quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Luis Gustavo D’ Carlos Barbosa, Maria Emília Caixeta Castro Lima, Andrea Horta Machado

Problemas sociocientíficos controversos como fomentadores do agir responsável: considerações sobre um episódio em uma aula de ciências
Luis Gustavo D’ Carlos Barbosa – luis_dcarlos@hotmail.com
Maria Emília Caixeta Castro Lima - mecdcl@uol.com.br
Andrea Horta Machado - ahortamachado@gmail.com
Faculdade de Educação da UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

A crítica bakhtiniana à cisão do mundo teórico e o mundo da vida, com a sobreposição, muitas vezes tirana, do primeiro sobre o segundo, repercute de forma inevitável sobre os educadores e pensadores da área de educação em ciências. Em uma aula de física, química ou biologia há lugar para o sujeito se dizer responsavelmente? Em uma matriz curricular pautada por istinas, verdades teóricas na terminologia bakhtiniana, há lugar para a pravda, o verdadeiro para cada indivíduo, seja ele professor ou aluno? Como oportunizar e até mesmo incentivar o agir responsável em uma aula de ciências?
Há algumas décadas se discute no meio acadêmico e entre os educadores a necessidade de reconstruir o conteúdo abordado no ensino de ciências para além de uma dimensão conceitual – de forma a considerar também as dimensões procedimental e atitudinal. Nas palavras de Santos (2004), é importante existir não só uma educação em Ciência, mas uma educação sobre Ciência e uma educação pela Ciência. Percebemos a partir dos anos 60 uma nítida mudança da concepção do ensino de uma ciência “pura” para a concepção de abordagem CTS, também conhecida por Ciência, Tecnologia e Sociedade. Apontou-se a necessidade de não mais se ensinar uma ciência “fechada”, de conteúdos prontos e acabados, mas de problematizar a natureza do conhecimento científico, seus processos de produção e suas contradições.
Carvalho (2004) propõe a formação no educando de uma consciência tecnológica, ou seja, uma consciência das implicações pessoais, sociais, morais, econômicas e, sobretudo, ambientais, do desenvolvimento tecnológico. Ela supõe que ao adquiri-la, os sujeitos, cidadãos em formação, terão melhores condições de participar de debates acerca de decisões que envolvam forte componente científico-tecnológico.
Apesar da aparente proximidade que a consciência supracitada sugere à consciência participativa proposta por Bakhtin, tal argumento democrático para se ensinar ciências em uma perspectiva CTS é criticado por Castro et al (2010), pois nele subjazeria uma imagem de Ciência “esclarecedora”, em que sua racionalidade, erigida na modernidade, prevalece como a única válida e superior às demais formas de racionalidade. Os autores advogam para os modelos decisórios a existência de um lugar legitimado para que as pessoas possam se dizer por meio dos saberes da experiência, sem que se exija a priori um “letramento científico mínimo” que os autorize a participar. Seria a nosso ver, uma proposta de resgate do mundo da vida, cindido e subvalorizado em relação ao mundo teórico mediante decisões da esfera pública. Os conhecimentos produzidos a partir destas outras racionalidades frequentemente costumam ser rejeitados como não científicos e irracionais. No entanto, para Castro et al (2010)
são os conhecimentos da experiência que mobilizamos na maior parte do tempo para respondermos às nossas inquietações e fazer nossas escolhas, já que vivemos nossas vidas distensionados dos compromissos epistêmicos que regem o modo paradigmático de pensar (p.17).

