quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Andreia Alvim Bellotti Feital

Tecendo reflexões em busca do ser professora na contemporaneidade
Andreia Alvim Bellotti Feital

Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal. (Mikhail Bakhtin)

Este texto aborda a questão do ser professora a partir de reflexões em torno da minha prática pedagógica. Tendo como ponto de partida/pano de fundo um evento ocorrido em minha sala de aula trago à tona minhas inquietações, os ecos de outras vozes que se misturam à minha na busca por compreender o que é ser professora atualmente. Nesse movimento o texto se constituirá em um instrumento de compartilhamento de algumas questões e reflexões sobre ser professora.
Necessário é dizer em qual lugar me situo. Sou mulher, mineira do interior, observadora, ouço mais que falo, sou casada, mãe, professora-educadora por opção, por gosto, por amor. A Educação é a mola propulsora de minhas reflexões, ações, do meu ser. Esse meu lugar explica minhas escolhas no exercício de minha profissão e imprime singularidade ao trabalho docente.
Foco meu olhar na sala de aula e a compreendo como um rico espaço onde o trabalho docente se realiza. É também nela que encontro sujeitos ativos com os quais estabeleço uma relação dialógica. Consciente disso e buscando sempre refletir sobre esse ser professora adquiri o hábito de fazer pequenas anotações, junto ao meu planejamento diário, de situações que ocorrem durante as aulas e que me tocam de uma maneira diferente, seja causando estranhamento, confirmando uma hipótese, me emocionando, enfim, que adquirem um sentido especial naquele momento. É uma dessas anotações que me fizeram refletir bastante quanto o que é ser professora em um determinado contexto de trabalho.
Atualmente sou professora de uma turma do 1º ano do Ensino Fundamental do Colégio de Aplicação João XXIII, da Universidade Federal de Juiz de Fora. O ingresso das crianças neste colégio é realizado através de um sorteio e elas são oriundas de diversas classes sociais. A expectativa das famílias em relação ao processo de ensino-aprendizagem de seus filhos é muito grande, especialmente porque, muitas delas, veem o colégio como uma oportunidade de oferecer aos filhos algo que não tiveram[1].
Diante dessa realidade trago um evento que desencadeou um processo reflexivo quanto ao papel do professor no processo de aprendizagem da criança.
Durante o momento de lanche das crianças sentei para ler um bilhete enviado por um pai. Um garoto bastante atento a tudo que ocorre em sua volta, aproximou-se de mim e ficou quieto observando-me atentamente. Eu olhei para ele e ouvi a seguinte pergunta: “Tia, quem te ensinou a ler?” Eu olhei para ele, um filme rápido de minhas lembranças veio a mente e eu disse: “Ah, isso faz muito tempo! Eu tinha mais ou menos a sua idade, morava numa cidade bem pequena e minha professora se chamava Marilene. Ela era uma pessoa muito legal, estava sempre ajudando a nossa turma a aprender um pouquinho mais a cada dia. Ela era boazinha, mas também ficava brava quando precisava. Mas antes dela outras professoras também nos ensinaram com muita brincadeira, muita música, muita história e um monte de outras coisas legais. Eu e meus amigos adorávamos!”
Uma fala que a princípio poderia supor uma resposta rápida, objetiva e conclusiva, mas que desencadeou em mim, também sujeito desse processo, reflexões quanto aos compromissos assumidos com uma turma de crianças em fase de alfabetização, assim como com as expectativas de suas famílias, com a proposta pedagógica do colégio, com o comprometimento pedagógico, político e social que o ser Educadora implica.
Ao responder ao meu aluno eu estava surpresa com sua pergunta e encantada com o tom seguro, firme, direto com o qual ela foi elaborada a partir da observação atenta de uma atitude minha. E também muito tocada pelo desejo daquela criança, expresso na entonação  de sua fala e em seu olhar, de se tornar leitor. A resposta foi emitida com uma entonação diferente, como quem conta uma história rápida, mas cheia de encantamentos. Ele ouviu e disse: “Hummm”. Quando percebi que ele já voltaria à sua mesa o encantei e desafiei novamente, agora propositalmente: “Você também já está aprendendo a ler.” Ele voltou e me disse que não, que ele não sabia. Então, corri os olhos pela sala de aula e apontei letras, símbolos, palavras solicitando que ele dissesse o nome de algumas letras, que falasse o significado de alguns dos símbolos e que lesse algumas palavras escritas em diferentes lugares da sala. O menino sorria a cada acerto e, ao final, foi sentar-se sorridente e perguntou: “Será que até chegar o fim do ano eu já aprendi tudo, a ler livrinhos também?” Eu apenas sorri e disse que nós aprendemos durante a vida toda, um monte de coisas, em lugares diferentes, e que ele com certeza chegaria ao fim do ano sabendo muito mais que sabe hoje, pois é um garoto muito esperto e inteligente. Mais uma vez fui contemplada com seu sorriso aberto e olhos brilhantes, e, saltitante - o corpo dele falou, respondeu satisfatoriamente e com alegria - voltou à sua mesa.
