quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Patrícia Avanci Costa

Letramento familiar e alfabetização formal: um diálogo necessário
Patrícia Avanci Costa[1]
patricia_avanci@terra.com.br
UFRJ/FE/LEDUC
“Há um Bakhtin interacionista. Afinal, ele tratou fundamentalmente das relações do eu com o outro. Entretanto, o outro é uma posição social, expressa num texto. As relações dialógicas de que ele se ocupou não são o diálogo face a face, mas as relações entre posições sociais.” (José Luiz Fiorin)
            Escrever para um encontro de estudiosos de Bakhtin é uma das tarefas mais desafiadoras que enfrento na minha jornada acadêmica, autoral e dialógica. Mas o desejo de participar de conversas e discussões que tem como pilares as ideias deste filósofo da linguagem foi maior que minha atitude passiva de querer ser só uma “ouvinte”. Assim, antes de introduzir o tema sobre o qual me proponho a refletir aqui, gostaria de apresentar-me como falante que sou: aluna de escola pública até a antiga quarta série, no interior de Minas Gerais, filha de família com situação financeira acima da média, filha única entre dois irmãos homens, e estatura (altura) também acima da média dos meus colegas de escola naquela época, sempre acreditei ter o direito nato de falar e ser ouvida. Cresci com essa crença e assim percorri meus anos escolares. Passei por três escolas privadas consideradas de excelência e entrei na universidade pública. Creio que aí, numa universidade federal no sul do Rio Grande do Sul, começou o meu caminho de retorno ao que considero hoje “ser uma pessoa e cidadã saudável”.
Na diversidade de procedências dos meus colegas de faculdade, tanto em relação às unidades federativas do Brasil quanto aos aspectos de cor, raça e financeiros, me perdi subjetivamente. O lugar ideológico e a posição social que eu tinha reforçados dentro de mim pelos “outros” com os quais cresci, se enfraqueceu tanto, que precisei perambular alguns anos procurando por mim mesma: mudei algumas vezes de curso de graduação, de Estado, de trabalhos até que me recordei de algo bem simples: que tão importante quanto falar, era ouvir. Ouvir verdadeiramente para conhecer o mundo e pela responsividade, me construir e me encontrar, dialogando com o Outro. Comecei então ouvindo os adultos. Trabalhei numa espécie de clínica holística onde pessoas sufocadas pela vida chegavam buscando uma terapia, uma massagem, uma catarse, mas principalmente querendo falar e ser escutados. Nessa época, já era mãe, meu filho estava com cerca de quatro anos e me dei conta de que não queria, definitivamente, que ele se tornasse um adulto rígido e sem voz como aqueles (e eram muitos!). Foi então que passei a observar com mais afinco as questões da educação infantil. Quando nos calam ou somos submetidos a ser meros papagaios? E me surpreendi com o silenciamento que impomos, sem perceber, às nossas crianças. Alguns anos após, já morando no Rio de Janeiro, fiz vestibular para Pedagogia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, determinada a me instrumentalizar para fazer algo que ajudasse a “proteger” a infância.
O que compartilho agora são reflexões que foram sendo construídas a partir do desejo particular e da necessidade coletiva de descobrir algo para melhorar a alfabetização, a leitura e a escrita nas escolas públicas do município do Rio de Janeiro. Muitas perguntas foram surgindo ao participar do Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação (LEDUC) como bolsista da pesquisa-formação “As (im)possíveis alfabetizações de alunos de classes populares pela visão de docentes na escola pública”, onde observo as conversas semanais (“acaloradas” muitas vezes) entre docentes e pesquisadores no momento formativo, e as análises e estudos, também semanais, nos encontros da orientadora Ludmila Andrade com seu grupo de pesquisa (mestrandos, doutorandos, graduandos e convidados). Dessas, as que mais gostaria de responder são: Crianças de classe popular são ouvidas dentro de sala de aula? A separação da sociedade em “ricos e pobres” é reforçada pela linguagem escolar? O conhecimento linguístico e dos gêneros discursivos que as crianças trazem de casa e dos ambientes que frequentam é valorizado como ponto de partida para a aquisição da linguagem formal legitimada em nossa sociedade? Sei que talvez muitos de nós tenhamos essa resposta na ponta da língua, mas responder essas perguntas a partir das práticas reais das professoras da pesquisa e, mais importante, deixá-las ouvir as próprias respostas trazidas à superfície pelas provocações sutis do grupo heterogêneo de docentes e formadores da pesquisa, seria um grande sucesso para os objetivos que tenho na minha monografia. Um feito de dar ao Outro mais fontes que possam ajudar a reverberar novas visões na prática alfabetizadora de sala de aula.
