quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Hilda Aparecida Linhares da Silva Micarello

DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: A QUEM RESPONDE?
Hilda Aparecida Linhares da Silva Micarello[1]

Esse texto é um convite à reflexão sobre a educação como resposta responsável a partir da experiência da docência junto à criança pequena.  Nosso ponto de partida é uma pesquisa realizada junto a professores da educação infantil com vistas à construção de tese de doutoramento, defendida em fevereiro de 2006, na PUC-Rio, sob orientação da professora Sônia Kramer.
Nossa aproximação à experiência dos professores participantes da pesquisa se deu a partir dos enunciados desses docentes. Adotamos a perspectiva bakhtiniana segundo a qual o conhecimento do sujeito só é possível tomando-se como referência os discursos que ele produz. Para Bakhtin (2003) “o enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas.(p.300)
A partir dos enunciados proferidos pelos professores da educação infantil em momentos nos quais discutiam sua prática profissional entre pares, buscamos reconstituir os elos dessa cadeia da comunicação, com o intuito de rastrear os determinantes dos modos como esses docentes respondem, em sua atividade profissional, aos discursos a partir dos quais tecem seus saberes profissionais e sua própria subjetividade. Para Teixeira (2006) a noção de sujeito, em Bakhtin, “emerge e se sustenta na enunciação, entendida como um processo em que o eu se institui através do outro e como outro do outro, sendo pela inter-relação entre dialogismo e alteridade que se pode tentar cercar a questão da subjetividade em Bakhtin”.(p229) Nessa perspectiva, o sujeito professor emerge, no processo de pesquisa ao qual se faz referência neste texto, a partir dos enunciados proferidos nas interações entre pares e com o pesquisador, sendo tais enunciados a via de acesso aos saberes, valores, crenças e conflitos que estruturam sua atividade de docência.
A docência na educação infantil se reverte de peculiaridades, que dizem respeito tanto aos modos como a docência é concebida e legitimada pelos discursos  – o discurso legal, o discurso acadêmico, o discurso dos pares - quanto às especificidades da criança pequena, suas necessidades, formas próprias de atribuir sentido ao mundo e aprender e sua situação de dependência em relação ao adulto. Tais especificidades muitas vezes estabelecem uma contraposição entre o que os professores percebem como traços definidores da atividade de docência e aquilo que lhes é demandado pela interação com a criança pequena: enquanto a dimensão profissional da atividade de docência está identificada, em nossa sociedade, com o domínio de saberes disciplinares a serem transmitidos aos alunos, os processos de desenvolvimento e aprendizagem da criança pequena exigem a vivência de experiências que se caracterizam pela gratuidade das ações, cujo foco não são os saberes, mas os próprios sujeitos do processo de aprendizagem, nesse caso, as crianças; em contraposição ao tempo reticulado dos currículos, a vivência do tempo pela criança está pautada em suas necessidades e interesses, o que exige dos docentes uma atenção aos ritmos individuais e a superação da expectativa de resultados imediatos; enquanto nossa tradição escolar tem formado os professores para uma supervalorização do intelecto em detrimento do corpo do sujeito “aprendente”, a criança pequena demanda ao professor um acolhimento corporal às suas necessidades de cuidado e afeto. Tais contraposições, dentre outras, revelaram-se, na experiência dos professores pesquisados, fontes de negação dos saberes profissionais próprios à docência junto à criança pequena e de conflitos entre ser responsivo às demandas advindas das necessidades das crianças ou atender àquelas que identificam como inerentes à atividade profissional do professor. Encontramo-nos, assim, diante de um dos paradoxos da docência junto à criança pequena, que consiste na negação, pelos docentes, de uma dimensão constitutiva de sua própria identidade profissional. Buscando lançar luzes sobre tal paradoxo apresentamos, a seguir, alguns enunciados dos professores, proferidos na situação de pesquisa, com o intuito de encontrar, nesses enunciados, suas respostas às demandas que se instituem a partir de seu exercício profissional.
Enunciado 1: professora Sueli[2], docente numa turma de crianças de 4 anos.
Não sou a favor da palmatória, não sou a favor de ajoelhar no milho. Mas acho que você tem que ter uma organização para sua aula render, para que você consiga passar a coisa. Você não está ali só tomando conta, você não é babá. Você é um profissional. Eu, pelo menos, me vejo como profissional. Então eu sou conservadora nesta parte. (Entrevista com Sueli – 10/08/2005) (MICARELLO, 2006, p. 155)

Nesse enunciado, proferido num diálogo entre pesquisadora e sujeito em situação de entrevista, emerge a contrapalavra da professora a uma série de outros discursos que moldam um perfil desejável a um profissional: aquele que sabe se organizar, que faz a aula “render”, que é capaz de transmitir aos alunos os conteúdos de ensino. Entretanto o ajuste desse perfil, que a professora concebe como necessário a um profissional e que o difere de um mero cuidador, muitas vezes se contrapõe às necessidades manifestas pela criança pequena e à satisfação do profissional em atender a essas necessidades. Hargreaves (1998) destaca que o empenho no cuidado com o outro é uma característica marcante entre os professores de crianças pequenas, constituindo-se numa fonte de satisfação emocional. O autor destaca: "A vida e o trabalho de muitos desses professores são sustentados por princípios de calor humano, de amor e de auto-estima, muito mais do que por princípios de aprendizagem cognitiva e de eficácia na instrução” ( p. 164).  O reconhecimento dessa dimensão constitutiva do trabalho junto à criança pequena parece ser uma fonte de conflitos para a professora, sobre o qual ela reflete no enunciado que apresentamos a seguir, proferido numa reunião com os demais professores participantes da pesquisa.
Enunciado 2: professora Sueli.
Eu acho que a educação infantil é fantasia (...) Eu penso que o auditório na educação infantil, a dramatização, é fundamental. Eu me sinto muito em falta nessa parte, porque a gente vai simplificando, vai entrando num contexto que tem que alfabetizar, vai massacrando mais a infância. (Reunião com o grupo de professores, 18/11/2004) (MICARELLO, 2006, p.176)

