quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Marisol Barenco de Mello

Autorias infantis: o brincar como exotopia
Marisol Barenco de Mello
Universidade Federal Fluminense – UFF

Numa tarde chuvosa, em uma escola pública de Niterói, RJ, um grupo de crianças com idades entre 9 e 11 anos, discutia como o fermento fazia um pão crescer. Como parte de um projeto de trabalho que tinha como tema os microorganismos, a discussão não seria algo extraordinário, a menos que pudéssemos conhecer esses meninos e meninas há alguns meses atrás. Brigas, gritos, tapas e palavras rudes caracterizavam o cotidiano dessa turma de crianças moradoras de bairros pobres da cidade, que no trabalho com a professora da turma, duas bolsistas do projeto PIBID da Universidade Federal Fluminense e uma bolsista de ensino médio começaram a ler, ouvir histórias, falar sobre elas, conversar na roda, pensar sobre conhecimentos. Nessa tarde, o assunto da conversa era o crescimento da massa do pão, e de assunto em assunto, uma lista de perguntas sobre microorganismos surgia. Queriam saber sobre vacinas, sobre as doenças causadas por fungos e bactérias, sobre a reprodução dos fungos, sobre a possibilidade dos bebês serem contaminados por vírus no útero de suas mães, entre outros assuntos. A professora e a bolsista PIBID propuseram a brincadeira: vamos fazer massa de pizza e ver o que acontece quando o fermento biológico age sobre a massa. A atividade começou às 13h, e até às 18h as crianças e adultos interagiram intensamente, conversando, fazendo a massa, registrando a receita, observando o crescimento, fazendo pizzas, esperando assar no forno e comendo no coletivo. A atenção ativa das crianças, as suas formas de apropriação dos objetos, dos nomes, das idéias, a relação que fizeram com relatos de sua vida, muito me impressionaram, e me incentivaram a escrever essa reflexão. Pude pensar, nos diálogos que circularam na sala, no pátio, na cozinha e refeitório, que as crianças brincam e, nessa ação responsável, pensam, transformam suas vivências em experiência, e me proponho a tentar discutir a possibilidade de pensarmos o brincar infantil como exotopia, talvez uma ação que possamos caracterizar como autoria infantil.
Em novembro de 2010, fomos participar de um evento na Universidade Federal de São Carlos, intitulada Rodas Bakhtinianas. Fomos impelidas pela curiosidade, já que o evento pretendia discutir os estudos contemporâneos brasileiros realizados a partir do trabalho sobre Arte e Responsabilidade, de Bakhtin, principalmente os estudos que vem se nutrindo da relação entre ética, estética e conhecimento. Nesse evento, ouvimos o professor Ponzio e o professor Geraldi versando sobre a teoria bakhtiniana de modo, a nosso ver, a trazer contribuições para outras formas de pensar o conhecimento. Muito mobilizadas por essas falas e pelo evento, de modo geral, começamos a estudar a literatura atual sobre o tema, e propusemos um projeto de pesquisa intitulado Alfabetização por projetos de trabalho: ler é conhecer o mundo, nos dispondo tanto a acompanhar os sujeitos participantes do projeto, quanto estudar as teorias que nos parecem promissoras. A fala do professor Ponzio (2010) que podemos marcar como disparadora de nosso movimento foi quando este disse que, segundo Bakhtin, “não se pode ensinar a língua sem a Literatura”.
Segundo esses autores, quem escreve não faz mera transcrição ou toma notas, mas muito mais que isso, transcria a vida e a experiência por meio da linguagem escrita. Para ensinar uma criança a ler e a escrever precisamos recuar, e ver a vida não como ela é – tarefa do transcritor – mas dela tomar distância e, saindo do seu papel, ver-se no duplo que a escrita permite.
As relações sociais como as escolares são, antes disso, relações humanas, ou seja, relações entre seres humanos concretos, históricos e com uma história pessoal, “sujos do mundo”, e não seres etéreos dos manuais humanistas. Cada um que cruza nosso caminho é ao mesmo tempo a alteridade radical com quem dialogamos sem sínteses, e partilha conosco um tempo e um lugar, referências culturais e pertencimentos sociais. O conceito de alteridade precisa estar bem pensado ao falarmos dos encontros humanos, alteridade essa que não é sinônimo de diferença, mas de outredade. Essas relações são mediadas pela palavra, mas que palavra é essa a qual nos referimos? Para além dos discursos monológicos que a escola se encontra repleta, a opção é pela via da palavra literária. “O texto literário excede o que lhe é contemporâneo” (Bakhtin, 2010).
O que ocorre é que pela e na literatura que media a instauração de outro diálogo, acontece o que Bakhtin chama da escuta como arte da palavra. Augusto Ponzio define essa propriedade única da palavra literária que instaura um sentido capaz de ultrapassar os silêncios da palavra imposta:
O calar da palavra literária desvia o sentido, subvertendo não o conteúdo, mas a própria prática do sentido, desnorteando a prática da significação com a da significância. Libera os significantes, que recusam assim os percursos interpretativos, os significados habituais. (...) O universo da palavra literária é aquele da alteridade, da polifonia, do plurilogismo, do diálogo, da escuta como espaço interpessoal, no qual “eu escuto” quer dizer também “ouça-me” (Roland Barthes). (PONZIO, 2010, p. 50)
(...) o discurso indireto livre não é simplesmente um modelo sintático; expressa também uma preferência ideológica especial, uma forma particular de consciência do intercâmbio lingüístico; indica condições socioeconômicas especiais e realiza uma comparação entre linguagens, estilos e ideologias diferentes; converte em relativos os pontos de vista; desbarata a palavra monológica. (PONZIO, 2009, p. 65)

