quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Dilza Côco

Vozes na pesquisa em educação
Dilza Côco[1]/IFES/UFES/PPGE
dilzacoco@gmail.com

Resumo
O texto visa discutir, a partir dos pressupostos bakhtinianos de linguagem, o conceito de polifonia, presença de várias vozes, no ambiente da pesquisa em educação, nas fases do trabalho de campo e de produção do texto científico. Nessa direção, referencia algumas contribuições de Bakhtin, como a relação eu-outro no processo de constituição da linguagem, além de abordar aspectos ligados a noção de enunciado, dialogia, discurso, discurso interior e cronotopo para indicar a relevância desses elementos na arquitetura teórica e metodológica da pesquisa em educação.    
Palavras-chave: Dialogismo. Pesquisa. Metodologia.

Introdução
A trajetória histórica de constituição da ciência revela um percurso conturbado e conflituoso, especialmente na disputa entre a explicação divina da vida e das coisas do mundo e a explicação científica. Nessa arena de luta e de poder, a ciência desde sua origem foi demandada à comprovação dos fatos analisados e a utilização de um rigor metodológico, alcançado privilegiadamente pela utilização da linguagem matemática e a utilização de instrumentos, como forma de ampliar a percepção dos fenômenos. Desse modo, as ciências ditas “duras” foram reconhecidas como produtoras de verdades, pois poderiam demonstrar e comprovar suas produções. Nessa perspectiva, o homem foi concebido sob um prisma unidirecional, pois
As ciências exatas são uma forma monológica do saber: o intelecto contempla uma coisa e emite enunciado sobre ela. Aí só há um sujeito: o cognoscente (contemplador) e falante (enunciador). A ele só se contrapõe a coisa muda. Qualquer objeto do saber (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido como coisa (BAKHTIN, 2003, p. 400).

Nas palavras de Bakhtin já podemos encontrar indícios do contexto de emergência das Ciências Humanas, pois apontam para o seu universo teórico metodológico inicial.  Nesse sentido, as ciências humanas também partem de uma postura monológica diante de seu objeto de conhecimento (o homem) com a ilusão de ser possível essa transposição linear para campos de natureza e características distintas. Contudo, é do próprio objeto de estudo que emergem os desafios e inconsistências para tratá-lo como coisa. Ao considerarmos o homem “como sujeito e permanecendo sujeito, não pode tornar-se mudo; conseqüentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico (BAKHTIN, 2003, p. 400).
Essa discussão revela uma problemática epistemológica para as ciências humanas com implicações metodológicas importantes. Fazer estudos nessa área requer a compreensão da noção de homem como um ser marcado e constituído pela linguagem, portanto “o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante” (BAKHTIN, 2003, p. 395). Desse modo, podemos compreender que as ciências humanas são ciências do discurso e que no campo da pesquisa “coloca em cena um jogo enunciativo de múltiplas posições, do qual o pesquisador necessariamente participa. Seu trabalho é fazer com que esse jogo seja ouvido na complexidade de suas vozes e no qual ele participa como intérprete” (AMORIM, 1997, p. 138).
Desenvolver pesquisa a partir dessa perspectiva implica compreender as imbricações da relação eu/outro no processo de produção do conhecimento na área das ciências humanas, e especialmente quando estudamos a realidade educacional, cuja finalidade básica de ação é o desenvolvimento de sujeitos. Nesse sentido, o ato de pesquisar constitui também um ato educativo para os sujeitos envolvidos, pois os atores dialogam, interagem e atuam na constituição de si e do outro. Desse modo conceitos como enunciado, dialogia, discurso, discurso interior, cronotopo, entre outros desenvolvidos por Bakhtin assumem lugar referencial na pesquisa.   

