quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Elisângela Teles da Silva

Bakhtin e o Dialogismo: Educar para uma interlocução com a vida
Autora: Elisângela Teles da Silva
Instituições as quais pertence :Universidade Estadual de Santa Cruz / Colégio Estadual Paulo Américo de Oliveira

 [...] pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante [...] como a minha palavra, porque, uma vez que eu opero com ela em uma situação determinada, com uma intenção discursiva determinada, ela já está compenetrada em minha expressão.(BAKHTIN, 2003, p. 294)

O ensino, o educar abrange mais do que comunicar o pensamento construído pela humanidade;é ir além da aprendizagem formal, das letras convencionadas. A educação é uma rede para a instrumentalizaçãodo sujeito para o diálogo, na percepção de que faz parte de uma interlocução de amplidão além fronteiras. Não apenas aquela que se processa na comunicação direta ou institucional. Conforme Fiorin (2006), configura-se no diálogo íntimo, simultaneamentemanifestado na percepção do outro, em enunciados que  aderem ou entram em tensão com o discurso alheio.
Segundo Bakhtin o sujeito está sempre em relação ao outro,sua vozconstitui-se como réplica a outros enunciados, apresentando-se ao menos duas vozes, a que se apresenta e outra à qual responde. Há a interpretação do enunciador que se manifesta com pretensa objetividade e porta voz de uma coletividade, no entanto carregada de crenças, pontos de vista pessoais, que ora não deixa de ser o produto de outras vozes, não denotando com isso, o apagamento de uma subjetividade e marca pessoal imbricada em um contexto histórico-social.
Dessa forma, ao educando inserido nesta malha de comunicação infindável, dar-lhe a possibilidade de captar estes fenômenos que se processam na comunicação real, permitirá seu engajamento responsável, na perspectiva de ser ele mesmo sujeito de atos sociais,produtor dediscursos pontuados porvozes outras,os quais assimilados em seu texto, modelam-se a serviço de uma consciência autoperceptiva, de uma rede de relações polifônicas.Sujeito que pautar-se-á por ações não orientadas em sua prioridade por outra consciência externa, mas dadas numa vontade interna sugerida na admissão de sua participação no diálogo, perceptivo de um movimento circulare da sua responsabilidade frente a outros interlocutores.
Normalmente, nas salas de aula o percurso dialógico é pouco vislumbrado, se dando uma tensão entre discente e docente em polos opostos. A voz do outro não é facilmente perceptível nas práticas desenvolvidas no ambiente educativo. A figura de autoridade coloca-se em sua posição de defesa, mal se dando conta da carência mútua de uma relação de alteridade, ou seja, colocar-se no lugar do outro, deslocar-se da visão do transmissor, para a de mediador de conhecimento. Ambos necessitam deste movimento de saída de si mesmo, para conectar-se à posição do outro. Metodologias, procedimentos, seleção de conteúdos e outros, todas essas ações se dão com efetividade ao assumirem a postura dialógica.
Assim, tal qual aborda Fiorin(2006), o princípio dialógico de Bakhtin vislumbra no sujeito seu espaço de liberdade, seu inacabamento; este realmente interage com o universal, atua no palco com as outras vozes sociais,nunca se assujeita ou é submetido completamente. Nesse ínterim, a escola pode ser veículo de um discurso não monológico, não impositivo, não apenas centrada na sanção de direitos e graduadora de normas. Poderá ser local para a construção do verdadeiro diálogo, não deixando de admitir seus limites de autoridade, mas não se fechando na exclusividade enunciadora. Alcançando seus alvos educativos na aplicação de instrumentos que assimilam a característica dialógica da não centralidade, no vislumbre da sua clientela, como constituída de sujeitos históricos e sociais,denotadores do potencial para as variadas formas de interlocuçãoverbal, foco primordial da comunicação humana.
Diante desses fatos, os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental do 3º e 4º ciclos (PCN, 1998) incluem as teorias de Bakhtin, referindo-se ao signo, às ideologias e à sociedade.O documento sublinha: “as práticas de ensino devem partir do uso possível aos alunos para permitir a conquista de novas habilidades linguísticas”(PCN, 1998, p.18), além de mencionar o preparo do sujeito para“dizer alguma coisa a alguém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico e em determinadas circunstâncias de elocução” (PCN, 1998, pp.20-21). O professor diante dessas propostas deve refletir acerca de sua atuação na educação básica de forma a explorar essas teorias na formação do sujeito cidadão constituído na sua própria identidade humana e como integrante de uma coletividade,preparando-o para,no uso da linguagem e dos signos ideológicos, ser capaz da interlocução nas diversas práticas sociais existentes na sociedade, usufruindo do domínio da linguagem “como atividade discursiva e cognitiva”(PCN, 1998, p.19).
Portanto, ao tratar-se das aulas de língua portuguesa,trabalhar a noção de enunciado é tarefa essencial. Devendo haver a exploraçãoda linguagem como recurso de comunicação verbal, constituída para transmitir sentidos que expressam o mundo, a sociedade. Deduzindo-se a postura mediadorado professor não circunscrita a um trabalho exclusivamente gramatical,não focalizando apenas signos. Esse desdobramento fica claro nos PCN na medida em que engaja a linguagem como evento real e simultaneamente revela na mesma, a expressão subjetiva do sujeito interativo.
[...] pela linguagem se expressam ideias, pensamentos e intenções, se estabelecem relações interpessoais anteriormente inexistentes e se influencia o outro, alterando suas representações da realidade e da sociedade e o rumo de suas relações. (PCN, 1998, p.20)

