quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Rita de Cássia Cristofoleti, Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto

As relações de ensino produzidas na sala de aula e a constituição da subjetividade da professora e de seus alunos segundo a teoria enunciativa discursiva de bakhtin
Rita de Cássia Cristofoleti
Mestre em Educação
Faculdade Cenecista de Capivari – FACECAP
Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto
Doutora em Educação
Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP

Introdução
Este estudo faz parte de uma pesquisa desenvolvida entre os anos de 2001 a 2003 em uma escola municipal da cidade de Piracicaba, interior do estado de São Paulo, buscando apreender na dinâmica das relações de ensino produzidas na sala de aula indícios de como a professora e seus alunos foram se constituindo e configurando saberes, modos de ensinar e de aprender e conhecimentos sobre si mesmos. A opção nesse trabalho foi a de olhar para o que acontecia na sala de aula a partir de distintos focos, buscando uma aproximação da história de seus protagonistas e da história de suas relações.
Ancoradas nos princípios da abordagem enunciativa discursiva assumida por Bakhtin, privilegiamos nesse estudo, as situações de sala de aula em que a linguagem e a dinâmica interativa produzida nos dessem pistas de como alunos e professora iam se constituindo como sujeitos singulares.
Segundo Bakhtin (1999, 2000), os modos de constituição dos sujeitos – seus modos de ser, agir e pensar sobre o mundo e sobre eles mesmos – são construídos e reconstruídos nas relações sociais produzidas com a linguagem, pela linguagem e sobre a linguagem.
É através do plano intersubjetivo, da relação do sujeito com o outro, que as funções psicológicas internalizam-se, constituindo-se em plano intrasubjetivo. Assim, as funções psicológicas superiores são marcadas pela apropriação, pela elaboração e pelo uso de recursos mediacionais internalizados.
Segundo essa concepção, a individuação vai se configurando nas transformações do plano intersubjetivo (relação entre pessoas) num plano intrasubjetivo, em condições concretas de produção.
A linguagem, como o principal sistema simbólico humano, desempenha um papel fundamental na constituição do psiquismo. Central na comunicação entre os indivíduos e no estabelecimento de significados compartilhados, a linguagem lhes permite apreender e organizar os objetos, eventos e situações do mundo real, bem como instaurar e regular as relações que estabelecem entre si e em relação a si mesmos.
Nesse sentido, a linguagem desempenha um papel essencial na ação dos sujeitos históricos, que se constituem na relação com o outro – ela é segundo Kramer (1993, p.90), “constituidora da consciência e organizadora da ação humana”.
Assim, Bakhtin (1999, p.35) destaca que a nossa subjetividade se constitui nas relações sociais mediadas por signos.
Não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode constituir-se.

Nessa perspectiva, nosso discurso não é propriamente nosso, mas sim o resultado das apropriações que fazemos dos signos compartilhados nos dizeres dos outros.
Na realidade, o ato de fala, ou mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de natureza social. (BAKHTIN, 1999, p.109).

Tendo a enunciação uma natureza social, para compreendê-la é necessário entender que ela se dá sempre nas interações entre sujeitos organizados socialmente. É no contexto da relação entre sujeitos que os dizeres, os enunciados vão sendo produzidos. “A dinâmica de elaboração e de circulação de sentidos produzida nas interações” (FONTANA, 2003, p.70) é o que Bakhtin vai chamar de dialogia.
A dialogia é a categoria básica de sua concepção de linguagem. Ela refere-se tanto ao fato de que a linguagem se produz entre sujeitos, quanto ao fato de que as próprias elaborações que consideramos "individuais" são, na verdade, um feixe de enunciações alheias que já nos constituem.
Ou seja, a linguagem é dialógica por ser produzida na relação de quem fala e de quem ouve e também porque os dizeres de cada um dos interlocutores incorporam e respondem aos dizeres do outro presente na relação, e aos dizeres de outros que já fazem parte desses sujeitos. Segundo Bakhtin (1999, p.113) “[...] A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor”.
Bakhtin (2000, p.319) destaca que os significados e os sentidos de uma palavra não existem em si mesmos, como algo já dado. Eles são elaborados nas enunciações concretas, e nesse sentido “[...] o enunciado, reflete o processo verbal, os enunciados dos outros [...]”.
As enunciações são sempre parte de um diálogo social ininterrupto. Elas remetem aos enunciados que as precedem e afetam os enunciados que se seguem a elas. Elas retomam enunciados já proferidos, tonalizando-os de nuances singulares às suas condições de produção, bem como marcam a compreensão responsiva ativa que suscitam.
Para Bakhtin, as condições imediatas e mais amplas de produção dos enunciados, mesmo não se constituindo como elementos verbais, são centrais aos significados e aos sentidos nelas produzidos. Para este autor (1999, p.113) "a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação”.
Frente a esses aspectos, Bakhtin considera que falante e ouvinte não interagem com a linguagem como se ela fosse um sistema carregado de normas, ainda que essas normas existam e pautem as interlocuções produzidas, as palavras são carregadas de sentidos, sentidos que nascem na relação social de interlocução e que são marcados pelos valores, pela vivência, pelas ressonâncias ideológicas que configuram os sujeitos em interlocução.
Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida (BAKHTIN, 1999, p.95).

