quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Rhena Raize Peixoto de Lima, Maria da Penha Casado Alves

O gênero diário de leitura e o estímulo à atividade responsiva
Rhena Raize Peixoto de Lima – UFRN
rhenaraize@yahoo.com.br
Orientadora: Drª Maria da Penha Casado Alves – UFRN 
penhalves@msn.com
           
Algumas pesquisas sobre atividades em sala de aula nos apresentam os benefícios para os alunos e professores ao desenvolverem o diário de leitura como atividade didática. Este trabalho terá como foco a forma como esse gênero constitui um incentivo ao que Bakhtin chama de responsividade. Tentaremos expor, de forma breve, as características do gênero em questão como também mostrar como essa responsividade constitui a sua essência.
Como sabemos, a definição de gêneros discursivos proposta por Bakhtin dá suporte para classificarmos os diários de leitura como um gênero uma vez que constituem tipos de enunciados relativamente estáveis, situados em um contexto, escolar neste caso, direcionados a um coenunciador em específico, e estruturado, composicionalmente e estilisticamente, de acordo com a situação de comunicação.
O filósofo russo apresenta ainda a possibilidade infinita do surgimento de novos gêneros à medida que novas necessidades vão surgindo a partir da modificação de determinados campos sociais onde a linguagem é utilizada: 
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida em que se desenvolve e complexifica um determinado campo. (BAKHTIN, 2010, p. 262)
           
O que temos então é uma definição de gênero que garante às formas de texto uma flexibilidade, uma mobilidade característica das relações sociais. Nada mais coerente se levarmos em consideração o fato de que todas as atividades humanas, em todos os campos sociais, como o próprio autor afirma, são mediadas pela linguagem. E a materialização dessa linguagem humana se dá pela construção dos enunciados e dos gêneros do discurso.
Não haveria de ser diferente no campo educacional. O contexto escolar predetermina um acompanhamento por parte do professor do processo de aprendizagem dos alunos. Esse acompanhamento nem sempre ocorre de forma satisfatória devido a diversos fatores que não nos deteremos a citar aqui. Porém, o que podemos apontar é que um dos fatores é o não reconhecimento, em grande parte das atividades escolares, da voz do aluno (o que pensa, como enxerga o que é apresentado em sala de aula) como parte integrante do processo de aprendizagem, característico das atividades escolares, conforme aponta Machado (1998). Nessas atividades sempre se cria uma expectativa sobre as respostas dos alunos, às quais não é permitido fugir da teoria apresentada em sala de aula. Nesse contexto, a crítica ou discordância do aluno com relação a determinadas teorias, metodologias e processos de ensino-aprendizagem não possuem lugar.
Essa característica das atividades escolares é um dos motivos para a escassez de iniciativa por parte dos alunos nas discussões em sala de aula. Muitos deles acabam “sacralizando” o material didático e não ousam tecer críticas sobre os textos utilizados nas atividades em sala de aula, mesmo quando mal escritos ou desinteressantes a eles. (ABREU-TARDELLI; LOUSADA; MACHADO, 2007).
Contrário às demais atividades, o diário nos aparece como um espaço onde se apresenta principalmente aquilo que é constantemente julgado como anti-científico. Segundo Machado (1998), a utilização desse gênero em sala de aula nos permite, entre outras coisas:
“[...] criar condições para que os interlocutores se encontrem numa relação de igualdade, na qual suas pretensões à validade pudessem ser confrontadas e justificadas. [...] criar condições para que todos os sujeitos leitores envolvidos numa situação de comunicação escolar específica expusessem, confrontassem e justificassem suas diferentes interpretações e suas diferentes práticas e processos de leitura.” (MACHADO, 1998, p. 8)

Dessa forma, o gênero obriga os alunos a praticarem um tipo de leitura “ativa” ao invés da comum “passividade” percebida nas atividades em sala de aula. Em oposição à concepção que compreende um sujeito imerso numa dada situação de comunicação apenas como “ouvinte”, ou seja, como aquele que compreende passivamente o discurso do sujeito que fala, Bakhtin apresenta um sujeito responsivo que pode complementar, refutar, distorcer o discurso do outro a partir do momento em que confronta valores e ideologias inerentes a si mesmo com os posicionamentos do discurso outro.
Sendo assim, o ato de interpretar não consiste, nessa concepção, em um processo de reprodução fiel da fala do outro. Os processos de interpretação e compreensão pressupõem uma resposta ativa, pois “toda compreensão é prenhe de resposta” (BAKHTIN, 2010, p. 271) e resulta numa transformação do ouvinte em falante no momento em que se espera do sujeito para quem se direciona o discurso uma complementação, uma discordância, enfim, uma participação ativa no processo de comunicação. Assim, Bakhtin nos mostra que
[...] toda compreensão plena real é ativamente responsiva e não é senão uma fase inicial preparatória da resposta. [...] O próprio falante está determinado precisamente a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia [...]” (BAKHTIN, 2010, P. 272)