Visando uma condução pedagógica pautada por tais encaminhamentos, vale ressaltar as noções de enunciado em Bakhtin, nas quais sublinhamairrepetibilidade do enunciado, constituindo-o como evento único.Como destacado em Fiorin(2006), a cada vez que este se processa num contexto diferente, num momento novo do tempo, não implicando mudança de sujeito, este evento se renovará com um novo acento, outra apreciação, entonaçãoetc. O sujeito estando imerso em outros discursos anteriormente proferidos, produz em sua comunicação real efeitos de sentido surgidos da interação entre textos, estessocio-historicamente e ideologicamente constituídos. Ainda em Fiorin (2006), a oração, a palavra são unidades completas da língua;no entanto, nelas não há  um acabamento que permita uma resposta. Para assim se constituírem devem estar inseridas na relação dialógica, assumindo-se como réplicas numa dada situação específica, ou seja, imersas na enunciação, vestindo-se do acabamento que permitirá uma resposta de outro sujeito enunciador.
[...] o ouvinte que recebe e compreende a significação (linguística) de um discurso, adota simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa atividade seja muito variável): toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se locutor. (BAKHTIN, 1997, pp. 291-292)

Sendo assim, o enunciado considerado em sua condição deevento comunicativo único, pode tornar “as salas de aulas verdadeiros laboratórios”(BAGNO, 2002, p.32) de estudos metalinguísticos e epilinguísticos. Entendidos respectivamente como um olhar para as construções estruturais da  língua e para uma  ação consciente sobre a mesma.Tal qual se depreende na leitura de rodapé dos parâmetros curriculares nacionais e naslinhas de Estética da criação verbal de MikhailBakhtin :
Por atividade epilingüística se entendem processos e operações que o sujeito faz sobre a própria linguagem (em uma complexa relação de exterioridade e interioridade). [...]Ela se observa muito cedo na aquisição, como primeira manifestação de um trabalho sobre a língua e sobre suas propriedades (fonológicas, morfológicas, lexicais, sintáticas, semânticas[...]. Ela prossegue indefinidamente na linguagem madura: está, por exemplo, nas transformações conscientes que o falante faz de seus textos e, particularmente, se manifesta no trocadilho, nas anedotas, na busca de efeitos de sentido que se expressam pela ressignificação das expressões e pela reconstrução da linguagem, visíveis em muitos textos literários. Por atividade metalingüística se entendem aquelas que se relacionam à análise e reflexão voltada para a descrição, por meio da categorização e sistematização dos conhecimentos, [...] (PCNs,1998, p. 28)

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma das esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais – mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. (BAKHTIN,1997, p. 280)

Importante destacar a proposição de Bakhtin(1993), a respeito do ato responsável, visto por ele como oatoque por ser responsável, é assinado, assumido: o sujeito se coloca diante do cogito, do pensar, posiciona-se  diante do pensamento assumido,é pensado em contraposição, admissão, ou suposição de um outro, significando, primordialmente, o ato de um sujeitoque responde pelo seu pensamento, por sua posição num dado contexto de ideias, posturas, ideais; ciente do reverberar dos ecos de seu discurso em outros sujeitos pensantes.
Diante destas considerações, fica-nos patente a necessidade da escola de buscar concretizar seu alvo principal, “educar”, em práticas eficientes que tratem não apenas deformar mentes aplicadas na cultura intelectual da humanidade, e sim “uma prática educativa para a vida”, que esteja, de fato, materializada em suas ações. O dialogismo é uma proposta que abre caminhos para a formação de um ser humano integral, constituído no e para o outro nas suas relações de comunicação,capaz de deslocar-se enunciadoramente aos diversos contextos, no interpretar e responder a um outro, intervindo na rica trama de enunciações.
Portanto, é necessário asseverar:à  escola cabe a formação tanto crítica quanto comunicativa do aluno. A realidade do ensino direcionada a levaro sujeito à réplica de um diálogo que se processa no âmbito da vida social está diretamente relacionada ao trabalho do professor. O sujeito aprendiz autoconsciente de sua participação,se dará conta de se constituir integrante numa “responsividade ativa”, agente coparticipante da interação na estrutura histórica e ideológica, a sociedade humana da qual faz parte. Instrumentalizado dos conceitos dialógicos que se processam na interlocução dos textos. O aprendiz nessa via,passando a sujeito em pleno uso dos recursos linguísticos, tanto formais, quanto os constituídos por sua ação de modelador do enunciado, exercerá seu papel num mundo de sentidos operantes no entrelaçamento de uma polifonia temporal, espacial, interna e externa e estará apto a demarcar sua identidade, sua existência, representação de saberes culturais, dialogando com um outro amalgamado em várias faces,por vezes fisicamente distantes, no entanto implicadas na proximidade de sua interioridade e responsabilidade enquanto participante das interrelações humanas;trancedendoao tempo,seja o passado, o presente ou o futuro.
A escola, por conseguinte, na figura do professor, deve assumir a sua própria voz, não como admissão passiva das postulações oficiais para a renovação do ensino, mas como vontade interna, respondendo aos próprios anseios por esta reforma, a qual estará sendo efetivada a cada dia, em cada sala de aula, por sujeitos que se colocamcomo agentes “responsáveis” pela transformação.

Referencias
BAGNO, M.;STUBBS, M. e GAGNÉ, G. (2002) Língua materna: letramento, variação & ensino. São Paulo: Parábola.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria E. G. G. Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (Coleção Ensino Superior)
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza de Toward a PhilosophyoftheAct. Austin: University of Texas Press, 1993.
FIORIN, J. L. In: Introduçãoaopensamento de Bakhtin.São Paulo: Ática; 2006.
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS. Língua Portuguesa: Ensino Fundamental II, (1998). Brasília: MEC.

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