Na visão de Santos (2002, p.81), “a ciência moderna consagrou o homem como sujeito epistêmico, mas expulsou-o enquanto sujeito empírico”. Ou nas palavras do historiador Alexander Koyré (1968) citado por Prigogine (2009):
Eu afirmei que a ciência moderna quebrou as barreiras que separavam o céu da terra, uniu e unificou o universo. E isso é verdade. Mas, fez isso com a substituição do nosso mundo de qualidade e percepção, o mundo no qual vivemos, amamos, morremos, por outro mundo, o da quantidade, da geometria reificada, um mundo no qual há um lugar para cada coisa e nenhum lugar para o homem. Por isso, o mundo da ciência – o mundo real – ficou alienado e completamente divorciado do mundo da vida, e a ciência tem sido incapaz de explicar ou de livrar-se dele chamando-o de ‘subjetivo’. (...) Dois mundos: isso significa duas verdades. Ou nenhuma verdade. (p.23).
A análise acima corresponde à unicidade fragmentada do sujeito dentro do que Bakhtin chama de “mundo da cultura”, onde o conteúdo-sentido e o ato ou pensamento em si estão cindidos, conduzindo-me a um juízo teoricamente válido que o eu não se faz presente. Como consequência, “o significado de um Ser para o qual o meu lugar único no Ser foi reconhecido como não essencial não será jamais capaz de me conferir sentido” (BAKHTIN, 1993, p.17)
Há, pois, saída a este imbróglio? Acreditamos que se não houver saída, é possível que a educação em ciências possibilite ao menos a tomada de consciência sobre tal divisão. Propomos como lugar privilegiado para oportunizar e até mesmo incentivar o exercício da consciência participativa no aprendizado das ciências naturais a inserção de problemas sociocientíficos de natureza controversa. Segundo Silva & Carvalho (2007), esses suscitam necessariamente
nos diferentes atores sociais envolvidos, posicionamentos políticos, sensibilidades éticas e estéticas diversificadas ou diferentes maneiras de interpretar uma dada realidade.(...) Os temas controversos possibilitam afastarmo-nos dos conceitos de harmonia, verdade absoluta, totalidade, determinismo, universo mecânico e neutralidade, normalmente presentes no discurso científico. (p.7)

Essa diversidade de posições é o que marca problemas de natureza complexa e que não são redutíveis à investigação empírica da Ciência, mas permeados por valores e dilemas de várias naturezas. Como exemplo, pode-se citar a terapia gênica, o uso da radiação em alimentos e nas comunicações, a geração de tecnologia nuclear, entre outras tecnologias.
Analisamos em Barbosa (2010) uma unidade de ensino trabalhada com estudantes dentro de uma sala de aula de química da 1ª série do ensino médio de uma escola pública federal. O paradidático intitulado Aquecimento global e efeito estufa: a ciência por trás de uma controvérsia foi elaborado de modo a situar o aluno no problema em questão, introduzir posições em desacordo de diferentes cientistas, além de questionar se seria possível afirmar a real ocorrência do fenômeno no momento presente, e se sim, quais seriam suas possíveis causas. Houve uma intencionalidade explícita acordada entre os autores e a professora regente de que as mediações realizadas não restringissem sentidos, mas possibilitassem a abertura para interpretações e tomadas de posições diversificadas. Para tal, a professora selecionou textos, entregando para cada grupo dois artigos: um alinhado à posição do IPCC, defensor de que as causas do fenômeno são predominantemente antropogênicas, e outro referente a uma opinião defensora da predominância de causas naturais, ou questionadora da própria existência contemporânea do aquecimento global. O fragmento a seguir é parte de um debate em assembléia entre alunos e professora.

22. Prof: Ninguém faz por que que eu vou fazer?! Estas posições que a gente tem que refletir em cima delas. Estas posições que colocam a gente numa paralisia...Você falar: ah não, não tem jeito não, porque o fulaninho falou comigo que não tem jeito, então não tem jeito!
23. Nara (G3) Até falei com os meninos do grupo, que minha irmã foi passar um spray no cabelo e era aerossol, e ela falou assim: ”Se eu for usar aquele negócio de aerossol não vai fazer bem”. Aí eu olhei bem pra ela, a gente já tem isto na gente, e falei: Ninguém deixa de usar... por que você não vai usar? Todo mundo usa! Que o aerossol prejudica...
24. Prof: Depende, prejudica por que?
25. Nara (G3): Diz ela que prejudica, não sei... (RISOS de toda turma)
26. Fátima (G3): É que tem aquela história que prejudica a camada de ozônio...
27. Prof: Tá vendo, isto é que a gente tem que saber, tem muitas coisas que rolam por aí. “Ah isso aqui prejudica. Prejudica como?”
28. Nara (G3): Aí ela disse “Para quê que eu vou usar se prejudica?!” Aí falei assim: Todo mundo usa, não vai adiantar só você não usar! Já tá dentro da gente pensar que se todo mundo usa para que que eu vou parar, entendeu? É um pensamento errado. Eu parei depois pra pensar...É um pensamento errado, sabe?!
29. Fátima (G3): É por que se todo mundo pensar assim...
30. Prof: A cultura brasileira é muito flexível, né?! Nós somos tão flexíveis que nós criamos o carro FLEX gente! Aí fiquei pensando: o carro FLEX é o ícone da cultura brasileira! Você pode usar álcool e gasolina na proporção que você quiser que o carro anda... Mas fala Nara que eu te cortei.
31. Nara (G3): Não era isso mesmo que eu tava falando, tá dentro da gente, automaticamente a gente pensa: “Se ninguém faz, para que que eu vou fazer?” Aí eu falei com ela, depois parei pra pensar que você fala automático, sem você perceber.

