quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Marília Carla de Mello Gaia, Maria Emília Caixeta de Castro Lima, Andréa Horta Machado

A responsabilidade da escola do campo na formação do sujeito dialógico
MARÍLIA CARLA DE MELLO GAIA (marília.gaia@gmail.com)
MARIA EMÍLIA CAIXETA DE CASTRO LIMA
ANDRÉA HORTA MACHADO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

A natureza dialógica da linguagem é um conceito central no conjunto de escritos de Bakhtin (1895-1975) e atualmente tem-se discutido muito suas ideias com foco no contexto escolar. O estabelecimento de discursos dialógicos no âmbito escolar é visto como uma das estratégias possíveis para a formação de sujeitos (educandos/as) mais ativos e responsáveis com a sua formação e cidadania.
À luz de Bakhtin, em uma visão de mundo pluralista polissêmica e polifônica (FREITAS, 1999), considerando que todos/as tem voz, o/a educando/a é então um sujeito que não pode permanecer sem voz no processo de ensino-aprendizagem.
Neste sentido, este texto tenta levantar alguns apontamentos iniciais da relação entre as contribuições de Bakhtin sobre a natureza dialógica da linguagem e a Educação do Campo, na perspectiva da formação de sujeitos dialógicos.
A Educação do Campo não é abordada aqui apenas como direito à educação no meio rural (meios de acesso da população do campo à escola – seja no próprio ambiente do campo, seja na cidade mais próxima), mas como concepção ideológica e metodológica de uma educação comprometida com os sujeitos (e suas vozes) do campo, que incorpore as particularidades relacionadas à formação de professores/as, ao calendário, aos objetivos educacionais e sociais, às práticas agrícolas, etc.
Conforme Caldart (2009), a Educação do Campo, historicamente ligada à atuação dos movimentos sociais e sindicais do campo nas políticas públicas educacionais brasileiras, tem se centrado na escola, na garantia de acesso dos/as trabalhadores/as rurais ao conhecimento produzido na sociedade. Mas não se limita a isso, pelo contrário, a Educação do Campo
ao mesmo tempo problematiza, faz a crítica ao modo de conhecimento dominante e à hierarquização epistemológica própria desta sociedade que deslegitima os protagonistas originários da Educação do campo como produtores de conhecimento e que resiste a construir referências próprias para a solução de problemas de uma outra lógica de produção e de trabalho que
não seja a do trabalho produtivo para o capital (CALDART, 2009:4).
           
Nesta concepção, o campo é ressignificado e “concebido como espaço social e cultural com identidade própria e não espaço do latifúndio, da produção capitalista, da grilagem de terras, do êxodo rural” (BRANDÃO & MENEZES-NETO, 2009:180).
            Sobre isto, Brandão e Menezes-Neto (2009:180) afirmam que “define-se que a luta pela terra, a relação de trabalho e vida, os hábitos alimentares, as práticas religiosas, sociais e educativas do campo merecem apreciação e reconhecimento específicos”, então a Educação do Campo busca “refletir os interesses e necessidades das populações que ali habitam e não reproduzir apenas o modo de vida e valores do urbano e, principalmente, do urbano capitalista
Nesta lógica, o reconhecimento das diversas vozes que circulam nos saberes (e na escola) do campo precisa ser considerado para a construção do pensamento participativo e a formação de sujeitos dialógicos construtores da Educação do Campo. O contexto do Campo (e do Campo dentro da sociedade capitalista) é que serve de pano de fundo para a formação destes sujeitos.
A Escola do Campo busca valorizar os seus sujeitos enquanto produtores de conhecimento, e é no sujeito que se fundamenta o dialogismo de Bakhtin, onde estes são considerados em suas relações com outros sujeitos que o constituem e são constituídos por ele (SOBRAL, 2009).
A produção (do conhecimento, da vida) “ocorre no âmbito de interações dialógicas entre sujeitos inseridos em contextos sociais e históricos” (SOBRAL, 2009:49). O ato da fala e seu produto (enunciação) se produz em um contexto que é sempre social, estabelece uma relação entre as pessoas, e, portanto, está integrado à vida humana (FREITAS, 1999).
Neste sentido,
A experiência discursiva individual de cada pessoa se forma e se desenvolve em uma constante interação com os enunciados individuais alheios. Assim, um enunciado está cheio de matizes dialógicos e nosso próprio pensamento é constituído nessa interação dialógica com pensamentos alheios (FREITAS, 1999:137)

