quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Heloísa Helena Arneiro Lourenço Barbosa

Bakhtin e o caráter interativo da linguagem
Heloísa Helena Arneiro Lourenço Barbosa
Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade de Taubaté
Escola de Especialistas de Aeronáutica – Guaratinguetá – SP

A essência da linguagem é a fronteira entre duas consciências.
(Mikhail Bakhtin)
O tema central do I Encontro de Estudos BakhtinianosA Responsividade Bakhtiniana – apresenta-se como um desafio para todos que, em menor ou maior grau, já travaram um encontro com o pensamento de Bakhtin. O desafio se constitui, principalmente, pela importância que esse princípio tem na teoria dialógica da linguagem do filósofo russo.
É o pressuposto bakhtiniano de que “toda compreensão da fala viva (...) é de natureza ativamente responsiva” (Bakthin, 2003, p. 271), que valida o caráter dialógico do discurso. Segundo essa perspectiva enunciativo-discursiva, o ouvinte não tem um papel passivo na comunicação discursiva. O falante aguarda a resposta dele, espera uma ativa compreensão responsiva. (BAKHTIN, 2003).
Ainda sobre o princípio bakhtiniano de responsividade, Machado (2006), ao discorrer sobre a concepção dialógica da linguagem de Bakhtin, destaca o pressuposto de que a relação entre falante e ouvinte é dinâmica e dialética. Atribui-se um papel ativo tanto para o falante quanto para o ouvinte, e os papéis de falante e ouvinte são intercambiáveis. Há uma mobilidade discursiva entre os dois papéis. Falante e ouvinte, portanto, são concebidos em seu aspecto ativo. Sobral (2006) explica esse caráter relacional de construção do sujeito (falante/ouvinte), no discurso, pela teoria de Bakhtin: “a proposta é a de conceber um sujeito que, sendo um eu para-si (...) é também um eu-para-o-outro, condição de inserção dessa identidade no plano relacional responsável/responsivo, que lhe dá sentido.” (Sobral, 2006, p.22). É por essa orientação que se constrói aquele que será um dos pilares da teoria bakhtiniana: o caráter interativo da linguagem.
Responsividade e interação verbal são conceitos que se enredam e enredam as tramas que constituem os diferentes textos de Mikhail Bakhtin.
Ao se pensar sobre esses pressupostos bakhtinianos, podemos instaurar, nessa reflexão, um diálogo entre tais conceitos e um dos eixos desse evento: A Educação como Resposta Responsável.