Portanto, a palavra focalizada a partir do princípio dialógico de Bakhtin revela-se sempre múltipla e interindividual. “Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros” (BAKHTIN, 2000, p. 378).
Considerando as questões referentes à linguagem como constitutiva dos modos de elaboração dos sujeitos, podemos dizer que nas relações de ensino socialmente constituídas, alunos e professores são sujeitos interativos, que elaboram os conhecimentos sobre os objetos e sobre si mesmos, os modos de ensinar e de aprender, num processo sempre mediado por seus muitos outros e constituído pela linguagem.
As relações sociais, e dentro delas as relações de ensino, são constitutivas tanto dos conhecimentos apropriados e elaborados pelos sujeitos, quanto da configuração de sua subjetividade, tanto dos modos de ação e de dizer de que se apropriam, quanto de suas histórias singulares. A subjetividade vai se constituindo na diversidade das relações sociais vividas e essas relações por sua vez, são mediadas pela palavra.
Nesse sentido, os conhecimentos (escolares e não escolares) e o conhecimento de si mesmo como pessoa, nascem e se desenvolvem nas relações sociais. Eles são de natureza intersubjetiva. As relações sujeito-objeto e sujeito-sujeito são sempre mediadas pelo outro, pelas práticas culturais e pela linguagem. Assim, assume-se o pressuposto de que os processos psicológicos emergem e consolidam-se relacionados aos modos de vida dos indivíduos em interação.
Vistas dessa perspectiva, as escolas, e dentro delas as salas de aula, são um ponto de cruzamento entre indivíduos distintos, portadores de histórias distintas. Nelas, a vida social reflete-se e se refrata em dramas singulares.
No espaço escolar, ocorre uma iniciação deliberada da criança na elaboração sistematizada de conceitos relativos aos saberes escolares, num processo em que a mediação do adulto se diferencia da mediação realizada na atividade mental centrada sobre a vida cotidiana. Na vida cotidiana, adulto e criança interagem espontaneamente, não há um planejamento prévio das ações do adulto com relação ao seu ensinar e ao aprender da criança. Segundo Fontana e Cruz (1997, p. 111) "[...] a atenção de ambos está centrada na própria situação e não na atividade intelectual que estão desenvolvendo enquanto a vivenciam".
Já na relação de ensino, a mediação do adulto é deliberada e explícita. A criança, segundo Fontana (2000, p. 21-22):
[...] tem uma imagem socialmente estabelecida, do papel do professor e do papel que é esperado dela nesse contexto. [...] Acompanhada de seus conceitos espontâneos, a criança procura raciocinar junto com o professor, tentando reproduzir as operações lógicas utilizadas por ele.

Isso significa que nas relações de ensino, tanto a professora, quanto os alunos afetam-se reciprocamente, ensinando e aprendendo. O conhecimento que eles constroem se dá num processo de interdiscursividade, num espaço de elaboração inter e intrasubjetivo. Nessas relações, professora e alunos apropriam-se também de modos de apresentar-se como sujeitos, que constituem a sua individualidade.

