quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Carlos Augusto Colussi

Quem mexeu no meu texto? Ensinar e aprender com a filosofia no ensino fundamental como troca de saberes entre professor e aluno: experiências em sala de aula
Carlos Augusto Colussi
colussi.carlosaugusto@gmail.com
UFSCar (Universidade Federal de São Carlos)
 
Foi algo que não posso dizer que tenho explicação. Mas vou tentar explicar. À medida que envelhecemos, vamos acumulando aquilo que chamo de segmentos lingüísticos. Hoje não falo como quando tinha 8 anos nem sequer quando estava com 30. Há uma espécie de camadas que vão se acumulando, do mais antigo ao mais recente. Tenho a impressão de que, durante a doença que me atacou e da qual tive a rara sorte de escapar com vida (ao menos um médico que me atendeu disse isso), camadas antigas voltaram à superfície. Ou seja, palavras que eu não mais usava ali estavam e figuram na história. Não apenas escrevi o livro, mas o livro também me escreveu a mim. Não posso dizer que se trata de uma verdade científica, mas algo realmente diferente se passou pela minha cabeça. (José Saramago[1])

Em primeiro lugar é necessário que se faça uma explicação: o texto será escrito em primeiras pessoas (singular e plural) por se tratar de uma experiência do autor e seus alunos. Permita-me o leitor raciocinar com um exemplo, extraído do convívio com estudantes do município de Porto Ferreira. O período em questão, que trata da troca de saberes entre professor e aluno na disciplina Filosofia aplicada no ensino fundamental de uma escola particular, refere-se ao segundo semestre de 2008. A convite da inspetora pedagógica da escola particular de uma franquia das mais conhecidas no Brasil, fui alçado a professor da disciplina de Filosofia para estudantes do ensino fundamental (PEB-II), no qual estão incluídas crianças e adolescentes entre 11 e 14 anos inseridas no 6º Ano (5ª Série), 7º Ano (6ª Série), 8º Ano (7ª Série) e 9º Ano (8ª Série). A substituição do professor de Filosofia teria sido promovida por dois motivos básicos que se inter-relacionam: a escolha do professor para o primeiro semestre foi exclusivamente em detrimento de sua formação, bastante completa. O resultado teria decepcionado a direção da escola. Nesse caso, a “tábua de salvação” transformou-se em um problema. O modelo de professor “sábio”, do sujeito que controla o processo de aprendizagem, mostrou-se ineficiente para uma instituição de perfil liberal. Por outro lado, o que se pretendia com a Filosofia por parte da escola era criar dentro da disciplina algo peripatético no molde idealizado por Aristóteles, que pensou em um “aprender andando”. Minha experiência no magistério era praticamente nula. Todos meus esforços estavam condicionados a lecionar quatro disciplinas nos cursos de Administração de Empresas e Sistemas de Informação em uma faculdade particular. Portanto, havia ali um desafio.
A Filosofia, assim como a Sociologia, está hoje inserida na grade curricular das escolas de ensino fundamental e médio no Brasil mediante a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação de 1996. Porém, a idéia da reintrodução da Filosofia no Ensino Médio, no início da década de 80, trazia em seu bojo a crença em uma ação revolucionária, capaz de romper as amarras e marcas da ditadura que afastaram o aluno da crítica, do esforço de construção teórica autônoma, da prática do diálogo e da argumentação. O projeto de introduzir as crianças no diálogo sobre as temáticas filosóficas é uma possibilidade que encanta poucos e que causa curiosidade em muitos educadores. O resultado é a ausência quase plena de material didático oferecido pelo ensino público e pelas instituições particulares. Para suprir as dificuldades da falta de material didático, uma premissa foi tomada como ponto de partida: o professor deveria criar um repertório de situações, para que o aluno pudesse se exercitar nas reflexões filosóficas, exercitar modalidades de raciocínio sem necessariamente ter uma compreensão conceitual. Mais à frente o aluno atingiria um repertório de situações em que pudesse exercitar o raciocínio de indução, comparação, dedução, de situações que envolveriam procedimentos éticos, estéticos, sem necessariamente tornar-se o objeto do aprendizado, em si o próprio sujeito com espírito filosófico, o de pensar em comum.
