quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Patrícia Corsino

Responsividade e prática pedagógica
Patrícia Corsino
Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ

A revolução de Bakhtin caracteriza-se por haver mudado o ponto de referência da fenomenologia, que já não se coloca no horizonte do “Eu” , mas no horizonte do “Outro” . (Ponzio, 2008, p.110)

            Ponzio (2010) na introdução do texto Para uma filosofia do ato responsável, de Bakhtin, faz a análise etimológica de alguns termos usados pelo autor para melhor situar a sua arquitetônica. Entre eles destaca a palavra postupok, traduzida como ato. Palavra que contem a raiz “stup”, passo, podendo ser entendida como dar um passo, tomar iniciativa, fazer um movimento, uma ação arriscada, tomar posição. Ato, assim, se articula a o outro conceito de Bakhtin: exotopia- lugar exterior ocupado pelo sujeito na relação com o outro. Lugar único, singular de onde ele dá o passo, age. Este agir entendido também como resposta a uma escuta. “Postupok” é um ato, de pensamento, de sentimento, de desejo, de fala, de ação, que é intencional, e que caracteriza a singularidade, a peculiaridade, o monograma de cada um, em sua unicidade, em sua impossibilidade de ser substituído, em seu dever responder, responsavelmente, a partir do lugar que ocupa, sem álibi e sem exceção” (Ponzio, 2010,p.10).
O objetivo desta apresentação é pensar a prática pedagógica, da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, a partir do conceito bakhtiniano de ato responsivo. O exercício é de conceber o ato educativo, o fazer pedagógico como ato responsável ou responsivo, como respostas de diferentes camadas e planos articulados, repostas que se relacionam às escutas. Ato ético e estético que salienta a conexão entre compreensão e escuta. Passo dado por sujeitos situados que respondem às demandas do outro, do seu lugar exotópico e único.  A apresentação foi organizada de forma a discutir algumas camadas ou planos em que as respostas se realizam, partindo de planos mais abrangentes para chegar aos interpessoais. Termina trazendo a discussão de um dos curtas do filme Onze de setembro para finalização.

Educação: resposta do presente ao passado
A educação é um ato intencional, portanto, resposta. Mas, numa primeira camada, a filosófica, a resposta se relaciona a uma pergunta seminal: por que e para que educar? Para Arendt (2000, p. 235) a responsabilidade pela educação da criança encerra em si uma ambivalência entre a conservação e a renovação do mundo: “a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo. Porém, também o mundo necessita de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração”. No mesmo ato responsivo de quem educa as crianças reside simultaneamente a preservação do passado, como legado que se disponibiliza aos que chegam, e possibilidade de rompimento, de abertura para o novo e para o imprevisto. Esta perspectiva histórica de transformação do futuro pelo presente que põe o passado em questão aproxima Arendt e Walter Benjamin(1993). Para o critico da modernidade, a reaproprição do passado faz-se necessária não pra repeti-lo de maneira saudosista, mas como possibilidade de romper com o continuum do tempo. Benjamin recusa a ideia de progresso histórico para dar lugar ao tempo como algo que permite instantes de ruptura. E, se o instante revela possibilidades insuspeitadas do presente, a educação seria, então, uma possibilidade do “salto do tigre” ao passado para “escovar a história a contrapelo”; com a escuta da história dos vencidos e a recusa do tempo linear. Nesta camada, o ato responsivo do educador se encerra no compromisso com a ação que a natalidade enseja: “a permanente e igualitária capacidade de começar algo novo”. (ARENDT, 1997, p. 349). Um começar algo novo comprometido ética e politicamente com a ressignificação da história.