Por alguns segundos fiquei a contemplá-lo e a percebê-lo para além daquele evento.  O que suscitou algumas questões: Em que consistiu esse acontecimento? Quais os sentidos produzidos nesse encontro dialógico entre eu e o meu aluno, esse outro que me interroga? O que está implícito em sua fala?
Aquele evento havia extrapolado todo o planejamento que, de alguma forma, supõe “a aula como um ritual, e por isso com gestos e fazeres predeterminados, de transmissão de conhecimentos” conforme diz Geraldi (2010, p. 81). O referido evento desencadeou um processo reflexivo quanto à relação dialógica que estabeleci com o sujeito-aluno. O quanto suas palavras suscitaram em mim, seu outro, palavras outras cheias de significado e sentidos que agora começo a compreender para além daquele evento. Essa compreensão ativa que traz em si uma atitude responsiva diante da vida enquanto Ser-evento-único-responsável evidencia que o meu lugar de educadora implica a tomada de posição, a autoria, a contrapalavra, enfim, em responsividade.
O aluno ao me observar me via como um outro que eu não via. Porém, quando me pergunta como aprendi a ler, demonstra ao meu eu, uma dúvida sobre o outro que ele via: alguém que, em um “passe de mágica” passou a saber ler ou alguém que também teve “dificuldades” como ele? Me mostrou um todo de mim mesmo, que eu não domino, mas que me ajudou a revisitar meu papel de professora: quem domina o conhecimento ou quem media a relação do aluno com este conhecimento? Aliado a isso, somente olhando o aluno como um outro que não corresponde nunca ao seu próprio olhar, poderia enxergar um leitor em potencial, em construção, evidenciando a ele, esse aspecto que não lhe era claro.
Aquele sujeito de seis anos, altamente ativo, esperto, autor de comentários instigantes e desafiadores, uma criança, havia despertado em mim uma atitude responsiva ativa. Diante da pergunta daquele aluno o meu olhar voltou-se imediatamente para ele de maneira diferenciada, focalizando seu desejo de saber, mas desafiando-me a considerar a minha responsabilidade/responsividade  enquanto sua professora.
Refletindo sobre o encontro dialógico entre eu-professora e o outro-aluno na busca por  compreender em que consistiu aquele acontecimento, os sentidos ali produzidos, tomo consciência da dimensão daquele evento para minha constituição do ser professora. Dois seres, carregados de singularidades, unidos pela condição de cada um no evento – ser -aluno e ser-professora - e pelo diálogo - que compreende não somente a interação verbal, mas também a compreensão ativa do olhar, da expressão facial e dos gestos.
Essas considerações sobre o papel do professor auxiliam meu processo reflexivo em torno do ser professor e em minha busca pessoal de identificar em minha prática pedagógica o docente que sou. Volto então o meu olhar para o evento que citei no início deste texto e compreendo o encontro dialógico entre eu-professora  e o outro-aluno como um processo de constituição de sujeitos em que o excedente de visão do outro em relação a mim permite que ele me complete de um ponto que eu mesmo não tenho como fazê-lo. É somente através desse excedente de visão que a completude-incompleta é possível. “Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o outro, através do outro e com o auxílio do outro.” (Bakhtin, 2003 p. 340).
A partir de tudo que foi exposto continuo a escrita desse texto em meio a muitas reflexões e uma questão, em especial, orienta todo meu processo formativo na busca pelo ser professora: qual é o papel do professor?
Segundo Geraldi (2010) a profissão docente ao longo da história sofreu diversas mudanças no que se refere ao perfil profissional. De produtor do conhecimento a transmissor de um saber produzido por outro e, posteriormente, como aquele que é o controlador das técnicas, materiais didáticos e tecnologias em sala de aula. Atualmente, diante das diferentes crises que vivemos – crise dos sistemas de produção, dos paradigmas científicos, das instituições sociais milenares, do nosso modo de viver no planeta – também a identidade da profissão professor é atingida.
Nesse sentido, faz-se urgente repensar o papel do professor nessa outra conjuntura social, nesse outro tempo em que os alunos são sujeitos ávidos de perguntas e dispõem de meios diversos de acesso à informação. Geraldi (2010, p. 95) aponta que
“o professor do futuro, a nova identidade a ser construída, não é a do sujeito que tem as respostas que a herança cultural já deu para certos problemas, mas a do sujeito capaz de considerar o seu vivido, de olhar para o aluno como um sujeito que também já tem um vivido, pra transformar o vivido em perguntas.”