Conforme Freitas (1999:130), “as interações verbais, segundo Bakhtin, são consideradas como um produto social e todos os seus elementos resultam em uma consciência que não é uma consciência individual, mas uma consciência de classe”.
A discussão do discurso dialógico na escola se aproxima muito das idéias de Paulo Freire (1921-1997) sobre a possibilidade de romper com uma “concepção bancária de educação”, ou seja, a educação como um ato de depositar e arquivar informações, no qual os educandos são os depositários e o professor quem deposita (FREIRE, 1973). Freire destaca a importância de uma pedagogia do método dialógico como possibilidade para produzir rupturas na cultura do silêncio[1], mas lembra que “há também um silêncio que pode e deve ser acolhido, pois ele faz parte da comunicação dialógica, onde é preciso saber escutar para saber refletir, analisar, argumentar, avaliar, decidir” (OSOWSKI, 2010:102).
São muitas as vozes que falam e dialogam na escola do campo comprometida – as vozes do conhecimento científico, as vozes do conhecimento empírico das famílias do campo, as vozes da luta pela terra, as vozes da sociedade que se posiciona a favor e contra a Educação do Campo. Desta forma, ouvir e compreender todas estas vozes, incluindo aqui aquelas que os/as educandos/as e educadores/as trazem para a escola, é um desafio, sobretudo por não estarmos acostumados a somar as múltiplas vozes no processo educacional, muito menos a construir novas vozes. A Escola do Campo é então também responsável por essa circulação e construção de vozes e saberes distintos.
Desta forma, a presença do dialogismo nos processos de ensino-aprendizagem na Educação do Campo pode contribuir nas explanações, associações e intervenções com o contexto do/a educando/a do campo e na formação de sujeitos dialógicos, participativos e construtores de uma nova sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANDÃO, N. & MENEZES-NETO, A.J. 2009. O trabalho como princípio educativo na educação do campo e no MST. In: Trabalho, política e formação humana: interlocuções com Marx e Gramsci/ Antônio J. de Menezes Neto et al.(orgs). São Paulo: Xamã, 2009. 207p.
CALDART, R. S. 2009. Educação do Campo: Notas para uma Análise de Percurso. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.7, n. 1, mar/jun. 2009, p. 35-64
FREIRE, P 1973. Pedagogia del oprimido. Trad. J Mellado. 10a ed., Siglo XXI Argentina Editores S. A., 271 p.
FREITAS, M.T.A. 1999. Vygotsky e Bakhtin – Psicologia e Educação: um intertexto. 4ª ed. Juiz de Fora: Editora Ática: Editora da UFJF. 168p.
OSOWSKI, C. I. 2010. Cultura do Silêncio. In: Dicionário Paulo Freire / D. R. Streck; E. Redin & J. J. Zitkoski (orgs.) 2ª ed., ver. ampl. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 438p.
SOBRAL, A. 2009. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. 1ª ed. Campinas: Mercado de Letras. 175p.


[1]  Para Freire a cultura do silêncio “é produzida pela impossibilidade de homens e mulheres dizerem sua palavra, de manifestarem-se como sujeitos de práxis e cidadãos políticos, sem condições de interferirem na realidade que os cerca, geralmente opressora e/ou desvinculada da sua própria cultura”, sendo esta “o resultado de ações político-culturais [e por que não escolares] das classes dominantes, produzindo sujeitos que são silenciados, impedidos de expressar seus pensamentos e afirmar suas verdades” (OSOWSKI, 2010:101)

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