Educação: resposta ao outro
Articulada a esta camada anterior, há o plano das escolhas, da seleção cultural do que irá circular no espaço educativo. Importa neste plano o que estará disponível às crianças, acervos e possibilidades de ampliação, de abertura de horizontes, do encontro com o outro na diferença constituinte do eu. Mas como na arquitetônica bakhtiniana, dialogicamente estruturada, o outro é imprescindível e requer da parte do eu a posição de escuta, uma posição de não indiferença de participação, de compreensão respondente (Ponzio, 2008, p.257); junto à seleção encontra-se um plano de escolhas centrado na forma, no como disponibilizar o acervo às crianças. Desloca-se do conteúdo para as relações dialógicas. Abre-se a camada da escuta não mais como metáfora, mas como o ato mesmo de ouvir o outro e continuar dialogicamente a troca.
Nesta camada mais epidérmica das relações, o foco desloca-se do objeto a ser conhecido, para as relações que se estabelecem entre sujeitos. O mundo dado a conhecer pela palavra do outro, marcado pela linguagem, deixa de ser meramente objetivável para ganhar outras dimensões que passam não apenas pela razão instrumental, mas pela vontade, pelo desejo, pelas emoções.  O ato educativo como evento único singular, irrepetível, impõe o compromisso ético da resposta ao outro. 
Entretanto, na arena discursiva forças centrípetas e centrifugas disputam espaço e transitam entre adesões, consentimentos e recusas, ironias, paródias. E como toda compreensão é uma réplica, o espaço dialógico da/na escola é o próprio horizonte de produção de conhecimento. Portanto, prática pedagógica enquanto  ato responsivo  e responsável  inclui necessariamente a escuta
A seguir trago uma síntese de um dos curtas do filme Onze de setembro para tecer as considerações finais.

Considerações finais
O filme coletivo Onze de Setembro, produzido pela França, lembra o primeiro aniversário dos ataques de 11 de setembro de 2001 contra as torres gêmeas do World Trade Center de Nova York. O projeto traz a visão independente de onze cineastas numa reflexão sobre esse acontecimento histórico que abalou o mundo nos últimos tempos. O curta escolhido é o da diretora iraniana Samira Makhmalbaf, que retrata uma cena escolar. Uma professora que resolver comentar com os alunos pequenos – entre 5 e 8 anos- os acontecimentos de 11 de setembro. Trata-se de um grupo de crianças afegãs moradoras de um campo de refugiados. O filme se  inicia com homens trabalhando num poço e crianças amassando barro com os pés e assentando tijolos.  As crianças conversam sobre um acidente com o pai de um amigo que caiu no poço e morreu. A professora chama para a escola. Com todos sentados inicia a conversa sobre se sabiam de um acontecimento muito importante que acontecera. As crianças falaram da morte do homem no poço, a professora responde que seria algo mais importante. Uma menina fala da tia que foi enterrada até o pescoço e que morreu apedrejada, a professora novamente responde que seria algo ainda mais importante. Um menino anuncia que teve uma chuva e morreu todo mundo, Ainda assim a professora diz que seria lago mais importante. A professora narra o acidente de 11 de setembro e  pergunta se as crianças sabiam o que era uma torre, um celular. As crianças não responderam deixando claro o desconhecimento. A professora pede um minuto de silencio para as vitimas. Duas crianças conversam sobre morte. Diante da conversa das crianças, desreitando o minuto de silêncio, a professora resolve ir para fora da sala para tentar o silêncio com as crianças, olhando para a torre da olaria. Um dos meninos pergunta o que fazer se ele tiver muita vontade de falar. A professora diz para ele morder o lábio. Assim termina o filme: o menino  mordendo o lábio.
O filme traz cenas prováveis. A ficção não está distante de muitas situações reais da escola.  Chama a atenção o envolvimento da professora com a noticia e o não olhar para as crianças, traduzido no minuto de silêncio que destituiu as crianças da possibilidade de discutir aquilo que pairava no campo: a morte. Seu ato responsável unidimensionalmente dirigido perdeu a possibilidade de réplica e com ela de trazer algo novo para o grupo de crianças. Sua resposta fechada, única, perdeu a potência transformadora da palavra. As crianças falam sobre a morte e o espaço dialógico se institui entre elas. A professora se reduz a afirmativas e consentimentos porque seu ato responsivo  não se enraizou na escuta. A resposta que não se sustenta na escuta, torna-se imposição e silenciamento. E como silenciar as crianças nem sempre é fácil, já que elas escapam e transgridem, evidencia-se na arena discursiva a atuação das forças centrifugas dos dissensos. Na tentativa de controle do que nem sempre é controlável, restou o discurso autoritário dar a ultima palavra e ao menino que ainda teria o que falar, morder o lábio para conter o irremediável impulso do dizer.  

Referências
BAKTHIN, Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos, SP: Pedro e João Editores, 2010.
PONZIO. Augusto. Introdução: a concepção bakhtiniana de ato. In BAKTHIN, Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos, SP: Pedro e João Editores, 2010, p.9-39.
PONZIO. Augusto.A revolução bakhtiniana. São Paulo: Contexto, 2008.

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