O que pude observar nas conversas e na análise de gravações desses encontros de formação e da produção escrita dos docentes, é que existe uma ideia positiva as docentes sobre o  uso da bagagem prévia que as crianças possuem a respeito da leitura e da escrita em sala de aula de alfabetização. Essa bagagem prévia, o uso social da leitura e da escrita apreendido pela criança, mesmo que na oralidade, é o que chamo de letramento familiar. Porém, lendo ou ouvindo os relatos das práticas reais das mesmas docentes, sinto a ausência de uma busca verdadeira pelos indícios desse(s) letramento(s) familiare(s), adquirido(s) a todo instante nas interlocuções com irmãos, cuidadores, mães, avós e mais esporadicamente com médicos, enfermeiros, balconistas de supermercado e onde quer que exista leitura e escrita na vida das crianças. Não pretendo entrar no questionamento das razões pelas quais o professor usa, preferencialmente, certos gêneros discursivos considerados domésticos e mais comuns, como receitas, parlendas e  músicas, deixando de investigar os outros que poderiam ser úteis para despertar na criança, no nosso caso urbana de uma metrópole, o prazer da escrita autoral e social. Contudo, o que vemos, na maioria dos casos de fracasso, são crianças desatentas, com vínculos fracos com a relação ensino-aprendizagem. E, infelizmente, os discursos mais comum são “Criança pobre é difícil de aprender”, “Eles não respeitam nada”, “Eles não se interessam por nada”. Mas lembremos que essas falas podem ser vistas somente como enunciados merecedores de boas respostas.
O dialogismo de Bakhtin, o desenvolvimento sócio-interacionista de Vygotsky e a aprendizagem significativa do psicólogo David Ausubel[2] são fortes argumentos da necessidade de usar o(s) letramento(s) familiar(es) como raíz da alfabetização da classe popular, se quisermos uma educação democrática e para todos. O dialogismo aproxima os mundos dos quais as “crianças” (classe popular) e as “professoras”(escolarização formal) falam, criando novos enunciados nesse ouvir/falar/responder, diminuindo barreiras entre classes que, pela ignorância, parecem intransponíveis. Vygotsky fala da importância do mediador (professor) para ajudar o aprendiz a percorrer a zona de desenvolvimento proximal, desde o nível de aprendizado real (letramento prévio, familiar) até o nível de aprendizado potencial (letramento literário, alfabetização, linguagem escolar). A aprendizagem significativa traz o direcionamento sobre o uso de novos conteúdos na aprendizagem que sejam reconhecíveis pelos conceitos já sedimentados na estrutura cognitiva do aluno. Como crianças formam a estrutura cognitiva mediadas pela linguagem no seio familiar, no caso de alunos de classe popular em alfabetização, no seio de famílias que muitas vezes não tem acesso à literatura nem hábitos considerados comuns para a classe média, como ir ao cinema ou museu (linguagem aproximada à linguagem escolar), por esta razão, precisam ser olhadas com um olhar aberto para entender melhor as linguagens formativas de suas estruturas cognitivas.
Considero que estudos e pesquisas de cunho etnográfico preencheriam muitas lacunas a favor da educação popular, lacunas estas que muitas vezes podem nem ser percebidas por causa do grito ensurdecedor do conhecimento considerado como legítimo na nossa sociedade. Assim, uma investigação cuidadosa com as famílias talvez perfure a barreira provocada pelo “efeito de legitimação”, ou seja, aquela barreira dos dizeres falsos que são ditos por serem considerados os “corretos” e ajude esta fase difícil e com tanto fracasso que é a alfabetização de classes populares. E é claro, defendo esse diálogo entre o letramento familiar e a sala de aula como ponto de partida para a prática alfabetizadora e porto seguro para as crianças, mas não como ponto de chegada excludente dos outros letramentos aos quais todos temos direito, principalmente o literário.

Referências:
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.
VYGOTSKY, L. S. A formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.


[1] Aluna de graduação FE/UFRJ, integrante do Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação (LEDUC), bolsista iniciação científica CAPES
[2] notas de aula da disciplina Psicologia da Educação/FE/UFRJ

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