O ato de pensar em comum merece um momento à parte. Em seu livro “Filosofia em comum: para ler-junto”, Márcia Tiburi aponta as premissas da sala de aula. Entre elas está o ideal da filosofia como encontro de amigos por amor ao saber. O professor tem essa noção de que a filosofia é um trabalho de forte teor literário. Mesmo assim, também considera que a filosofia é o pensamento que se escreve, além de pensamento que se forja entre pensantes. Então, todos os elementos para uma aula da disciplina de Filosofia são postos à prova: o professor, o aluno, o conteúdo, e o pensamento. Mais ainda: o professor considerou que cada aluno poderia escrever conforme seu estilo porque, por mais que o aluno tente, não escaparia de seu modo de ser e de dizer que se expressa na linguagem que usa. TIBURI é categórica em afirmar que pensar é possível, quando nos diz:
“Ou seja, cada um responde ao instante histórico, especial e temporal que ocupa com seus movimentos, gestos, ações. Cada um só pode oferecer sua interpretação a partir dos próprios limites históricos e situacionais que experimenta”. (2008: 28)
O professor, ao se deparar com um conteúdo que obviamente ultrapassaria o nível de entendimento em cada faixa etária, abriu mão da parafernália didático-pedagógica e das mais recentes receitas de ensinar, pregada pelos acadêmicos mais estruturalistas, e partiu para a inversão da hierarquia. Como afirmava Kant, não se pode ensinar filosofia, só se pode ensinar a filosofar. Deu-se então o primeiro contato com os alunos com resultados que merecem ser registrados.
E como propôs João Wanderley Geraldi, em “A aula como acontecimento”:          
“(...) o professor do futuro, a nova identidade a ser construída, não é a do sujeito que tem as respostas que a herança cultural já deu para certos problemas, mas a do sujeito capaz de considerar seu vivido, de olhar para o aluno como um sujeito que também já tem um vivido, para transformado o vivido em perguntas. O ensino do futuro não estará lastreado nas respostas, mas nas perguntas. Aprender a formulá-las é essencial. Na lição de Saramago, “tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas”. (2004:19)
Com a ajuda do pensamento de Saramago, citado em epígrafe na abertura deste artigo, podemos entender em parte como isso acontece no processo de produção de texto em sala de aula. A partir de um conteúdo introdutório, ou seja, um tema a ser discutido, é feita a leitura em comum. No pronunciamento inicial do material confeccionado e distribuído ao aluno, o professor propõe a história pessoal dos filósofos, considerando desde os pré-socráticos até os pensadores contemporâneos, levantando suas principais contribuições para a humanidade no ato do pensar. Esse caminho é importante para que a criança consiga relacionar sua própria história com a biografia do filósofo a ser estudado. Essa proximidade de seres pensantes, com cronotopias distintas, estreitam as barreiras de heranças culturais e os dois lados se inter-relacionam, valorizando o contato “EU-OUTRO”, superando qualquer método pragmático. Aluno e professor são arrastados por forças centrípetas e centrífugas, para dentro e para fora de um universo de multiplicidades, não sistematizado, cujo conhecimento é fruto das práticas sociais desenvolvidas em mais de 4 mil anos. Vale o que cada um viveu, a práxis[2] propriamente dita. Cabe a cada um, porém, continuar a encontrar respostas às novas indagações que o tempo de cada um suscita.
Segundo Saramago, à medida que envelhecemos vamos acumulando aquilo que chamo de segmentos lingüísticos. Há uma espécie de camadas que vão se acumulando, do mais antigo ao mais recente como as peles da cebola[3]. Em se tratando da disciplina Filosofia em que as práticas sociais constroem o saber, isso é automático no momento da produção do texto. Ou seja, as palavras que o aluno não mais usava ali estavam e figuram como resposta a uma pergunta sobre o tema escolhido. O autor-sujeito não apenas escreve a resposta, mas a resposta também o escreve. Não se pode dizer que se trata de uma verdade científica, neste momento, mas algo realmente diferente se passa pela cabeça da criança quando uma pergunta filosófica lhe é proposta.
