quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Cristina Maria Campos, Corinta Maria Grisolia Geraldi

A Produção Infantil: a criança contando sua história.
Autoras: [1]Cristina Maria Campos / UNICAMP/ Prefeitura Municipal de Campinas
[2]Corinta Maria Grisolia Geraldi /UNICAMP

A preocupação que muitos professores tem em relação ao que e como ensinar e como planejar aulas interessantes é constante em reuniões de Conselhos de classe, TDCs e CHPs. Para um grupo ainda existe a possibilidade do livro didático, sempre com a possibilidade de usar o livro didático, onde encontramos tudo fácil, tudo pronto, na base do faça como no modelo.
Quem instrui é o material didático. Ao professor compete distribuir o tempo, distribuir as pessoas, e verificar se houve “fixação do conteúdo, comparando respostas dos aprendizes com o livro do professor”, onde exercícios e tarefas estão resolvidos e oferecem a chave de correção de qualquer desvio. (GERALDI. 2010 p. 87).

Não sei trata de avaliar o professor e a sua formação, mesmo por que no Brasil há muito que se debater sobre a formação dos novos profissionais de educação que estão chegando às escolas. O dado é que alguns professores conseguem ir além do currículo estabelecido, conseguem tornar a escola um lugar prazeroso e a aula um meio de conhecimento. A construção desse currículo é feita cotidianamente, com a participação de todos envolvidos no processo, não é cópia ou livro didático, o currículo é vivo. Segundo Geraldi, “O currículo é entendido e trabalhado como o conjunto das aprendizagens vivenciadas pelos alunos, planejadas ou não pela escola, mas sob responsabilidade desta, ao longo de sua trajetória escolar.” (GERALDI, 1994 p. 117).
O que é esse conjunto de aprendizagens vivenciadas pelos alunos, a história da sua vida, dos seus amigos, seus brinquedos, brincadeiras, programas preferidos na TV. O mundo que o rodeia em casa, na escola, na rua.
Os professores poderiam fazer uso desse conhecimento e transformá-lo em conteúdo em sala de aula para efetivação do processo ensino aprendizagem, chegando enfim ao conhecimento.
Difícil imaginar que uma criança do século XXI se interessaria por um universo pronto, por lições que no máximo a fariam pensar em ir embora mais depressa.
O diálogo com os pequenos sempre foi de grande importância para mim, em pequenos ou grandes grupos, na roda ou em carteiras, na rua e em corredores da escola, o pensar infantil é o que me encanta, me faz rir, pensar, criar e acreditar em possibilidades outras de ensino, onde a opinião deles possa ser rejeitada.
Em todas essas conversas percebia sempre que todos falavam juntos, gritavam e não escutavam uns aos outros, todos tinham urgência em falar, o tempo dado na roda era curto, o tempo de escuta na carteira ou corredor inexistente para tanta vida dentro de uma criança.
Como professora, acredito ter responsabilidade na maneira que educo e alfabetizo essas crianças, no comportamento deles no futuro, na respostas que darão à sociedade quando forem adultos e participantes, votarem, trabalharem e outras maneiras de participar do mundo.
A atenção dada a cada fala de aluno, o ouvido atento me leva muitas vezes a repensar o meu planejamento de aula e a partir da conversa inicial replanejar o já preparado.
Escreverei abaixo uma pipoca pedagógica sobre a observação minha e a participação de cada criança no planejamento das aulas.
As Pipocas Pedagógicas já foram apresentadas em 2010 no “Círculo – Rodas de Conversa Bakhitiniana”, nesse caso farei apenas apresentação da pipoca.
Faltava abandonar a velha escola!
           