Nesse sentido são as perguntas a tônica do processo ensino-aprendizagem e não as respostas, o que não desconsidera a importância destas. Nessa outra realidade o professor tem papel fundamental enquanto aquele que instiga as perguntas de seus alunos, que dialoga com ele, que considera o vivido como objeto de estudo e junto com o seu aluno é também sujeito do processo de ensino-aprendizagem.  Cabe ao professor a mediação para que esse processo seja de construção do conhecimento para além do senso comum, buscando transformar em conhecimento as informações obtidas através de diferentes fontes. Esse foco nas perguntas muda todo o sentido da aula, preconiza o sujeito aprendente, característica própria do humano. As perguntas são possibilitadoras da compreensão ativa, abordada por Bakhtin (1998, p.131) como aquela capaz de opor a palavra do outro uma contrapalavra. Diferente da compreensão passiva, “que exclui, a priori, qualquer resposta”.  Nesse movimento de construção do conhecimento que tem as perguntas como a tônica desse processo em que o vivido é considerado e questionado, a aula torna-se um momento único, um acontecimento. Nas palavras de Geraldi (2010, p. 100) “Tomar a aula como acontecimento é eleger o fluxo do movimento como inspiração, rejeitando a permanência do mesmo e a fixidez mórbida no passado.” E, para que isso aconteça, professor e aluno precisam estar totalmente envolvidos nesse processo que supõe participação conjunta, comprometimento emocional-volitivo com sua ação de Ser no mundo.
Todas as considerações anteriores direcionam o processo reflexivo no qual me encontro para a compreensão do meu Ser no mundo - e a minha busca pelo ser professora, que é parte disso - como um constante constituir-se socialmente, enquanto sujeito inconcluso, inacabado, datado, consciente e respondente.

Referências:
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo, Martisn Fontes, 2003.
BAKHITN/VOLOCHINOV. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec, 1999


[1]    São recorrentes as falas das famílias, durante as reuniões de pais e os atendimentos individuais aos responsáveis, que apontam a matrícula do filho no colégio como “sorte grande”, “oportunidade de ter acesso a uma educação de qualidade”.

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