As vozes na/da pesquisa em Educação
Escutar, contemplar, dialogar com os outros sujeitos na/da pesquisa na área da educação não é uma tarefa simples e corriqueira. Exige do pesquisador um trabalho árduo e lapidar da sua própria natureza/consciência quando vai à campo e no processo de produção do texto científico, pois ele mesmo é um sujeito implicado. Nesse sentido o conceito de dialogia, eixo central do pensamento de Bakhtin, é fundamental e necessário para pensarmos sobre esses desafios. 
A vasta obra bakhtiniana é repleta de elementos que tratam da importância de considerarmos as relações dialógicas e seus elementos constituintes no processo de compreensão de uma determinada temática. Se tomarmos apenas a obra Problemas da Poética de Dostoiévski como uma de suas referências, podemos encontrar contribuições valiosas para pensar metodologicamente a presença das diferentes vozes que povoam nossos enunciados.
Bakhtin ao produzir análises dessa obra, afirma que Dostoiévski cria um novo gênero discursivo, denominado por ele de romance polifônico. Afirma que é polifônico porque, segundo o autor, contempla diferentes vozes plenivalentes[2], pois “Dostoiévski não cria escravos mudos (como Zeus) mas pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele” (BAKHTIN, 2005, 04). Para fazer essas considerações parte de rigoroso estudo da crítica literária disponível em sua época. Nessa tarefa elenca uma série de contribuições do pensamento de outros sujeitos sobre o tema, contudo não deixa de apresentar as suas fragilidades tecendo críticas específicas.
Na construção arquitetônica de seu texto, Bakhtin demonstra que seus enunciados não são inéditos, pois estes antes de serem seus já foram de outros, e “[...] que ele saiba ou não, que ele queira ou não, responde a enunciados anteriores. O objeto de que se fala já foi falado antes. A palavra com que se fala já foi utilizada antes” (AMORIM, 2001, p. 133).  Desse modo, indica que o fazer pesquisa em ciências humanas requer esse reconhecimento das vozes alheias e ainda considerar suas especificidades. Assim, o discurso do outro, “[...] tem uma dupla expressão: a sua, isto é, a alheia, e a expressão do enunciado que acolheu esse discurso” (BAKHTIN, 2003, p. 299).  Quando buscamos o estado da arte em nossas pesquisas penso que estamos incluindo/acolhendo outras vozes em nossos enunciados, ou seja, aquelas que já falaram sobre o objeto de pesquisa. Mas, cabe nos indagar: como estamos lidando com essas vozes no texto científico? As selecionamos para participar de um diálogo ou são inseridas de forma monovalente e isoladas em nosso texto? Em que elas colaboram para a discussão de nossa temática de interesse? Como são organizadas na arquitetura geral do texto científico de modo a contemplar a voz do pesquisador?  Essas questões suscitam reflexões e apontam para a complexidade inerente a produção de conhecimentos.
Outro aspecto que Bakhtin analisa e evidencia na obra de Dostoiévski é a elaboração de um estilo de discurso marcado pela intensa antecipação do discurso outro. Para isso, apresenta um trecho do discurso do personagem Diévuchkin em Gente Pobre para ilustrar essa característica. Nesse trecho o personagem ao descrever o lugar simples onde mora, dialoga com o outro, introduzindo em seu discurso possíveis antecipações do seu interlocutor.
Eu vivo na cozinha, ou, para melhor dizer ... já deve calcular: contíguo à cozinha há um quarto (a cozinha é muito limpa, muito clara e ajeitadinha) – [...] Este é o meu cantinho. Mas não vá imaginar, minha filha, que lhe digo isto com segunda intenção, porque ao fim a ao cabo, isto não passa de uma cozinha! [...] Acho me aqui muito satisfeito e a meu gosto, muito modesta e calmamente! [...] Certamente que há casas melhores e até muito melhores, porém o mais importante neste mundo é a comodidade; é somente por isso que eu vivo aqui, porque me encontro a viver mais à vontade. Não, não vá pensar que o faço por outra razão [...] (BAKHTIN, 2005, p. 207).

