a apontar indícios de que um processo artístico efetivamente colaborativo em contextos educacionais é impossível, em virtude das relações educacionais e seus jogos de força. Aliás, são as forças enunciativas (centrípetas e centrífugas (BAKHTIN, 1998)), o interesse de discussão das relações de grupo no teatro. O teatro de grupo é um modelo de criação alternativo ao teatro dito comercial. Ele apareceu de forma esmaecida nos enunciados dessa pesquisa, mas de modo que fosse possível averiguar sua presença nas entrelinhas dos dizeres. Os sujeitos falaram das relações de grupo como consciência necessária a quem faz teatro. Os conflitos, dissensões e intrigas eram amenizados quando escritos, pois os memoriais são documentos oficiais que passam pelo crivo avaliativo dos docentes. Na perspectiva bakhtiniana, o sujeito enuncia respostas ativas a dizeres anteriores, e do mesmo modo, sabe a quem endereça seu dizer. Por isso, a análise nesse viés precisa considerar a esfera de produção enunciativa como intrínseca ao próprio ato de enunciar.
Além das questões apontadas, a pesquisa suscitou outras possibilidades de investigação, como a aproximação entre educação, linguagem e teatro. Questões que têm me inquietado ao participar de eventos na área de teatro e educação. Os estudos em teatro e educação têm ganhado espaço na academia, por diferentes perspectivas, poucas delas, no entanto, agregam a linguagem.
Nas licenciaturas os nomes mais conhecidos são de Viola Spolin, Jean-Pierre Ryngaert e Keith Jonhstone, quando o assunto são os jogos teatrais e a improvisação. Biange Cabral é responsável, no Brasil, pela divulgação do drama como método de ensino em teatro, assim como Flávio Desgranges tem contribuído fortemente para a área da pedagogia do espectador. (CARREIRA;CABRAL, 2006 & DESGRANGES, 2008) Essas e outras correntes, todas, poderiam dialogar com os estudos do Círculo de Bakhtin, o que acontece raramente. O fator mais evidente na obra bakhtiniana é o sujeito, como ser falante, como parte de um todo, que interage e se constitui nas relações. O que é o teatro senão um espaço de relações? O que é a pedagogia em teatro senão um campo fértil de análise das vozes que constituem esses sujeitos?
Basta olhar para os participantes de uma montagem cênica que trabalham nas diferentes áreas abarcadas pela maquinaria teatral: o ator, o diretor, o autor, o cenógrafo, o iluminador, o sonoplasta, o maquiador... Tantas responsabilidades, tantos sujeitos, todos com um objetivo em comum: fazer teatro. Na educação em teatro não há profissionais, mas pessoas em formação, que desenvolvem suas funções para que os objetivos de um grupo sejam alcançados. Nesse sentido, fazer teatro, não importa em que instância, implica sempre uma relação educacional, pois há aprendizado, divisão de responsabilidades, constituindo os sujeitos em meio às interações.
Com Bakhtin é possível escutar o que esses sujeitos têm a dizer, tanto sobre suas práticas cênicas, ao escreverem sobre elas, ou em meio à própria interação intrínseca aos processos teatrais. Uma escuta sensível, calcada no desejo de compreensão do outro. Escuta que é também olhar, diálogo, troca de palavras. Mais que troca, constituição, inclusive do próprio pesquisador que, nessa perspectiva, permite-se à alteridade no maior grau de sentido que ela possa ter.
Estudar o teatro é estudar dizeres. “Dizeres” é o escopo de interesse do Círculo de Bakhtin. A pesquisa em educação, de uma forma ou de outra, é uma arena de diálogos, o que também interessa ao Círculo. Porque, então, Bakhtin ainda não é um nome conhecido nos estudos em teatro-educação?
Se há sujeitos envolvidos, há enunciados que permeiam o evento teatral, tanto em processo como em cena. Há, antes do ensaio, os textos prontos, de autores novos ou consagrados, as autorias contemporâneas baseadas na coletividade, tudo à espera de análise... Há ainda o espectador, que também quer ser ouvido, que tem o quê dizer depois que assiste a um espetáculo teatral... Há a critica, que publicada ou não, é enunciado, e diz muito sobre o ser, seja ele o próprio autor da crítica ou quem a recebe... Essas são alguma das possibilidades de pesquisa em teatro e educação que poderiam ser realizadas na perspectiva bakhtiniana.
Não quero com esse texto delimitar uma área de estudo, nem tampouco dizer como ou o quê se deve fazer para a realização das aproximações propostas. Minha tarefa é menor, menos pretensiosa: quero sugerir, apenas. Se a sugestão surtir ao menos o efeito de fazer pensar, já me darei por satisfeito.
O viés bakhtiniano defende uma compreensão que é “ativa, dialógica, que é busca de sentido, que contém a possibilidade da contrapalavra ou da réplica, e que é, portanto, interpretação responsiva.” (KRAMER, 2007, p. 183). É de um tanto da noção de responsividade que carecem os estudos teatrais. A compreensão dos processos interacionais, e da própria linguagem enquanto jogo de relações dialógicas, se unida ao teatro, muito tem a contribuir para leituras e escutas, pesquisas que estão por vir.
Minha provocação fica como convite. Um convite a pensar Bakhtin para mais uma área de estudo. Seu legado que é significativo na linguagem, chega já à filosofia, antropologia, ciências naturais, sociologia, educação... Proponho seu nome para integrar o rol de intelectuais utilizados nas pesquisas em teatro-educação, este tão adepto de participações especiais. Que Bakhtin possa participar da vida acadêmica dos teatreiros pesquisadores de plantão, de maneira significante nos próximos anos!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Ed Martins Fontes, 2006.
______. Questões de literatura e estética. A teoria do romance. 4. ed. São Paulo: UNESP, 1998.
CARREIRA, A. CABRAL, B. (org) Metodologias de Pesquisa em Arte Cênicas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
DESGRANGES, F. Pedagogia do teatro: Provocação e Dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2006.
KRAMER, S. Linguagem e tradução: um diálogo com Walter Benjamin e Mikhail Bakhtin. . In: FARACO, C. et alli. Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Editora UFPR, 2007


[1] Esse artigo é resultante do projeto Teatro e Universidade em Discurso, cadastrado na base de dados do Sistema Banpesq/Thales da UFPR, sob o número 2009024066; e foi submetido ao edital 06/2011, de apoio a participação em eventos, da Fundação Araucária.
[2] Professor da área de Práticas Cênicas na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bacharel e Licenciado em Teatro-Interpretação e Mestre em Educação pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Atualmente está em fase de finalização do curso de Doutorado em Educação (UFPR), e integra o grupo de pesquisa Linguagem e Educação, sob supervisão do professor Dr. Gilberto de Castro.

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