Essa turma que era de piratas vivia bem longe da prancha. Heróis? Nunca passou pela cabeça de nenhum deles, pertencer a Sala de Justiça. Diferente da turma de 2008 que vivia a TV e distante da atual (2011) que ainda procura a professora. Essa turma do meio (2009/2010) queria mesmo como canta Lulu Santos “tomar o mundo feito coca-cola”, só que sem abandonar a velha escola, apenas contar que dentro dela tem gente.
            Descobriram através da “deusa foca morta” que Sedna não era o limite e tomaram para si as rédeas do que queriam viver na escola, eu era apenas a que possibilitava esse viver.
            Queriam falar, aprender, rir, brincar, sonhar, lamentar, chorar, amar, queriam, queriam e queriam todas as manhãs 20 “quereres”, pedidos com vontade e afinco, quereres que tinham que ser ouvidos.
            - Prô eu quero fazer produção de texto!
            - Prô eu quero “ir na” sala de informática!
            - Prô eu quero fazer “tóf tóf tóf”!
            - Eu quero, eu quero e eu quero.
            Gostava de ouvi-los e segundo OP e colegas eu perdia muito tempo dando ouvidos às bobeiras ali produzidas. Percebi que na realidade eles queriam o que todos nós adultos, crianças e adolescentes queremos, falar sobre a nossa vida para outra pessoa. Nessa época, eu andava num flerte quase fatal com Arroyo e acreditava que era possível “contar-nos uns aos outros, contar-nos nossas histórias, nossos saberes e ignorâncias, nossa cultura”. (ARROYO, 2000, p. 65).
            Então após longa escuta de quereres, resolvi propor a escrita dessas vidas, curtas, mas cheia de histórias, recheadas de memórias e logo Itália perguntou com expressão de diga que não:
            - É produção de texto? Tem reestruturação depois? Não que não gostassem de textos, produziam coisas lindas, mas contar sobre suas vidas, não merecia reestruturação e nem interpretações outras, era a sua vida e seu contar.
            Contar sua vida ao outro nos moldes da escola, era tirar a magia que ela tinha para cada um deles, um texto nada mais era que uma atividade escolar. A vida vai além dos muros escolares.
            Conversa suspensa, preciso ir à “Sedna” resolver, a minha foca morta há de me ajudar. Fim de semana a solução, faríamos pequenos relatos da nossa vida, com imagem e texto e sem correção. Ideia aceita começamos o trabalho de contar-nos uns aos outros, com o passar do tempo o pedido muda:
            - Prô “vamo se conta” pros outros hoje? Saigon.
            - Nossa, todo dia vocês querem contar-se uns aos outros. E a Matemática, Ciências, História?
            - Prô ta tudo dentro, esqueceu das Tóf Tóf Tóf. Idislaidi.
            O tempo corria e naquele palco eu era apenas a contra regra:
            - Prô acabou o papel?  Corta mais cartolina? Não tem lápis azul!
            Via os textos passarem de mão em mão, apagarem-se, cabeças balançavam, risadas eram dadas, folhas eram trocadas, jogadas fora, outras eram feitas e um dia finalmente Isquiriana me pergunta?
            - É esse registro que você faz na sua escola? Com o seu trabalho na mão. Olhei e vi surpresa e feliz que todos tinham feito seu 1º Memorial, um registro da vida, para a vida toda.
            Alguns descobriram felizes que apesar de criança já tinham memória, que isso não era apenas dos idosos. Outros ficaram felizes ao perceber que partilhavam à amizade com outro desde os três meses de idade na creche que já era distante em seus pensamentos.
            Estudamos a ruas e seus mascates, suas brincadeiras, os passeios que a cidade oferece, as grandes e as pequenas lojas de roupas, a avó já falecida, o tio que mudou para longe, o pai que separou e deixa saudades, o namorado da mãe que pode ser um amigo. Um lugar para conhecer e outro para guardar para sempre. O infinito do espaço e suas estrelas, o sol, a lua e o sono que chega com ela.
            Alguns aceitaram que eram “especiais”,outros que produzir um texto não era bicho de seta cabeças. Ficamos mais próximos. Usamos dicionário, internet, conversas com família, durante seis meses produzimos partes importantes da nossa vida e da nossa história. O conhecimento dali tirado é lembrado até hoje por todos que vivenciaram essa experiência de contar-se ao outro, de completar-se na visão do outro, de produzir um excedente de visão que só aquela atividade “pedida” pelo grupo poderia proporcionar.
            Na Mostra Pedagógica, dia marcado por eles para contarem-se aos pais, ouço a fala emocionada de três mães:
            - Cris, esse álbum tem histórias silenciadas por meu filho há muito tempo. Silenciadas em casa, contadas na escola, era a experiência de contar-se uns aos outros com crianças que tomaram o mundo feito coca-cola e  fizeram da suas vidas um passeio público.

REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel G. Ofício de Mestre Imagens e auto-imagens. 5ª Edição. Vozes. RJ. 2000.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 2ª ed. Martins Fontes. São Paulo. 1997.
Campos, Cristina M.; Cunha, Glória P. da; Pereira, Marcemino B.; Buciano, Maria Fernanda P.; Queiroz, Wilson. De “Pipoca Pedagógica” a Cordel – experiências narrativas no “GEPEC de Terça”. In IV Congresso INternacional de Pesquisa (Auto) Biográfica, São Paulo: FE – USP, 2010. 1 CD-Rom.
CAMPOS, C. Rua e Escola: O Hip Hop como movimento porta-voz dos sem vez. Universidade Estadual de Campinas. 2007. Dissertação de Mestrado.*
GERALDI, C. M. G. Currículo em ação: buscando a compreensão do cotidiano da escola básica. Revista Pró-posições. Vol 05. nº03 [15]. Novembro de 1994.
GERALDI, J.W. A Aula como Acontecimento. Pedro & João Editores, 2010. São Carlos. São Paulo.
IRA. Flerte Fatal. In. Acústico MTV. 2004.
PEREIRA, Marcemino Bernardo, CAMPOS, M.C. Pipocas Pedagógicas: contar a aula, reecantar a escola. In. Círculo. Rodas de Conversa Bakhitiniana. Cadernos de Textos e Anotações. São Carlos. 2010.
SANTOS, Lulu. O Último Romântico. 1987.


[1] Doutoranda da Faculdade de Educação da UNICAMP, integrante do GEPEC (Grupo de Pesquisa em Educação Continuada). Professora alfabetizadora da Prefeitura Municipal de Campinas.
[2] Professora Drªaposentada do Programa de Pòs-Graduação em Educação da UNICAMP. Pesquisadora do GEPEC. 

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