O diálogo entre esse segundo enunciado, proferido pela mesma professora num momento de reflexão entre pares, e o enunciado 1, permite perceber os conflitos envolvidos na tentativa da docente de dar uma resposta responsável aos seus alunos frente ao que ela percebe ser uma necessidade deles, mas que se contrapõe à necessidade de alfabetizar, que ela reconhece ser uma expectativa com relação aos resultados do trabalho do professor. Outra professora participante da pesquisa também vivencia tal expectativa como fonte de conflitos com relação à sua identidade profissional.
Enunciado 3: professora Angélica, docente de uma turma de crianças de 4 anos.

Hoje há uma cobrança dos pais com relação à alfabetização, então você trabalha. Você trabalha prontidão para a alfabetização e eles são mais rápidos. Já no 1º período é tudo muito lento, muito devagarzinho. E você começa a trabalhar na sala de aula e fala assim: “Gente, eu estou trabalhando? Será que estou trabalhando? Não, eu acho que eu estou brincando!” Quando eu penso, eu questiono isso. Está na hora de trabalhar o nome da criança, começar a trabalhar mesmo essa parte da alfabetização propriamente dita? Não, não é hora! Então vamos trabalhar na massinha, vamos fazer modelagem, vamos fazer outra coisa. Então você fica assim toda hora (Entrevista com Angélica, 19/05/2004) (MICARELLO, 2006, p.180)

            No enunciado 3 a professora explicita seu dilema entre o que ela define como trabalhar, e que se identifica com uma resposta às expectativas dos pais com relação a sua atuação profissional, e brincar, que seria responder ao que demandam as crianças em relação a essa mesma atuação. Indica, ainda, que sua docência se constrói oscilando entre essas duas possibilidades de resposta – “Então fica assim toda hora”-, muitas vezes irreconciliáveis.
            Retomamos, aqui, a perspectiva dialógica de Bakhtin, na tentativa de compreender como se equacionam os conflitos vivenciados pelos professores nos processos de constituição e legitimação dos saberes docentes próprios aos profissionais da educação infantil.  Em Bakhtin encontramos o sujeito concebido nas dimensões de um eu para-si e também de um eu para-o-outro. No plano do eu para-si se constitui a identidade do sujeito, sendo o plano do eu para-o-outro responsável pela inserção da identidade desse sujeito numa dimensão relacional, que lhe dá sentido (Sobral, 2005).

Essa inserção no plano relacional implica uma posição de responsividade do sujeito com relação a suas ações, ou numa "responsibilidade" do sujeito, como propõe Sobral, traduzindo o termo russo otvetstvennost, união de responsabilidade (responder pelos próprios atos) e responsividade (responder a alguém ou alguma coisa) (Sobral, 2005). Responsibilidade definiria, portanto, o modo como o sujeito assume, em seus atos, um compromisso ético com o seu agir. (...) Ao agir o sujeito assume compromissos éticos pelos quais ele responde a si mesmo e aos outros. (MICARELLO, 2006, p160)

            No caso dos professores participantes da pesquisa, ser responsivo às crianças, responder as suas necessidades, desejos, implicava em conflitos, vez que essa resposta muitas vezes requeria que se negassem a assumir outras responsabilidades que percebiam como sendo a eles imputadas. Encontramos-nos, então, diante de um sujeito professor dividido com relação a quem responder com sua prática pedagógica. Enquanto no plano do eu para si a identidade profissional parece estar vinculada a um profissionalismo que se constitui em referência ao ensino de conteúdos disciplinares, no plano do eu para o outro – criança, tal identidade requer um profissionalismo alicerçado no plano das relações, do acolhimento àquilo que demandam os pequenos. É na construção de respostas possíveis a esse dilema que se constrói a prática pedagógica dos professores da educação infantil, seus saberes e sua identidade profissional. É a partir dessas respostas possíveis que o sujeito professor assume compromissos éticos com as crianças, suas famílias e seus pares, inserindo-se no plano relacional, como profisisonal e como pessoa.
                
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M.  Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
HARGREAVES, A. Os professores em tempos de mudança: trabalho e a cultura dos professores na idade pós-moderna. Portugal: Editora McGraw-Hill, 1998.
MICARELLO, H.A.L.S. Professores da Pré-escola: trabalho, saberes e processos de construção de identidade. Rio de Janeiro : PUC-Rio, Departamento de Educação, 2006. Tese de doutorado.
SOBRAL, A. U. Ato/atividade e evento. In: BRAIT, B. Bakhtin: Conceitos-Chave. São Paulo, Contexto, 2005a, p. 11-36.
TEIXEIRA, M. O outro no um: reflexões em torno da concepção bakhtiniana de sujeito. In: FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. (orgs.) Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2006, p. 227-234.


[1] Doutora em Educação pela PUC-Rio; professora adjunta da FEACED/UFJF.
[2] Foram utilizados pseudônimos para identificar os professores com o objetivo de resguardar suas identidades.

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