quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Daysilane das Mercês Frade Silva, Murilo Cruz Leal

A articulação CTS no Ensino de Química sob a ótica responsiva de Mikhail Bakhtin
Daysilane das Mercês Frade Silva
Universidade Federal de São João del Rei – UFSJ
Murilo Cruz Leal
Universidade Federal de São João del Rei – UFSJ

Haverá algo que corresponda ao “contexto” nas ciências naturais? O contexto está sempre vinculado à pessoa (diálogo infinito em que não há nem a primeira nem a última palavra); nas ciências naturais, há um sistema objetal (a-sujeital). Nosso pensamento e nossa prática, não a técnica, mas a moral (nossos atos responsáveis), exercem-se entre dois extremos: entre a relação com a coisa e a relação com a pessoa.  Mikhail BAKHTIN


Fundamentamos nossa compreensão de integrar ciência, tecnologia, sociedade e ética no aporte teórico de Mikhail Bakhtin que em sua obra Para uma Filosofia do Ato apresenta uma tese que diz respeito a não separação dos atos que realizamos de seus produtos. Amorim (2003) mostra que a dimensão ética em Bakhtin está vinculada à responsabilidade. Suas interpretações da obra supracitada de Bakhtin nos ajudam a pensar a Química relacionada com o mundo em que vivemos.

O mundo como objeto de cognição teórica não deve se fazer passar como o mundo inteiro, pois ele é apenas um constituinte do mundo real. A cognição teórica não é a última cognição; ela está integrada no contexto único, individual do pensamento real como evento (AMORIM, 2003, p. 17).

Reconhecemos a Química como uma ciência aberta e relacional a outras formas de conhecimento, diferente de uma visão que a concebe como tecnociência que se encerra em práticas cujos fins justificam os meios e seus resultados são pretensamente neutros. Assim, enunciamos a dimensão ética como indispensável para compreensões e ações mais satisfatórias em Química.

Qualquer coisa tomada independentemente de, e sem referência ao centro único de valor do qual flui a responsabilidade de um ato realizado se descroncretiza e se des-realiza: ela é despojada de seu peso com relação ao valor, ela perde sua obrigatoriedade emocional-volitiva, e se torna uma possibilidade vazia, abstratamente universal. (BAKHTIN, 1993, p. 76 – 77).

A Declaração final da Conferência Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO (1999) sobre Ciência para o século XXI: um novo compromisso trouxe considerações que estabelecem relações entre ciências e ética,

[...] que o acesso ao conhecimento, a partir de uma idade precoce, faz parte do direito à educação de todos os homens e mulheres, e que a educação científica é de importância essencial para o desenvolvimento humano, para a criação de capacidade científica endógena e para que tenhamos cidadãos participantes e informados, [...] que a pesquisa científica e o uso de conhecimento científico devem respeitar os direitos humanos e a dignidade dos seres humanos [...] a necessidade de praticar e aplicar as ciências, respeitando exigências éticas [...] que a prática da ciência e o uso do conhecimento científico devem respeitar e preservar a vida em toda sua diversidade e também os sistemas de preservação da vida de nosso planeta [...] que uma nova relação entre ciência e sociedade é necessária (UNESCO, 2003, p. 29-31).

Ainda de acordo com a UNESCO (2003):

Devem ser promovidas uma intenção e uma colaboração cada vez mais intensas entre todos os campos da ciência. Trata-se não apenas de analisar os impactos atuais e potenciais da C&T sobre a sociedade, mas também de compreender as influências recíprocas ou, em termos mais precisos, de estudar a ciência, a tecnologia e as interações societárias de forma integrada (p.17).

Leal (2009) entende que “nos enfoques CTS e CTSA, a ciência e a tecnologia são compreendidas como produtos socialmente construídos, carregados, portanto de interesses, valores e visões de mundo” (p.46). Em Cachapuz e Praia (2005), encontramos a compreensão de CTS como um compromisso ético. Para estes autores, a relação Ciência-Tecnologia se dá “num contexto societal que é indissociável de um compromisso ético de sentido coletivo” (p.174). Eles percebem a

trilogia CTS como um compromisso ético, que obriga a uma intervenção social, marcada por um saber que prepara para uma cidadania responsável e para a tomada de decisões. A não termos em conta tal compromisso a Ciência pode tornar-se vítima do seu próprio desenvolvimento (p.173). 