 Nessa experiência como professor de filosofia no ensino fundamental, há um significado que as crianças atribuem às questões filosóficas. Mais do que isso, existe uma nova pergunta que surge a partir de uma resposta dada, e assim por diante. Para GERALDI, isso fica bastante claro quando o aluno aprende a percorrer caminhos inexistentes, porque eles se fazem no percurso, sendo capaz de compreender as respostas e os caminhos antes percorridos pelos pensadores da filosofia clássica:
“é com as mãos cheias de perguntas que melhor nos orientamos no manuseio da herança cultural. A ela vamos também em busca de respostas que já foram dadas a perguntas que formulamos: não se trata de reinventar a roda! O que importa aqui é que as perguntas dirigem a seleção, construção ou reconhecimento da inexistência de respostas. Creio que o ensino tem dado respostas a alunos que não conhecem as perguntas. Temos aprendido respostas sem sabermos as perguntas que a elas conduziram”. (2004: 19)
Trataremos nesse artigo de dois momentos distintos. Ambos relacionam as categorias de conhecimento levantadas por Aristóteles, entre elas a biologia, que foi proposta aos alunos durante o segundo semestre de 2008. Em um primeiro momento o professor propôs uma introdução teórica sobre a biologia como “ciência da vida”. No texto havia a afirmação de que Aristóteles foi o verdadeiro fundador da zoologia, levando-se em conta o sentido da palavra. Em um segundo momento, discutiu-se o tema “zoologia”. Para apoiar a construção do diálogo, a idéia inicial era que a cada aluno desconstruísse a palavra em duas partes “zoo” (animal) e “logia”. Em seguida, esse dispositivo permitia que todos pudessem lembrar de palavras relacionadas a “zoo” e “logia”. Mais à frente o texto introdutório falava que o tema incluía também outras teorias referentes à possibilidade de origem da vida, seja ela extra-terrestre ou extra-planetária. O próximo passo foi deixar que os alunos lessem as três perguntas formuladas, sendo: 1) Você já fez um passeio no zoológico? O que foi mais legal no passeio? 2) Quando você observa os bichos você se sente parte do mesmo mundo? 3) Como você imagina a vida em outro planeta? Escreva duas idéias.
As respostas foram escritas na folha oferecida pelo professor. Quanto à pergunta número um houve registros de “sins” e “nãos”, seguidos de “adorei os macacos”, “da hora de comer” e até “ver as meninas”. Quanto à pergunta dois, mais uma série de “sins” e “nãos” sem complementos. Já a questão três, que envolveu a produção de um pequeno texto, houve quem respondesse: “Devem haver seres mais inteligentes que nós humanos”, ou ainda “Não acredito em vida em outro planeta”, ou quem descrevesse “Seres gosmentos iguais ao E.T.”. Nesse item três existiu uma incidência maior de imagens já consagradas nos gibis, nos desenhos animados na televisão e no cinema. Em todos as respostas o aluno acionou a idéia com lucidez, renovando a compreensão das idéias institucionais e daquelas que surgiram em sua memória, guardadas em seu cérebro. Nesse caso, cada aluno apossou-se de uma idéia não porque a idéia do outro fosse sua proprietária, mas por sua capacidade de pensar foi capaz de discutir o assunto “VIDA” e foi disposto a desapropriar sua própria idéia para os colegas de classe. Aprender sobre a verdade do universo é também descobrir como e a partir de onde pensamos. Mais uma vez, TIBURI consegue nos mostrar que com o grupo de palavras da qual dispõe o aluno é dada chance da realização de seu propósito porque a autoria é a descoberta do próprio lugar de cada um, daquilo que é sua marca, seu sinal.“Sou autor aqui onde eu me posiciono ciente e criador de meus próprios gestos e atos, aqui onde eu deixo minha marca na relação com o dizer de outro. É porque escuto que sou leitor, mas o sou apenas quando falo o que estudo do meu jeito” (2008: 32)