O gênero diário de leitura constitui um espaço em que o produtor não possui outra opção a não ser o tipo de leitura e de construção de enunciados responsivos. Podemos reproduzir tal afirmação ao recorrermos às sugestões do que deve ser registrado nos textos dos diários (MACHADO, 1998): dificuldades de compreensão de um determinado conteúdo ou de um texto que se está analisando; discordância ou complementação com relação à composição, estrutura, temática e demais aspectos do texto que se está analisando; “problemas em relação à definição de sua posição de sujeito ou em termos da posição de sujeito que o destinatário ocupa.”. (p.17)
Por estarem autorizados a escrever suas dificuldades de compreensão, sua concordância ou discordância com relação aos textos escolhidos para a análise, os produtores dos diários deixam marcas de como esse encontro e embate de posicionamentos ocorre antes, durante e depois da leitura. Em seguida, temos ainda o registro do resultado desse embate, ou seja, o posicionamento final, a interpretação do sujeito produtor do diário. Esse processo confirma as palavras de Bakhtin/Voloshínov (2006): “o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc.” (p. 128). Porém, o que faz do gênero em questão diferente dos demais gêneros escolares escritos é o registro dos processos de interpretação e compreensão. Enquanto as demais atividades priorizam o produto acabado, o diário de leitura evidencia o caminho percorrido antes do resultado da compreensão, ou seja, aquilo que na maioria das vezes se perde por estar apenas na mente dos produtores de textos, ou nos rascunhos.
Além desses processos apontados, essa participação ativa e responsiva põe em foco outra atitude dos sujeitos: a avaliação. Para Bakhtin (2010), “é impossível uma compreensão sem avaliação”. O autor afirma que o sujeito da compreensão já entra em contato com os discursos trazendo seu ponto de vista formado e que esse posicionamento já existente irá manter total influência na sua compreensão e, portanto, também na sua avaliação sobre os discursos do outro.
Aqui podemos perceber a concretização da “configuração dialógica da compreensão” que se dá no encontro de duas consciências. (BAKHTIN, 2010, p. 396). O autor põe esses processos como inerentes à leitura de texto e como válidos para a vivência dos sujeitos envolvidos uma vez que “no ato da compreensão desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento”. (Bakhtin, 2010).
É essa responsividade que possibilita o constante diálogo entre os novos enunciados e os já existentes, garantindo uma constante reflexão sobre os discursos e, consequentemente, sobre os atos dos sujeitos inseridos em determinado contexto social que transforma esses falantes e, ao mesmo tempo, é transformado por eles.  Nessa noção de enunciado não há espaço para o conceito abstrato de oração proposto pelos linguistas que antecedem as obras de Bakhtin e que vigorava no início do século passado. Criticando o conceito de oração, Bakhtin prova que a oração gramatical, como era concebida na época, não dá conta do caráter histórico e social da linguagem e dos sujeitos uma vez que a oração não possui autoria, nem considera o espaço e o tempo da produção.
Portanto, somente a noção de enunciado construída pelo círculo pode estar em sintonia com o diálogo constante que possibilita mudança, renúncia ou transformação de pontos de vista já formados. E é o acesso a um gênero que nos possibilita entrar em contato diretamente com esse processo de mudança, dentre os inúmeros textos construídos no dia a dia, representantes de uma infinidade de gêneros, que permitirá compreender essas transformações e os sujeitos delas participantes.
Conforme pudemos ver nesse trabalho, o gênero diário de leitura torna-se válido em razão dessa necessidade, dentro do contexto escolar, de se “ouvir” os posicionamentos daqueles a quem se direciona a prática dos profissionais da educação. As discordâncias, críticas sugestões, enfim, as “respostas” já existem nesses sujeitos, pois a “natureza dialógica” é “própria da vida humana” (BAKHTIN, 2010, p. 348). O diário apenas nos possibilita o contato com elas. Eis um fator que garante a importância da utilização desse gênero escolar.
Finalizamos o texto com as palavras de Geraldi (2010, p.287) em sua discussão sobre o sujeito respondente: “forçosamente somos agentivos: somente agindo somos o que somos”. 

REFERÊNCIAS
ABREU-TARDELLI, L. S.; LOUSADA; E. MACHADO, E. Trabalhos de pesquisa: diários de leitura para uma revisão bibliográfica. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 5.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
BAKHTIN, M. M. / VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12. ed.São Paulo: Hucitec, 2006.
GERALDI, W. Sobre a questão do sujeito. In: PAULA, L.; STAFFUZZA, G. (Orgs). Círculo de Bakhtin: teorias inclassificáveis. Campinas. Mercado de Letras, 2010.
MACHADO, Anna Rachel. O diário de leituras: a introdução de um novo instrumento na escola. São Paulo: Martins fontes, 1998.

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