Com a intenção de enfatizar a responsabilidade ética nas ciências e no seu ensino, propomos fundamentar as discussões a respeito do compromisso que envolve a abordagem CTS na noção de ato responsável de Bakhtin. Sua reflexão sobre a tecnologia divorciada da vida, proposta na obra Para uma Filosofia do Ato, nos ajuda a pensar o ensino de Química diferentemente da lógica tecnológica e reforça a perspectiva CTS, buscando integrar ciência, tecnologia e sociedade. Tal integração configura uma resposta responsável a muitos problemas causados por uma visão de neutralidade das ciências, estabelecida no seio do ‘mundo da tecnologia’.

[...] mundo da tecnologia: ele conhece sua própria lei imanente, e se submete a essa lei em seu desenvolvimento impetuoso e poder irrefreável, apesar do fato de que há tempos fugiu da tarefa de compreender o propósito cultural desse desenvolvimento, e pode servir antes ao mal que ao bem. Assim, os instrumentos são perfeitos de acordo com sua lei interna, e, como consequência, eles se transformam, a partir, do que era inicialmente um meio de defesa racional, numa força terrível, mortal e destrutiva. Tudo que é tecnológico, quando divorciado da unidade única da vida e entregue à vontade da lei imanente de seu desenvolvimento, é assustador; pode de tempos em tempos irromper nessa unidade única como força terrível e irresponsavelmente destrutiva (BAKHTIN, 1993, p. 25).

Além da possibilidade de encontrar fundamentos teórico-filosóficos para o entendimento da trilogia CTS junto à noção de ato responsável de Bakhtin, é oportuno referenciar, também, a importância de seu princípio dialógico na compreensão do elo articulador entre ciência, tecnologia e sociedade.

Mikhail Bakhtin problematizou a cisão entre mundo da vida e mundo da ciência. Em sua Filosofia do Ato, ele preconiza que “o mundo como o conteúdo do pensamento científico é um mundo particular; é um mundo autônomo, mas não um mundo separado” (BAKHTIN, 1993, p. 30). De acordo com Bocharov, na Introdução à Edição Russa da referida obra, a tese principal de Bakhtin é que pensar de modo participativo implica não separar os atos realizados de seus produtos. Bakhtin propõe uma descrição fenomenológica do mundo do ato responsavelmente realizado. E expressa: um “evento pode ser descrito apenas participativamente” (BAKHTIN, 1993, p. 49).

De acordo com Faraco (2009), a obra Para uma filosofia do ato antecipa grandes coordenadas da ideia de linguagem desenvolvida posteriormente pelo círculo de Bakhtin. Interessa-nos em especial a preocupação referente à atitude responsiva nas relações com o mundo da vida.

a)    a perspectiva da refração avaliativa de nossas relações com o mundo – fundamento da futura concepção da linguagem como estratificada axiologicamente e do conceitual da heteroglossia, isto é, da multiplicidade das vozes ou línguas sociais;
b)    a relação eu/outro – fundamento da grande metáfora dialógica do Círculo, que vai orientar sua compreensão da dinâmica da cultura imaterial e donde emerge a filosofia do riso de Bakhtin e seu conceitual da heteroglossia dialogizada, da bivocalização, do discurso citado;
c)    o destaque a unicidade dos eventos do mundo da vida – que sustentará, no futuro, a insistência do Círculo em aproximar sistematicamente as práticas de linguagem do cotidiano e aquelas das diferentes esferas da criação ideológica (FARACO, 2009, p. 101-102, grifos do autor).  

Na nota 16 da obra Para Uma Filosofia do Ato, reflexão proposta por S. Averintsev traz uma comparação entre Bakhtin e Husserl:

a sequência inteira do pensamento de Bakhtin como um todo está essencialmente próxima da abordagem de Husserl. A fenomenologia de Husserl orienta-se para a unidade indivisível da “experiência vivida” (Erlebnis) e a “intenção” contida nela. Os conceitos chaves de Bakhtin (“evento”, “eventicidade”, “uma ação realizada”: postupok) são similares nesse aspecto ao Erlebnis de Husserl (p. 97). 