Porque o dizer de outro está na revista em quadrinhos, nas páginas dos livros, na tela da televisão, na telona do cinema, no vídeo, no convívio com os pais, com aquilo que está nos jornais e é propagado em larga escala pelo mundo. Coube ao professor de Filosofia, portanto, despossuir a idéia, dá-la ao aluno e deixá-la para que os alunos estejam livres para dar vida ao pensamento humano. Mais do que isso, ele produziu sabendo que havia um professor-leitor na outra ponta ou até mesmo alguém outro, um colega, o pai, o avô, o responsável, a inspetora pedagógica, a diretora. Isto significa que o autor é um leitor, um ser pensador de uma idéia que serpenteia até que encontre uma oportunidade para dar o bote. Nesse instante, configura-se para TIBURI uma estrutura composicional em que diz:
“Escritor e leitor compõem a figura do ‘autor’. Este não é uma pessoa apenas quando se trata de livros, mas um ‘movimento’ – mais que uma entidade ou instituição – representado pela linha que tem dois lados e um ‘ato’ que se dá no encontro de ambos quanto, na torção, a fita encontra o seu contrário” (2008:35)
Que a disciplina de Filosofia se estabeleça como esse lugar de interconexão entre o aluno, o professor e o pensamento. Para o aluno, nasce naquele instante do surgimento da idéia e da compreensão a descoberta de si mesmo como ele absorvesse, que ficasse impregnado dentro de sua mente, colado em sua pele, cada conceito filosófico, ele imaginando: “o modo como penso é a maior revelação do que sou para mim mesmo”, como afirmou Márcia Tiburi. Na Filosofia, Sócrates concluiu algo ainda atual: “sei que nada sei”. Mas o aluno-escritor e o professor-leitor compartilharão o início do processo do conhecimento. A curiosidade move as descobertas, o “não sei” ou o “não tenho idéia” que pode surgir em um instante dá lugar a um outro com algo que elucida o questionamento filosófico, pois há um desejo de ir além do que o aluno sabe, do que ele é, na direção do que ele ainda não conhece. As novas descobertas, que são geradas pelo pensamento filosófico, são o leitmotiv[4] de um vir a ser da criança que precisa de palavras para expressar o que pensa, e que tem curiosidade de buscá-la nas profundezas de seu inconsciente.
O que posso extrair das experiências obtidas por meio de aulas expositivas na disciplina de Filosofia é que em nenhum momento descartou-se atos concretos, irrepetíveis, praticados por sujeitos concretamente definidos, ou sequer os atos dos alunos como atividade, daquilo que há em comum entre eles, e que portanto repetível, entre os vários            atos de uma dada atividade.   Como já apontou Adail Sobral em seus artigos sobre Mikhail Bakhtin, deparei-me com um duplo problema: como não apagar a especificidade de cada ato específico em cada resposta de cada aluno e como não se perder nessa especificidade e, assim, deixar de apreender o que há de comum entre vários atos. É certo que abordar temas filosóficos perante crianças entre 11 e 14 anos pode não encontrar adeptos dentro do sistema tradicional didático-pedagógico. Para SOBRAL, “abordar esses temas envolve, necessariamente, uma teoria do conhecimento, uma teoria da relação entre a experiência imediata no mundo natural e sua representação em linguagem no mundo humano, ou seja, envolve a própria condição humana e o esforço incessante por entendê-la com recursos humanos” (2007: 12). Talvez daí tenha encontrado certa dificuldade na montagem das aulas expositivas. Discorrerei sobre essas questões, arraigadas nas idéias de Sobral em outro artigo, em uma outra oportunidade.