Nara revela a importância do outro na constituição do eu. Sua subjetividade sendo reformulada só se faz mediante ao episódio com a irmã, para a qual ela se disse, e só a partir do pronunciado, pode haver meta reflexão de que há coisas dentro da gente (turno 28) que são automatizadas, isto é, enculturadas pelas várias vozes sociais que constituem o senso comum e que, muitas vezes, elas se encontram inconscientes. É um processo de desnaturalização dos dizeres sociais. Só a partir do Outro-professora, Outro-colega, ou Outro-autor que fala no texto que leram, a história com a irmã ganhou ressonância interior e sentidos novos. A gente tem isso na gente (turno 23) de repetir vozes que circulam em nossa cultura de que ninguém deixa de usar, por que iremos fazer diferente? Como este isto que está dentro da gente se constituiu? E como pode estar em processo de mudança, tal como acontece com Nara? Bakhtin oferece uma leitura do ser humano em inconclusibilidade e abertura a ressignificar sempre (BAKHTIN, 2003, p.374), um contínuo “em sendo”, onde não há ponto de estagnação absoluta em nossa constituição e em nossos sentidos.
O caso pessoal relatado por Nara questiona-nos se é necessário saber a “verdade” ou “ter certeza” para se posicionar: Prejudica por que? (turno 24); Diz ela (a irmã) que prejudica, não sei! Embora, provavelmente, o saber científico qualifique o posicionamento, a participação de Nara sugere que a dúvida não exclui seu direito e dever responsável de se dizer, de se posicionar, pois a razão teórica é apenas parte de seu todo que é único. Isso também parece trazer à tona o critério de “relevância” do ato frente uma realidade de dimensões globais. Ela aponta outro horizonte da compreensão, não definida apenas no contorno do cognitivo-conceitual, mas como nas palavras de Bakhtin (1993), para além disso:
Compreender um objeto é compreender meu dever em relação a ele (a atitude ou posição que devo tomar em relação a ele), isto é, compreendê-lo em relação a mim mesmo no Ser-evento único, e isso pressupõe minha participação responsável, e não uma abstração de mim mesmo. É apenas de dentro da minha participação que o Ser pode ser compreendido como um evento, mas esse momento de participação única não existe dentro do conteúdo, visto em abstração do ato como ação responsável. (p.19)