É apresentada, também, no prefácio do tradutor Vadim Liapunov da edição americana, semelhante comparação entre os filósofos:

O resultado último da separação entre o conteúdo de um ato e a sua realização-experimentação única é que nós nos encontramos divididos entre dois mundos não comunicantes e mutuamente impenetráveis: o mundo da cultura (no qual os atos de nossa atividade são objetivados) e o mundo da vida (no qual nós realmente criamos, conhecemos, contemplamos, vivemos nossas vidas e morremos – isto é, o mundo no qual os atos de nossa atividade são realmente realizados uma vez e uma única vez). (o leitor pode notar aqui a antecipação de Bakhtin do conceito de Husserl do Lebenswelt) (p.13).

Em Husserl encontramos a recomendação: “voltar às coisas mesmas”, fazer um “retorno ao mundo-da-vida (Lebenswelt)” (OLIVEIRA, 2006, p.148).  No entanto, tal recomendação não deve ser entendida como algo da ordem do concreto, o que poderia conduzir a um empirismo ingênuo. Assim, a fenomenologia de Husserl não consiste em abdicar da objetividade da ciência, mas reatar a ciência ao mundo vivido.

Ao invés de anular o saber científico, o retorno ao mundo-da-vida leva-nos a considerá-lo não como um saber dogmático que quer encarcerar o mundo em suas representações rígidas e fechadas, mas como se constituindo, a partir do mundo percebido, sempre como um saber aproximado, aberto (OLIVEIRA, 2006, p.149).

Ainda na perspectiva da experiência vivida, Pierre Laszlo afirma que “o homem é o ser que encontra sentido no mundo” e que para compreendê-lo “utiliza códigos e ressalta analogias” (LASZLO, 1995, p.21). Mais adiante, na mesma obra, As palavras das Coisas ou a linguagem da Química, Laszlo comenta:

A química é construída sobre ambivalências, a começar por aquela do estático e do dinâmico: como posso dar uma representação unitária das moléculas, sob o aspecto de uma fórmula ou de um modelo, uma vez que é preciso concebê-las quer quando em repouso, imóveis, e por assim dizer encravadas, quer nas suas efusões de reatividade, assim que são estimuladas por outra molécula ou pela ação de uma radiação? (p. 83, grifo do autor).

Uma vez problematizada a ambivalência estático/dinâmico, é possível salientar que o ensino de Química centralizado em memorizações de símbolos, fórmulas e regras de nomenclaturas tende a separar o mundo do conhecimento e o mundo que habitamos, chegando a transformar códigos descritivos em representação inquestionável do real.

A preocupação com a separação da Química e do seu Ensino de nosso mundo vivido, tanto no sentido mais restrito apresentado por Laszlo, quanto naquele mais amplo das preocupações de Bakhtin e da Fenomenologia, pode ser identificada nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio – PCNEM:

no Brasil, a abordagem da Química escolar continua praticamente a mesma. Embora às vezes “maquiada” com uma aparência de modernidade, a essência permanece a mesma, priorizando as informações desligadas da realidade vivida pelos alunos e pelos professores (BRASIL, 1999, p. 239, grifos nossos).

Oliveira chama atenção para uma concepção do saber científico construído e se construindo que nos permite refletir a preocupação descrita no PCNEM (1999) a respeito do ensino de Química que vem “priorizando as informações desligadas da realidade vivida”.

Não se trata de negar o olhar desencarnado, mas de despertá-lo do sonho de um conhecimento soberano e de uma objetividade absoluta; de contestá-lo em sua visão de mundo, quando se esquece de sua origem secundária e construtivista, para fechar-se sobre si mesmo e colocar-se como modelo absoluto da realidade ou visão universal de mundo. O que, na perspectiva do olhar encarnado não podemos admitir na ciência é que ela tenha a exclusividade do verdadeiro. Não se trata de ser contra a ciência, de negá-la ou mesmo de desacreditar o saber científico (OLIVEIRA, 2009, p. 8).