O mais importante é que o conjunto de signos utilizado pelos alunos foi suficiente para que eles dessem conta de lidar com conceitos-chave de Filosofia, algo que, se imposta uma didática mais enferrujada, tornar-se-ia impossível de aplicar em sala de aula. Para aquilo que se pretendia ao lecionar uma disciplina considerada um “patinho feio” dentro das Leis de Diretrizes e Bases da Educação, as palavras registradas na folha de atividade ganharam novos valores, além de suas próprias particularidades materiais. Estamos diante daquilo que Bakhtin identifica como universo de signos que nas palavras de Valdemir Miotello chamam a atenção para o que o aluno estabelece como representação do mundo:      
“E todo signo, além dessa dupla materialidade, no sentido físico-material e no sentido sócio-histórico, ainda recebe um ‘ponto de vista’, pois representa a realidade a partir de um lugar valorativo, revelando0a como verdadeira ou falsa, boa ou má, positiva ou negativa, o que faz o signo coincidir com o domínio ideológico” (2007: 170)
Há a nítida impressão que a representação daquilo que o estudante entende como mundo é expressa por palavras porque ele não precisaria de outro meio para que haja qualquer outro tipo de expressão que se encerra, a não ser o próprio ser humano em presença de outro ser humano, nessa inter-relação “EU-OUTRO”, “PROFESSOR-ALUNO”, “ESCRITOR-LEITOR”, “AUTOR-FILÓSOFO”. Aliás, o aluno em sala de aula não se constitui apenas pela ação discursiva, mas todas as atividades que ele exerce, criando espaços para sua própria subjetividade, pela constituição daquilo que ele sente em relação à Filosofia diante do que lhe é posto para pensar. E pensar-junto.
Com as atuais experiências em sala de aula, é possível que o próprio aluno mexa naquilo que produziu, sem interferência do professor no ato de correção. Se na Filosofia é permitido que a cada pergunta se estabeleça uma nova pergunta, e mais uma nova pergunta, e assim ultrapassando os limites da disciplina, a proposta de mudança de hierarquia torna a aula como acontecimento filosófico, como um lugar de onde surgem perguntas, e respostas, e mais perguntas e mais respostas. Cada criança volta para casa repleta de indagações importantes para o que podemos chamar de “próxima aula”. Foi na sala de aula que ele encontrou seu companheiro de viagem, capaz de se unir a ele para falar das coisas que existem “lá fora”, aquilo que sentiu, que conseguiu guardar em sua memória. Para começar a escrever uma resposta a partir de uma premissa filosófica, bastou o pensamento aberto, livre, sem amarras, não-pronto, desengavetado. Na disciplina de Filosofia a criança pode misturar seus próprios conhecimentos com os conhecimentos dos grandes filósofos. “Será que Platão foi criança?”, poderia perguntar um aluno. “É claro, ele foi uma criança super esperta, vocês não acham?” Ao professor de Filosofia cabe ultrapassar os limites de disciplinas.
E isso é a Educação. Ou melhor, se concordarmos que tanto a Filosofia quanto a Educação têm a razão investigativa como elemento comum de busca, seria redundante afirmar que ao fazermos educação estamos fazendo Filosofia, e que toda Educação há que ser necessariamente filosófica. Em sua obra “Filosofia para Crianças”, Nilson Santos nos convida para levar a criança a um mundo “não mágico”, mas mais “humano”, longe das regras inatingíveis e pouco claras, porém mais compreensível para o que podemos chamar de “sentido das coisas” que acontecem todos os dias. Nesse caso, para o grupo que está em sala de aula, a discussão filosófica, ou o processo investigativo, ou ainda o fazer da educação tendo a aula como acontecimento, tem, portanto, algumas características básicas. SANTOS recorre a Mathew Lipman para alçar o professor a lugar privilegiado no processo de aprendizagem da disciplina.