Com essa construção observamos que o personagem estabelece um diálogo que leva em consideração a opinião do outro sobre ele e nessa esfera de articulação antecipa possíveis avaliações e as integram em seu discurso. Esse aspecto colabora para pensar e analisar a natureza das falas dos sujeitos de nossas pesquisas. Quando o pesquisador acessa o campo de coleta de dados (sala de aula/escola), podemos inferir que a sua presença afeta e influencia os eventos discursivos, pois como demonstrado no trecho citado anteriormente, o discurso do outro é interiormente dialogado e refletido pelos sujeitos, e que no caso de nossos investigados, não estão imune a essa influência. O que também não podemos deixar de considerar é que o pesquisador, também é interpelado pelo discurso de seus outros.
 Nas falas do personagem de Gente Pobre também podemos apreender o conceito de cronotopo, pois o acontecimento discursivo indica sua relação com o espaço num determinado tempo. Bakhtin ao discutir esse conceito entende que “as definições espaço-temporais são inseparáveis uma das outras e são sempre tingidas de um matiz emocional” (1998, p. 349). E ainda realça que “[...] uma reflexão abstrata pode interpretar o tempo e o espaço separadamente e afastar-se do seu momento de valor emocional” (1998, p. 349). Esse conceito nos remete a reflexão em duas dimensões do processo de desenvolvimento da pesquisa. Primeiro porque, a pesquisa em ciências humanas ao privilegiar o homem, a vida, como objeto de atenção, não tem como desconsiderar que este homem está situado num tempo e espaço. Desse modo requer observar, em que cronotopo os eventos da pesquisa acontecem? Quais as suas características? Como essa relação tempo-espaço participa da constituição dos sujeitos?
Pensando a pesquisa na área da educação, podemos fazer alusão ao espaço da sala de aula/escola como o cronotopo do encontro. É nesse ponto em que vários sujeitos, com histórias diversas se encontram para viver um tempo institucional da vida. Inicialmente esse encontro pode ocorrer ao acaso. O professor tem condições de prever com que alunos irá trabalhar, antes do início do ano letivo? As crianças sabem quais serão seus professores e colegas? A partir desse acaso os sujeitos ingressam na linha do tempo (ano letivo) e sofrem transformações (desenvolvimento) no percurso que podem levá-los a destinos diferentes e imprevistos.
A segunda dimensão refere-se ao fazer da pesquisa. Em geral as pesquisas em educação contemplam duas grandes fases: a da coleta de dados e a da produção do texto científico. A partir dessa distinção, e tomando como referência a pesquisa das práticas educativas, é possível perceber que o cronotopo se altera. Na pesquisa de campo temos tempo e espaço habitado por sujeitos em constante interação, em co-presença, e que se afetam mutuamente. Amorim (1998) vai dizer que nessas condições o pesquisado atua como anfitrião que acolhe o hóspede (pesquisador) em seu território. Nessa relação o pesquisador se constitui em um estrangeiro, não na radicalidade expressa em Asno de Ouro de Apuleio, que Bakhtin descreve e analisa a partir dos romances antigos, pois o pesquisador não deixa de pertencer ao gênero humano, mas a sua condição de investigador lhe distingue dos demais sujeitos naquele tempo-espaço. Suas finalidades são observar, registrar, coletar, conversar, apreender as manifestações dos outros no contexto de ação. 
No período da escrita do texto científico ocorrem deslocamentos, pois a co-presença dos sujeitos não constitui um elemento base. Sob outras condições e objetivos, o contraditório se efetiva, pois o pesquisador será o anfitrião que acolhe as palavras do seu hóspede (pesquisado) para escutar e interpretar. Nesse cronotopo, o pesquisador também está carregado das vozes alheias que afetam o seu discurso. Primeiro pelas vozes de seus leitores imediatos, como o orientar e a banca examinadora. Como destinatários primeiros, estes participam diretamente na construção e elaboração do texto. Em outro plano os leitores imaginários estão presentificados no texto, são interiores ao próprio enunciado e como Bakhtin indica, participam como co-autores através do discurso interior refratado. O pesquisador nesse momento antecipa possíveis avaliações de seus supostos leitores. 
Além das vozes constituintes na produção dos enunciados, no texto científico encontramos as vozes explícitas como os discursos citados de outros teóricos, dos sujeitos da pesquisa, do locutor, por exemplo quando o pesquisador apresenta suas motivações e objetivos para a pesquisa, mas também podemos buscar a voz do autor. Amorim (2002, p. 10-11) com base em Bakhtin afirma que
[...] a voz do autor está em todo lugar e em nenhum lugar em particular. Mais precisamente, ela pode ser ouvida ali, no ponto crucial de encontro entre a forma e o conteúdo do texto. Quando se analisa um texto e consegue identificar a relação necessária entre o que é dito e o como se diz, pode-se dizer que se encontrou a instância do autor. (Estou falando da voz do autor e não da pessoa do autor. Posso identificar a voz de um autor sem conhecer nada a respeito de sua pessoa.) A voz do autor concerne um lugar enunciativo e como tal ela é portadora de uma olhar, de um ponto de vista que trabalha o texto do início ao fim.

Assim, a apreensão da voz do autor requer a observação do texto científico em sua totalidade e não restringir a análise a partes do que está dito. Os autores selecionados para dialogar com a temática, a escolha dos trechos das transcrições do diário de campo, o modo de produção das análises, a postura com que o pesquisador se relaciona com a fala dos sujeitos investigados dentre muitos outros aspectos que podemos encontrar a voz do autor. O autor também pode ser encontrado nas ausências, pois os diários de campo podem ser vistos como textos paralelos a pesquisa, aquilo que não se mostra devido uma série de fatores, que vão desde as limitações impostas pelo gênero discursivo científico até as opções do sujeito autor.   

Algumas considerações
A perspectiva dialógica de linguagem fundamentada em Bakhtin evidencia vários elementos que colocam na interação verbal o lócus de análise e percepção da relação eu-outro. O autor ao dedicar significativa parte do seu trabalho, à análise literária, explicita com propriedade a riqueza de aspectos que integram a constituição da linguagem, manifesta na produção do discurso. Contudo, é importante situar que pela longa temporalidade de construção da sua obra, marcada muitas vezes por interrupções em suas elaborações, desafia os leitores na apreensão dos vários conceitos desenvolvidos pelo autor e a partir dessas condições demanda um denso trabalho de busca em toda sua vasta e densa produção. Assim, esse texto revela apenas uma aproximação com as proposições de Bakhtin e uma experiência de pensar o referencial teórico no universo metodológico da pesquisa em educação, como ato responsável e responsivo.

Referências
AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Editora, 2001.
______. O texto de pesquisa como objeto cultural e polifônico. In: Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 50, nº4, 1998.
______. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas. In: Cadernos de pesquisa, nº 16, p. 7-19, jul/2002.
______. O Detetive e o pesquisador. In. Documenta, ano VI, número 08, Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
______. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: Unesp, 1998.    



[1] Docente da área de Educação/IFES-Vitória (ES), doutoranda na linha de pesquisa Educação e Linguagens, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo.
[2] Bakhtin define esse termo como palavras “[...] plenas de valor, que mantém com as outras vozes do discurso uma relação de absoluta igualdade como participantes do grande diálogo” (BAKHTIN, 2005, p. 4).

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