Esse feito, segundo Bakhtin (1992), é obtido por meio da atividade estética, que no caso de nosso projeto é a Literatura Infanto-juvenil. Dessa forma, buscamos pensar uma alfabetização como processo discursivo onde a Literatura Infanto-juvenil é a ferramenta alfabetizadora por excelência, assumindo a estética como fundadora dos processos éticos e cognitivos. A partir do trabalho com a leitura e a escrita de Literatura Infanto-juvenil, buscamos a formação de um leitor escritor que dialogue os saberes literários com os saberes da vida e, nessa teia, invente a si e ao mundo, conheça a si e às coisas, aprenda a dizer, a ouvir, a ler e a escrever no diálogo transcriador.
Nesse processo, o conceito de autoria é ressignificado, devendo referir-se a atividade daquele que, deslocando-se do imediato que o discurso direto é signatário, pelo efeito de exotopia que o texto literário proporciona, toma distância de sua vida e a ela pode narrar. Nossa tentativa, a partir da provocação que Ponzio nos conclamou, foi a de investir maciçamente na leitura e escrita a partir da experiência estética com a Literatura Infanto-juvenil, buscando compreender como a criança incorpora essa linguagem em suas formas de dizer, de pensar, de fazer em sua caminhada na alfabetização. Dizendo de outra forma, ao investir na crença de que a Literatura Infanto-juvenil propicia um distanciamento estético em relação ao mundo, observar os movimentos infantis produzindo-se como autores de suas formas de dizer, dizendo seu mundo e suas vivências em leituras, escritas, dizeres e fazeres.
O que observamos, porém, é que a criança age responsavelmente, mas a seu modo, e esse modo é o brincar. Mas o que teria o brincar infantil que ver com isso? Há algum tempo vimos refletindo sobre o conceito do brincar infantil, que tão bem tem sido trabalhado por importantes autores contemporâneos. Especialmente aprendemos sobre o conceito do brincar com Borba (2006), compreendendo que brincar é a atividade infantil por excelência, forma de expressão de seu pensamento, de sua afetividade, lugar onde se consolidam suas experiências sociais, culturais e cognitivas.
Observamos o brincar infantil, nessa tarde de fazer pizza, tanto nas atividades práticas quanto nos discursos que circulavam pelas ações. A foto abaixo mostra o momento em que muitas mãos amassam a massa, antes de estar crescida, que elas acariciavam enquanto discutiam sobre a textura e as surpresas que esperavam.