“(...) os melhores professores não estão unicamente preocupados que seus alunos saibam suas disciplinas, mas que aprendam o movimento do pensamento inerente a elas, sua dinâmica interna e sua produção; isto transcende a pura mecânica do aprendizado de conteúdos. Não se trata somente de aprender a resultante do processo investigativo, mas de dominar seu procedimento; trata-se de tornar-se investigador.” (2000:27)
Nesse raciocínio, Santos também encontra seis pontos importantes que passo a discutir. Em primeiro lugar, a discussão filosófica merece ser cumulativa dando ao aluno a oportunidade de mesclar os conhecimentos adquiridos em qualquer momento de sua vida escolar. Em um segundo ponto, esse diálogo investigativo deve colocar o aluno com participante, como SUJEITO, que fala, que ouve, que faz considerações e reflete o que foi dito por outro             SUJEITO que também fala e que também ouve e que ainda faz considerações e reflete como ele. É nesse ínterim que a criança reconhece e valoriza o que aprendeu, e consegue mensurar cada parte desse conhecimento.
Mais à frente, temos uma discussão democrática, com tribuna-livre, conduzida pelo diálogo (aluno-professor-aluno) no qual todos ganham pesos iguais em suas considerações. Aqui, diz Santos, é fundamental que a criança preze “os valores da investigação e raciocínio, extrapolando o ritual da apreensão sensível, conferindo-lhe significação” (2000: 28). Os dois últimos pontos a destacar é que, durante o debate filosófico, há uma permissão em que os participantes aprendem uns com os outros, fortalecendo a compreensão que todo aprendizado e todo conhecimento é construção eminentemente coletiva. Essa é igualmente a premissa axiomática desse estudo: entender que a construção do saber é coletivo, quando todos somos melhores quando estamos discutindo juntos. Por fim, na hipótese de Santos, o aluno desperta em si o prazer do raciocínio, garantindo ao processo de aprendizagem um aumento de qualidade sobre o saber comum, além de conseguir ver concretizado cada etapa desse pensamento.
Em 2008, quando foi proposto a um grupo de alunos do 6º Ano (5ª Série) a produzir um texto sobre os assuntos discorridos em sala de aula durante o semestre, para falar sobre a Filosofia e seus pensadores, para narrar coisas que aconteceram, para fazer questionamentos, para indagar o que ela considerava como conhecimento, veio à tona o pensamento de Mathew Lipman, citado por Santos, quando afirmou que “crianças podem escrever filosofia, assim como podem escrever autobiografias, descrições da natureza, e assim por diante, elas podem escrever a respeito de seus pensamentos e analisar conceitos...”.
Não é difícil imaginar que crianças de 11 anos saibam observar o mundo com um olhar crítico, como faziam os pré-socráticos. Caroline, que tomou contato com os conceitos filosóficos pela primeira vez no 6º Ano (5ª Série), escreve algo a respeito do diálogo investigativo proposto em sala de aula:
“Eu gostei da aula da natureza, ela veio da palavra ‘physis’, seu significado é mais amplo que natureza. A natureza está em transformação constante, sempre mudando, nunca a mesma, isso também é movimento, transformação dos seres, de qualidade. Exemplo: eu estava feia e fiquei linda com a limpeza de pele e ajuda do salão; mudando de quantidade: um rio, com a chuva, aumenta de tamanho. O mundo não pára de mudar, mudança contínua. Também gostei da lógica, é uma coisa que se respondendo é tonto, fácil, é rápido, é pratico, é lógica. Essa aula também diz onde e como usamos essa lógica no dia a dia, eu uso na lição de matemática, tenho facilidade nessa matéria, que é muito legal. Eu adoro matemática e também a lógica, é muito simples e fácil”.

Já Vagner, colega de classe, considerado um “aluno-problema” (pedagogicamente falando, dentro do tradicional método didático) por seu comportamento distinto, também mostra progressos quando é estimulado a contar sua própria história e fazer perguntas. Sentiu-se à vontade quando narrou um episódio em que retratou uma queda de skate:
“Eu saí da escola e fui almoçar na casa da minha avó depois uma duas horas eu fui jogar bola no clube de campo e na dessida da Braziliana na lombada eu passei eu estava com chutera de cravo depois a chutera bateu no chão eu virei e caó eu não lembro direito só lembro quando acordei com um cara me chamando no hospital e depois fui andando até o clube de campo lá joguei bola”.