1. A interação verbal e o princípio da responsavidade na teoria bakhtiniana
Diferentemente de Saussure e dos estruturalistas, que privilegiam a langue, isto é, o sistema abstrato da língua, com suas características formais passíveis de serem repetidas, Bakhtin concebe a linguagem não só como um sistema abstrato, mas também como uma criação coletiva, integrante de um diálogo cumulativo entre o eu e o outro. A concepção de linguagem dá-se sob uma perspectiva dialógica que concebe o eu e o outro como inseparavelmente ligados pela linguagem.  Tudo que é dito, tudo que é expresso por um falante não pertence só a ele. Em todo discurso, são percebidas vozes às vezes distantes, imperceptíveis; às vezes próximas. (BAKHTIN, 2003). Daí a investigação do enunciado como diálogo que tem sua compreensão instaurada a partir de duas consciências, dois sujeitos discursivos. Não se trata aqui trata da noção mecanicista de emissor e receptor, mas de um diálogo instaurado na linguagem como princípio constitutivo.
A reflexão de Bakhtin/Volochínov (1929/2006) acerca da interação verbal aponta, na filosofia da linguagem e na linguística geral, duas orientações para o estudo da linguagem: a primeira é chamada de subjetivismo idealista, e a segunda, de objetivismo abstrato. Para Bakhtin/Volochínov, a compreensão ampla da linguagem não está em nenhuma dessas duas orientações; ela está além. Para superação dessa dicotomia, a teoria bakhtiniana propõe a interação verbal como uma síntese dialética da concepção de linguagem.
A verdadeira substância da língua é constituída, para Bakhtin/Volochínov, “pelo fenômeno social da interação verbal, realizada por meio da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1029/2006, p.127).
A crítica bakhtiniana considera que o subjetivismo idealista reduz a linguagem à enunciação monológica, ou seja, a um ato individual. De acordo com esse pensamento, a expressão se define como exteriorização do interior do indivíduo para outrem. A expressão teria, dessa forma, duas facetas: procede de alguém (o interior) e se dirige para alguém (objetivação exterior). A teoria bakhtiniana não nega essas duas facetas, pelo contrário, confirma-as. No entanto, a rejeição de Bakhtin/Volochínov é em relação à concepção da expressão no subjetivismo idealista, para o qual o que realmente importa é o interior; o exterior funcionaria apenas como um meio de expressão do espírito do indivíduo, ou seja: “o exterior constitui apenas o material passivo do interior” (p. 116). É evidente a posição contrária de Bakthin/Volochínov a essa primeira orientação do pensamento filosófico-linguístico. Segundo o pensamento bakhtiniano, o centro organizador da linguagem não se situa no interior, mas no exterior. Não se pode falar, então, de uma primazia do interior (do locutor) em relação ao exterior (ao interlocutor), como defende o subjetivismo idealista. Uma enunciação é determinada pelas condições da situação social imediata.
Pelas palavras de Bakthin/Volochínov, a enunciação é “o produto de interação de dois indivíduos socialmente organizados”, e toda palavra é dirigida a um interlocutor, mesmo que pressuposto. Não há um interlocutor abstrato. Há sempre alguém concreto ou presumido a quem nos dirigimos. É esse interlocutor que regulará a enunciação. Ela dar-se-á de uma determinada forma se o interlocutor pertencer a nossa classe social, por exemplo. Caso contrário, a enunciação ocorrerá determinada pelo horizonte social desse interlocutor que não faz parte de nosso grupo.
Para Bakthin/Volochínov (1929/2006), a orientação da palavra em função de um locutor é muito importante. Locutor e interlocutor, dentro do arcabouço bakhtiniano, são igualmente importantes. Segundo esse pressuposto, “o mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social próprio bem estabelecido” (p.117). O que irá determinar a estrutura de uma enunciação é a situação social mais imediata e o meio social mais amplo. A enunciação tem uma natureza social e acontece sempre numa interação. Enfim todo discurso deve promover um diálogo.
Para a teoria bakhtiniana, o diálogo é entendido num sentido mais amplo do que aquele sentido restrito de uma comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face. Para demonstrar esse conceito de diálogo, Bakhtin/Volochínov exemplificam com o discurso escrito, afirmando que ele pertence a uma discussão ideológica maior e seu papel muitas vezes é o de refutar, confirmar, antecipar ideias, enfim o discurso escrito estabelece um diálogo. Daí vem a necessidade do estudo das relações entre as interações concretas e a situação extralinguística.
Uma ordem metodológica faz-se, então, necessária para o estudo da língua. Devem ser analisadas: as formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza; as formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos; e, após essas análises, examinar as formas da língua na sua interpretação linguística habitual.
Bakhtin/Volochínov criticam a linguística geral por ela não apresentar uma abordagem da enunciação em si e se restringir à análise dos constituintes imediatos da língua.
Comparando enunciação “a uma ilha emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior”, Bakhtin/Volochínov teorizam que a situação social e o auditório determinam a enunciação e como o discurso interior deve se expressar, inserindo-se num determinado contexto e nele se ampliando por conta da resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação.