Em busca das relações de ensino produzidas na sala de aula
Para analisar as relações estabelecidas em uma sala de aula entre uma professora e seus alunos, este estudo ancorou-se nos postulados teóricos de Bakhtin, nos quais propõem que se analisem as relações enunciativas nas suas condições concretas de produção. Segundo ele (1999, p.125), “enquanto um todo, a enunciação só se realiza no curso da comunicação verbal, pois o todo é determinado pelos seus limites, que se configuram pelos pontos de contato de uma determinada enunciação com o meio extraverbal e verbal (isto é, as outras enunciações)”.
Assim, no registro das relações de sala de aula, considerando com Bakhtin que os sentidos produzidos e postos em circulação nas interações dependem dos interlocutores e das condições sociais imediatas e mais amplas em que elas ocorrem, não nos ativemos apenas aos conteúdos enunciados pelos sujeitos, mas ao jogo interlocutivo em que seus dizeres foram sendo produzidos e singularizados.
Assumindo uma concepção de sujeito que se constitui nas relações concretas de vida social, as situações de análise tornaram-se um importante exercício de olhar (GÓES, 2000), procurando através do (in) visível a multiplicidade de possibilidades de se configurar e de se apresentar como sujeito nas práticas sociais.
Dessa perspectiva, dirigimos nossa atenção para gestos, falas e produção gráfica de professora e crianças buscando nelas apreender como esses sujeitos liam e participavam das relações de ensino, dos sentidos produzidos na sala de aula e dos sentidos produzidos em relação a eles na escola.
Privilegiamos também os momentos de chegada dos alunos e das professoras na escola, conversas entre as crianças, conversas entre as professoras, as queixas das pessoas que trabalhavam na escola com relação à professora e com relação à classe estudada, as queixas da professora com relação a sua classe e com relação à escola, conversas que as crianças tinham conosco fora classe, no pátio, durante o intervalo.
Os contatos verbais feitos com a professora da classe, com as pessoas que trabalhavam na escola, e com os alunos não nasceram de entrevistas, mas das circunstâncias da sala de aula e dos acontecimentos ocorridos na escola. Pelo fato de estarmos na escola semanalmente e de termos nos aproximado da professora e das crianças nas relações de ensino que vivenciavam, os contatos verbais foram se produzindo em situações e momentos diversos, sendo ora por nós instaurados, ora pelos sujeitos que vinham compartilhando conosco seu cotidiano. Essas interlocuções, tanto quanto os comentários acerca da escola ou das situações de sala de aula, que nelas eram tematizados, decorriam da circunstância de estarmos na sala de aula, participando daquilo que era produzido entre a professora e seus alunos.
Procuramos no decorrer de nossa estadia na escola apreender os sentidos produzidos e postos em circulação pelos interlocutores envolvidos e explicitar as condições verbais e extraverbais de produção das situações em que estavam inseridos.
Essa familiaridade com os dados registrados permitiu-nos identificar características das situações vividas na escola. Fomos percebendo que entre as pessoas da escola, havia aquelas que indiciavam o olhar da professora sobre os seus alunos; outras que indiciavam o olhar das crianças sobre os alunos que não conseguiam aprender. Essas características deram-nos pistas de outros critérios possíveis de seleção e organização dos dizeres postos em circulação, tais como os protagonistas que neles se destacavam por instaurar distintos pontos de vista, a partir dos quais as relações produzidas na sala de aula eram focalizadas e significadas.
Essa forma de organização dos dados permitiu-nos traçar as trajetórias de aproximação, de afastamento e de colisão produzidas entre os sujeitos das/nas relações de ensino. Tais trajetórias, instaurando instâncias diferenciadas de pertencimento, afetavam tanto a organização do ensino, quanto os processos de elaboração daquilo que era ensinado; afetavam as possibilidades de acesso dos sujeitos a seus interlocutores e as modalidades de interlocução que se estabeleciam entre eles.
Segundo Amorim (2001, p.16) “não há trabalho de campo que não vise ao encontro com um outro, que não busque um interlocutor. Também não há escrita de pesquisa que não se coloque o problema do lugar do outro no texto”. E nesse aspecto, Amorim (2001) refere-se aos desafios de um texto que pretenda manter a pluralidade de vozes que nele falam.
No caso deste trabalho, a inquietação dizia respeito ao lugar dos sujeitos da pesquisa no texto. Como materializar, pela/na escrita, a singularidade de seus pontos de vista e as trajetórias de aproximação, de afastamento e de colisão produzidas entre eles, sem perder de vista a configuração produzida pelo conjunto de suas relações?
Voltando-se para a teoria de Bakhtin, Amorim (2001, p. 140) sugere que a natureza das vozes que falam em um texto não pode ser pensada como individual ou psicológica, nem tampouco caracterizada como um estatuto formal ou abstrato. “Para se tornarem [explicitadamente] dialógicas” – assinala – “é preciso que as relações se encarnem: transformem-se em enunciados em um dado contexto de enunciação”.
Nesse sentido, a visibilidade intencional das vozes dos sujeitos da pesquisa implica a visibilidade da dinâmica interativa em que se materializam, como pontos de vista coexistentes e concorrentes.
Desdobradas nos fragmentos, as relações de ensino estudadas revelaram modos singulares de ocupar e de viver os lugares sociais de professora e de alunos, dando a ver um jogo de imagens distintas que os sujeitos, nelas envolvidos, produziam a respeito de seus outros e de si mesmos, refletindo e refratando as condições sociais em que elaboravam essas relações e a si mesmos.

Referências Bibliográficas
AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Editora, 2001.
BAKHTIN, M. (Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. 9.ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FONTANA, R.A.C. Como nos tornamos professoras? 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
FONTANA, R.A.C. Mediação Pedagógica na sala de aula. 3.ed. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2000.
FONTANA, R.A.C.; CRUZ, N. Psicologia e Trabalho Pedagógico. São Paulo: Atual, 1997.
GÓES, M.C.R. A abordagem microgenética na matriz histórico-cultural: Uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade. In: CEDES, n.º 50, p.09-25, Abril, 2000.
KRAMER, S. Por entre as pedras: Arma e sonho na escola. São Paulo: Ática, 1993.

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