Nara parece viver uma tomada de consciência de que não é “todo mundo” e ao mesmo tempo “não é ninguém” quando exerce um julgamento moral de que “tal pensamento é errado” (no turno 28) ou que “você automaticamente pensa” (no turno 31). Assim, age eticamente, pois é responsável ao “localizar” seu eu no mundo e, consequentemente, a unicidade de seu tempo e lugar, e é responsiva à irmã e à professora ao afirmar a relevância de sua atitude. Parece-nos que “paralisar” ganha novo significado: é pensar igual ao outros sem localizar o próprio “eu”, a própria voz. Nara vive o que Bakhtin chamou de pensamento participativo, reconhecendo seu não-álibi quando toma consciência de que sua atitude é pessoal, única e intransferível, a despeito de todos ou de “ninguém”:
A realidade da unicidade unitária desse mundo (da vida) é garantida pelo reconhecimento de minha participação única nesse mundo, por meu não-álibi nele. A minha participação reconhecida produz um dever concreto — o dever de realizar a inteira unicidade, a unicidade totalmente insubstituível de ser, (BAKHTIN, 1993, p.59) (grifos do autor)
Se pensarmos para além do domínio das aulas de ciências, o que se espera da escola contemporânea? Que seja capaz de fornecer elementos da ciência para que os sujeitos possam participar de modo qualificado e autorizado da vida social e dos fóruns de decisão coletiva? Ou que vá além: reconheça a inconclusibilidade e tensão como constitutiva do sujeito, educando-o para uma ciência marcada pela incerteza e controvérsia, a partir de uma honesta constatação da cisão entre o mundo da teoria e o mundo da vida?
Os estudantes, ao perceberem a inconclusibilidade do processo de elaboração das ideias, experimentam o incômodo da compreensão como não lugar. Mas simultaneamente, já que não há fechamento, este espaço vazio convida a ser ocupado pela palavra própria, única de cada um deles. Posicionarem-se, mesmo em meio à incerteza. Neste exercício é possível que aprendam a desconfiarem quando a realidade e a explicação dos fatos parecerem por demais precisas e acabadas. Ainda que desejem, descobrirão impossibilitados de não se dizerem, já que não encontram álibi para suas unicidades no tecido da existência.
Debates sobre problemas sóciocientíficos controversos tornam-se lugares privilegiados e legítimos para a vivência do pensamento participativo. O aquecimento global, aqui abordado, pode ser pensado como um ícone do paradigma emergente na medida em que não encontra solução dentro dos cânones do pensamento cartesiano de causa-efeito, o que nos leva a crer que podemos avançar na compreensão de fenômenos globais e de natureza complexa a partir de outras racionalidades. Relativiza a autoridade científica, desvelando a construção sóciocultural não apenas das hipóteses e teorias, mas dos próprios dados, que são recortados de forma não neutra. Quando a ciência, que era a autoridade para decidir sobre as verdades absolutas, passa a conviver com as incertezas, os sujeitos tornam-se autorizados a participar dos debates e, com isso, imprimir suas marcas, deixar sua assinatura na arena da vida.
Uma educação comprometida com os sujeitos aposta na dúvida. É contra a ignorância de não saber coisa alguma quando apenas repete ideias dos outros, palavras alheias. Entretanto, aposta na incerteza, pois ela põe o sujeito em movimento numa constante busca de sua verdade pravda como o algo-a-ser-alcançado. A vida, baktinianamente falando, é um eterno vir-a-ser, onde nada está posto, nada está acabado ou resolvido esteticamente. O mundo ético é um mundo aberto, e é por isso que há lugar para mim e para o Outro nessa existência.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza.. Título original: Toward a Philosophy of the Act. Austin: University of Texas Press, 1993. 93p.
______________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 476p.
BARBOSA, L.G.D.C. O debate sobre o aquecimento global em sala de aula: o sujeito dialógico e a responsabilidade do ato frente a um problema sóciocientífico controverso.2010. 80f.Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2010.
CARVALHO, A. M. P. Critérios estruturantes para o Ensino de Ciências. In: Ensino de Ciências: unindo a Pesquisa e a Prática. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.

CASTRO, R.S; LIMA, M. E. C. C.; PAULA, H. F. Formação de professores e compreensão pública das ciências: contribuições para a participação democrática. Anais do VIII Jornada Latinoamericanas ESOCITE: Ciencia y Tecnología para la inclusíon social. Buenos Aires, 2010.

PRIGOGINE, Ilya. Ciência, Razão e Paixão. 2 ed. São Paulo: Ed. Livraria da física, 2009.112 p
SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo:
Cortez, 2002. 3 ed. 415 p.
SANTOS, M. E. V. M. Educação pela Ciência e educação sobre Ciência nos manuais escolares. In: ENCONTRO IBEROAMERICANO SOBRE INVESTIGAÇÃO BÁSICA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, 2, 2004, p. 76-89.
SILVA, L. F. ; CARVALHO, L. M. A Temática Ambiental e o Processo Educativo: o ensino de Física a partir de temas controversos. Ciência & Ensino (UNICAMP), v. 1, p. V. especial. 2007.<http://www.ige.unicamp.br/ojs/index.php/cienciaeensino/article/viewFile/152/105>. Acesso em 30 de abril de 2009.

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