Mais adiante, a massa cresceu, e as crianças discutiam quantas vezes ela tinha crescido, e se estaria mais “fofa” em sua textura, já que não havia acréscimo de outros materiais. Nesse momento começaram a fazer suas pizzas, brincando de padeiros e discutindo sobre o tamanho que as pizzas tomam pela manipulação. Acostumadas a competir entre si e a brigarem muito, surpreendeu-nos como foram solidárias, pacientes na espera e colaborativas umas com as outras.



Então, a professora recheou as pizzas, no tabuleiro, e colocou no forno. Entre o refeitório e a cozinha – lugar proibido para as crianças – há um balcão com um vidro, e as crianças colaram os narizes no vidro, observando os fornos fechados. Elaine, uma das bolsistas, me disse: parecem pais na maternidade. Katlin, de 9 anos, virou-se para mim e disse: “você acha que meu bebê está bem, ali naquele lugar?”


Terminada a espera, comeram a pizza conversando sobre famílias, gostosuras, passeios de domingo e comidas. A saída do colégio é às 17h, e até as 18h ainda ali estavam apreciando seus fazeres, discutindo sobre diferentes saberes, dialogando enfim. Brincaram de fazer pizza, de padeiros, de pais na maternidade, entretecendo seus modos infantis de ser, pensar e agir com a ação proposta como diálogo pelos adultos.
Ao estudarmos o conceito de exotopia em Bakhtin, nos aproximamos das reflexões sobre o brincar.  A exotopia é o colocar-se de fora, é a ação humana que, por meio da atividade estética, desloca-se do eu sou inexorável da realidade existencial e no intervalo que possibilita ver-se no duplo pergunta-se, esse sou eu? Observadores dos processos infantis do brincar, é inevitável pensarmos que essa atividade infantil por excelência configura-se como situação estética que propicia a exotopia bakhtiniana. Podemos ir mais longe: a criança brinca para pensar o mundo. E brinca com objetos, brinca com a língua, brinca nas práticas, no diálogo consigo mesmo e com os outros. Estendendo o conceito de brincar como exotopia, podemos observar nas diferentes práticas infantis insinuar-se o brincar como autoria, ou seja, como o processo onde, brincando como atividade estética exotópica, a criança insere-se no mundo e o compreende. Nesse sentido, o conceito de imitação vygotskiano pode ser revisitado, pensando em como nas muitas iterações – aproximações repetidas, porém ressignificadas – as crianças compreendem o mundo a partir de sua emergência distanciada nos seus processos, apropriando-se das diferentes ferramentas culturais, epistêmicas e cognitivas no seu uso, em ação.
Gostaríamos de afirmar que é nesse processo também que as crianças vivem suas infâncias, tecendo experiências onde constroem conhecimentos enquanto constroem a si mesmas na relação com esses saberes, fazeres e modos de pensar. Em alguma medida, pensamos que a reflexão infantil é elaborada nesse processo, já que ainda lhes é incipiente o distanciamento que a linguagem reflexiva permite, ao adulto. Quiçá, o brincar como exotopia seja uma forma infantil de reflexão, tomando a palavra no seu sentido etimológico: dobrar-se sobre si mesmo. Entretanto, no momento vimos pesquisando a continuação da atividade, reapresentando às crianças os episódios por elas vividos, oportunidade que tem de narrar o vivido e ressignificá-lo em outras tantas reflexões. Mas isso já é outra história.
Não se chega a uma criança pela via direta, a não ser por meios nos mais das vezes violentos, e nesse momento não é como criança que elas respondem. Entendemos, nessa tarde de brincar de padeiros e pais, que a brincadeira que elas viveram foi discurso indireto, onde as experiências se consolidaram na ação responsável. Para nós que partilhamos esse momento, a autoria infantil teceu a atividade, ética, estética e cognitivamente, nos ensinando sobre os modos de ser criança no mundo e, por que não, na escola.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. M. (1992). Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes.
BAKHTIN, M. M. (2010). Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos : Pedro & João Editores.
BORBA, A. M. (2006) O trabalho por projetos na Educação Infantil. Palestra (ppt).
GERALDI, J.  W. & PONZIO, A. (2010). Onde o estético e o ético se encontram hoje. In: Círculo – Rodas de Conversa Bakhtinianas. São Carlos : Pedro & João Editores.
PONZIO, Augusto. A Revolução Bakhtiniana. São Paulo : Contexto, 2009.

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