quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Ana Letícia Duin Tavares

A pesquisa com crianças numa perspectiva bakhtiniana
Nome: Ana Letícia Duin Tavares
Instituição: Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo
O objetivo deste trabalho é refletir sobre a concepção de criança e o papel do pesquisador na investigação com crianças, tomando como base a teoria de linguagem de Bakhtin. Esta abordagem teórica foi considerada significativa para se pensar na ampliação do debate a cerca do lugar da criança e do adulto na sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Mikhail Bakhtin; criança; linguagem, pesquisa

Adotar como enfoque teórico o conceito de linguagem de Bakhtin na pesquisa com crianças demanda refletir a cerca das contribuições dessa abordagem na construção de uma concepção de criança e no papel do pesquisador frente à responsabilidade com sua formação e a dos sujeitos envolvidos na pesquisa.
Os estudos que venho realizando no âmbito do grupo de pesquisa Práticas de Leitura na educação infantil e na passagem ao ensino fundamental (NUPEL-UFJF) têm evidenciado o fato de que no cenário de sala de aula as produções discursivas apresentam peculiaridades que lhe são próprias. No processo de interação, as crianças expressam suas dúvidas, interesses, compreensões, etc. para buscar sentido às atividades que realizam, processo ao qual está relacionado ao que Bakhtin (2009) denomina de compreensão ativa. Ou seja, no ato de compreender já está implícito uma resposta. Para o referido autor,
Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. [...] Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p.136-137)

Considerar a voz da criança e sua capacidade de atribuição de sentido às suas ações e aos seus contextos significa concebê-la enquanto um ator social. Isso “implica o reconhecimento da capacidade de produção simbólica por parte das crianças e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas.” (PINTO; SARMENTO, 1997, p. 20).
A construção de culturas pelas crianças acontece nas interações sociais que estas estabelecem, por meio da linguagem.  Ao fazer esta afirmação tomo como base Bakhtin, que investigou a linguagem em uma abordagem dinâmica e concreta, concebendo-a como um fenômeno vivo, concretizado pela enunciação. Para este autor, a enunciação
“[...] é um puro produto da interação social, quer se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada comunidade linguística.” (BAKHTIN, 2009, p.126).

Adotar esta relação entre linguagem e interação social proposta por Bakhtin possibilita compreender a criança nos acontecimentos que estão na vida, pois é nas relações entre as pessoas, no campo do discurso, que se situam as disputas, os acordos e as constantes negociações de sentidos. Segundo este autor, o sentido é
potencialmente infinito, mas pode atualizar-se somente em contato com outro sentido (do outro), ainda que seja com uma pergunta do discurso interior do sujeito da compreensão. Ele deve sempre contatar com outro sentido para revelar os novos elementos da sua perenidade (como palavra revela os seus significados somente no contexto). Um sentido atual não pertence a um (só) sentido mas tão somente a dois sentidos que se encontraram e contataram. Não pode haver “sentido em si” – ele só existe para outro sentido, isto é, só existe com ele. Não pode haver um sentido único, ele está sempre situado entre os sentidos, é um elo na cadeia dos sentidos, a única que pode existir realmente em sua totalidade. Na vida histórica essa cadeia cresce infinitamente e por isso cada elo seu isolado se renova mais e mais, como que torna a nascer. (BAKHTIN, 2003, p.382).

  A interação social na perspectiva bakhtiniana é considerada como uma condição inevitável e necessária de inserção social do indivíduo enquanto participante de um processo histórico e cultural que o produz e é, dialeticamente, também por ele produzido. Neste sentido, a interação é compreendida como condição de possibilidade de existência do sujeito, porque este só se constitui como tal na relação com os outros.  Bakhtin enfatiza este aspecto ao afirmar que
Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vêm-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe, etc.) e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que servirão para a formatação original da representação que terei de mim mesmo. (BAKHTIN, 2003, p.373).