Entendendo a inter-relação ciência, tecnologia e sociedade nas perspectivas bakhtiniana e fenomenológica, parece possível uma tentativa de interação entre a ciência (Química), seu fazer (seu Ensino, entre outros) e o mundo-da-vida (espaço sócio-histórico):

A fenomenologia, como reeducação de nosso olhar para o mundo, mostra-se, então, não apenas como crítica à visão de mundo da ciência, mas, sobretudo, como uma tentativa de retornar às coisas mesmas, sabendo que este retorno significa voltar ao mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento fala sempre, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente. (OLIVEIRA, 2006, p.149, grifos do autor).

Queremos pontuar que nossa reflexão nos coloca atentos à ilusão de um objetivismo exacerbado, contudo não negamos o caráter de objetividade da ciência. Assim, para caminharmos entendendo a dimensão objetiva na Química e a relevância de seu conhecimento escolar à vida cotidiana, podemos pensar sobre o liame que liga a ciência ao mundo da vida:

esse liame pode ser desvelado pelo menos de duas maneiras. Por um lado, [...] a ciência, mesmo se a sua linguagem em nada se assemelha à do mundo cotidiano, não fala de um outro invisível e mais real; se ela quer dizer alguma coisa, ela fala deste mundo aqui, do mundo de nossa experiência viva no qual nasceu. Por outro lado, não somente a ciência fala deste mundo, mas o próprio cientista fala neste mundo. Sem dúvida, pode-se observar de início que o cientista não é só cientista: ele tem uma vida de família, ouve música, joga golfe, tem opiniões políticas, convicções religiosas, etc. (DARTIGUES, 2008, p.78).

Desse modo, percebemos o saber químico vinculado aos nossos atos cotidianos, à nossa vida. Esta percepção pode proporcionar uma estreita relação entre sujeito do conhecimento e mundo da vida, em suas diversas dimensões – técnica, estética, ética etc. Percebemos que a interação dialógica na abordagem CTS e o compromisso ético entendido como ato responsável, podem conduzir o ensino de Ciências, particularmente o de Química, a calcar seus modos de agir e seus resultados na realidade. Assim, questionamos o divórcio: mundo da ciência e mundo da vida e, passamos a entender o fazer químico, bem como seu ensino, como atos responsáveis.
Referências Bibliográficas
AMORIM, M. A Contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e epistemológica. In: FREITAS, M. T.; SOUZA, S. J.; KRAMER, S. (org.) Ciências Humanas e Pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003. p. 11 -25.
BAKHTIN, M. M. Toward a philosophy of the act, Austin, University of Texas, 1993. Tradução para o Português de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza, destinada exclusivamente a uso didático e acadêmico. 108p.
BRASIL. Ministério da Educação - MEC, Secretaria da Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: 1999. p. 201-274.
CACHAPUZ, A.; PRAIA, J. Ciência-Tecnologia-Sociedade: um compromisso ético. Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnologíay Sociedad – CTS. v. 2, n. 6, p. 173-194, 2005.
DARTIGUES, A. Uma Filosofia Crítica das Ciências. In: DARTIGUES, A. O que é a Fenomenologia. Centauro: 2008. p.71-89.
FARACO, C. A. Linguagem & Diálogo: As Ideias Linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. 168 p.
LASZLO, P. A Palavra das Coisas ou a Linguagem da Química. Lisboa: Gradiva, 1995. 283p.
LEAL, M. C. Didática da Química: fundamentos e práticas para o Ensino Médio. Belo Horizonte: Dimensão, 2009. 120 p.
OLIVEIRA, W. C. O Conceito de Fenomenologia a partir do “Prefácio” à Fenomenologia da Percepção de M. Merleau-Ponty. In: Pinto, D. C. M.; Marques, R. V. (Orgs).  A Fenomenologia da Experiência: Horizontes Filosóficos da Obra de Merleau-Ponty. Goiânia: Editora da UFG, 2006. p. 139-169.
OLIVEIRA, W. C. Ciência, Arte e Educação: o que um cientista pode aprender com um artista? Algumas reflexões a partir de Merleau-Ponty. Caderno de Estudantes - PET – UFSJ, 2009.
UNESCO. A ciência para o século XXI: uma nova visão e uma base de ação. Brasília: Unesco, Abipti, 2003. 72p. 

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