1.1. A interação verbal, a responsavidade e o contexto escolar
Relacionando o princípio da responsividade às relações que se dão no cotidiano escolar, o que se pode perceber que ainda não há, integralmente, uma prática docente que provoque, durante todo o processo ensino-aprendizagem, atitudes responsivas em seu aluno. Essa resposta ativa do discente deve ser sempre estimulada, pois ela permite que ele seja capaz de confrontar diferentes opiniões e pontos de vista que lhe são apresentados.  Assim, principalmente na escola, não se pode falar de uma primazia do interior (do locutor) em relação ao exterior (ao interlocutor). Não se pode esquecer de que a escola também é um “palco de encontro com opiniões de interlocutores imediatos” (BAKHTIN, 2003, p.300). Assim, um ponto de vista, uma opinião devem ser sempre verbalizados dentro do contexto ensino-aprendizagem.
Cabe ao professor apontar caminhos para que seu aluno consiga ter um olhar crítico, um olhar que exceda o apenas dito explicitamente. Rajagopalan afirma que é necessário ao educador “implantar uma postura crítica, de constante questionamento das certezas que, com o passar do tempo, adquirem a aura e a ‘intocabilidade’ dos dogmas” (RAJAGOPALAN, 2003, p.111).
É necessário, pela perspectiva bakhtiniana, que, na relação professor-aluno, não se perca de vista o pensamento de que “a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929/2006, p.117). Essa visão dialógica e ideológica da palavra ponte sinaliza uma preocupação com o outro, sendo preciso que se busquem sempre formas de sintonia com seus sentidos. Se, nos dizeres de Bakhtin/Volochínov, a palavra se apóia numa extremidade sobre o locutor e na outra sobre o interlocutor, a busca de estabelecer contato com os sentidos do outro se revela imprescindível para que se desenvolva qualquer tipo de discurso. Nesse sentido, professor e aluno devem ser extremidades bem conectadas.
Servindo-se ainda de uma metáfora de Bakhtin/Volochínov, podemos afirmar que entre professor e aluno “a palavra é o território comum do locutor e do interlocutor” e, por isso, deve haver sempre uma mobilidade discursiva entre os dois papéis.
A uma prática docente crítica, é necessário o entendimento de que o aluno ocupa o papel de co-enunciador, pois ele pode concordar com o discurso que lhe é apresentado ou discordar dele. Enfim, é preciso que professor e aluno percebam que ambos ocupam uma posição responsiva em relação ao enunciado. Com essa atitude, é possível a formação de cidadãos capazes, inclusive, de modificar seu entorno social.

2. Encaminhando o diálogo - considerações (in) acabadas
A reflexão aqui iniciada sobre o caráter interativo da linguagem e o conceito de responsividade, inclusive no contexto escolar, certamente é passível de discussão, uma vez que, evidentemente, há muitos elementos a serem analisados sobre esses conceitos da teoria do grande pensador russo, M. Bakhtin.
No entanto, o que aqui se pretendeu, é tecer uma relação entre algumas das principais idéias que permeiam a obra do grande filósofo russo. Entre essas idéias, a principal é a de que a interação entre interlocutores é o princípio fundador da linguagem. O teórico russo estabelece que toda palavra é dialógica por natureza e que a língua deve ser vista como um fenômeno social da interação verbal.
Por fim, não houve também neste breve texto a pretensão de se esgotar as possibilidades de novos olhares para as questões levantadas, afinal, segundo Bakhtin, para cada enunciado há uma multiplicidade de respostas uma vez que os contextos em que esses enunciados são lidos e pronunciados são novos e irrepetíveis.

REFERÊNCIAS
 BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. (Trad. do francês- Paulo Bezerra). 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. (VOLOCHÍNOV) Marxismo e filosofia da linguagem. ( Prefácio de Roman Jakobson, Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira)12ª ed., São Paulo: Hucitec, 2006. (Original russo – 1929 )
MACHADO, I. Os Gêneros e o corpo do acabamento estético. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2.ed. rev. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005, p.131-148.
______. Gêneros Discursivos. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 3.ed. São Paulo: Contexto, 2006, p.151-166.
RAJAGOPALAN, K. Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
SOBRAL, A. Ato, atividade e evento. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 3.ed. São Paulo: Contexto, 2006, p.11-36.

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