Desta forma, a importância do outro pode servir como tomada de consciência do lugar que o pesquisador ocupa no ato de pesquisar com crianças. Segundo Freitas (2003, p. 29), “considerar a pessoa investigada como sujeito implica compreendê-la como possuidora de uma voz reveladora da capacidade de construir um conhecimento sobre sua realidade que a torna co-participante do processo de pesquisa.”
O pesquisador pode buscar o encontro com o outro (criança) e compartilhar experiências, uma vez que a criança deixa de ser vista como objeto e passa a ser alguém que confronta suas palavras com a do pesquisador, exigindo-lhe respostas. A pesquisa se configura, assim, como um acontecimento no mundo, que se efetiva entre os sujeitos. E o modo de produzir conhecimento se traduz no processo de pesquisar com a criança e não mais pesquisar sobre ela, fazendo com que a relação entre crianças e adulto-pesquisador se constitua como um acontecimento que adquire vida no ato de pesquisar e compreender o outro. (SOUZA; PEREIRA; SALGADO, 2009).
Esta outra forma de estabelecer a relação entre pesquisador e criança no contexto da pesquisa pode se refletir também no cenário mais amplo das relações entre adultos e crianças, quando entendemos que “o outro é o lugar da busca de sentido e da condição de existência, mas também é o lugar da incompletude e da provisoriedade. Esta perspectiva interroga e traz a tona o inacabamento permanente do sujeito, melhor dizendo, do vir-a-ser da condição do homem no mundo”. (FREITAS et al, apud SOUZA; PEREIRA; SALGADO, 2009, p.4).
Conceber o ser humano como incompleto requer criticar a ideia de adulto instalada na sociedade, como um indivíduo acabado e, que por isso, deve ser imitado opondo-se à criança, entendida como um ser inferior. Esta desigualdade na relação adulto e criança ainda está fortemente presente no contexto escolar. Muitas vezes, as práticas pedagógicas estão mais ligadas às concepções educacionais do adulto do que das necessidades das crianças. Este fato está relacionado à compreensão da criança baseada apenas em suas capacidades cognitivas. Desta forma, a escola não vê a criança e se debruça apenas sobre seus processos, enfatizando métodos e técnicas, privando-as de um espaço onde podem ocorrer interações livres e trocas de experiências.
Jens Qvortrup citado por Pinto e Sarmento (1997) critica uma contradição na relação entre adultos e crianças que exprime-se no fato de
[...] os adultos acreditarem que é bom para as crianças e os pais estarem juntos, mas cada vez mais viverem o seu quotidiano separados uns dos outros; no facto de os adultos valorizarem a espontaneidade das crianças, mas as vidas das crianças serem cada vez mais submetidas às regras das instituições; no facto de os adultos postularem que deve ser dada a prioridade às crianças, mas cada vez mais as decisões políticas e econômicas com efeito na vida das crianças serem tomadas sem as ter em conta; [...] no facto de os adultos concordarem em geral que as crianças devem ser educadas para a liberdade e a democracia, ao mesmo tempo que a organização social dos serviços para a infância assenta geralmente no controle e na disciplina; no facto de, sendo as escolas consideradas pelos adultos como importantes para a sociedade, não ser reconhecido com válido o contributo das crianças para a produção do conhecimento [...]. (PINTO; SARMENTO, 1997, p.13).

Tendo como base estas reflexões cabe destacar que a concepção de linguagem construída por Bakhtin problematiza as visões a cerca das crianças centradas no adulto que restringe e regra suas vidas. Portanto, ao possibilitar compreender a criança a partir do olhar delas e não somente sobre elas, Bakhtin abre um espaço para se pensar na redefinição do lugar social das crianças e adultos, sejam eles pesquisadores, políticos, pais ou professores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHINOV; V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 13 ed. São Paulo: Hucitec, 2009.
________Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FREITAS, M. T.; SOUZA, S. Jobim e; KRAMER, S. (Org.) Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003.
PINTO, Manuel; SARMENTO, Manuel J. As crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando o campo. In: PINTO, Manuel; SARMENTO, Manuel J. (Cord.) As crianças: contextos e identidades. Coleção infans – Centro de estudos da criança. Universidade do Moiinho, 1997.
SOUZA, Solange Jobim e; PEREIRA, R. M. Ribes; SALGADO, Raquel G. O pesquisador e a criança: dialogismo e alteridade na produção da infância contemporânea. Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas), 2009.
BIBLIOGRAFIA
BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. (Org). São Paulo: Contexto, 2005.
SOUZA, Geraldo Tadeu. A linguagem. In: SOUZA, Geraldo Tadeu. Introdução à teoria do enunciado concreto do círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. 2 ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2002.

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