Durante a mesma atividade, Aline foi buscar inspiração em Tales de Mileto, que ao estabelecer a proposição de que a água é o absoluto, provoca como consequência o primeiro distanciamento entre o pensamento racional e as percepções sensíveis na filosofia ocidental:
“Na minha casa, meu irmão me perguntou a cor da água e como o piso da piscina era azul, eu falei que a água era azul. Por que a água parecia azul? Por que dizem que ela é transparente? Por que o céu é azul? Ilusão de Óptica? O que é ilusão de óptica? Porque a água é importante para a nossa sobrevivência? Se a água ‘mata’ a nossa sede, por que ‘tem’ que ser a água? Quem chegou à conclusão que a água é transparente? Porque a água não é rosa? Por que dizem que a água molhada?”

Interessante poder observar que a experiência integra o indivíduo, possibilitando a ele e ao grupo social a renovação de idéias, crenças e hábitos. Compete ao ensino lapidar o conhecimento e ajudar o aluno a ampliá-lo na medida de que esse indivíduo interaja como SUJEITO e, mais além, o lugar dessa troca de experiências com o grupo que o rodeia. Nos textos reproduzidos dos alunos, há sim elementos de equilíbrio, integração, tensão, satisfação, consciência, resgate de memória e nítidos sinais de que ele pertence a um mundo concreto, não estacionário, em constante processo de desenvolvimento, como destaca o estudante Henrique, também do 6º Ano:

“Uma vez eu estava perto do fogão e minha mãe estava fazendo almoço, e sem querer eu escorreguei e relei na panela quente o meu queixo. Na hora ardeu muito, pois queimou, daí minha mãe passou uma pomada e pegou um pano molhado para parar de arder. Porque ardeu? Porque a água faz com que pare de arder? São muitas perguntas que podemos fazer baseando-se nesta história. Poderia haver um livro com todas as respostas? Nós somos curiosos, cada pergunta que podemos fazer, mas de onde vem essas perguntas? Da cabeça? Da boca? Do coração? Continuando minha história, depois a dor passou e eu continuei perto da minha mãe até que meu pai chegou e eu fui brincar com ele e nem me lembrava do que tinha acontecido. Por que eu me esqueci? Por que eu fui brincar com meu pai? Perguntas e perguntas: eis a questão.”
O pensador russo Lev Vygotsky afirmava que “uma palavra que não invoque um pensamento é uma coisa morta, e um pensamento sem o corpo de uma palavra permanece na sombra”. Diante dessa realidade, as estruturas do discurso percebidas pela criança em fase de aquisição de linguagem transforma-se em estruturas básicas de seu pensamento. Além disso, a estrutura de linguagem que qualquer indivíduo habitualmente emprega influencia o modo como ele adquire habilidades e percebe seu ambiente, seu mundo, seu universo de referências. É para esse compromisso que a disciplina Filosofia constitui-se como uma nova forma de transformar em texto o “conteúdo imaginário” da mente da criança, contribuindo diretamente no processo de desenvolvimento intelectual, de modo que a linguagem não é apenas uma expressão das estruturas de pensamento adquiridas pela criança, como propôs Vigotsky. Há entre pensamento e linguagem uma relação mútua, contínua e progressiva e incessante. Com a Filosofia, o aluno consegue alimentar o pensamento e a linguagem permanentemente.
Portanto, o projeto didático-pedagógico deve estar sempre voltado para as questões daquilo que a criança viveu, dos acontecimentos da vida, para ajudá-la a construir compreensões e percorrer novos caminhos, e expandir a própria vida. “Ensinar não é mais transmitir e informar, ensinar é ensinar o sujeito a aprender para construir conhecimentos” (2004: 21), escreveu GERALDI. O que importa é o aluno aprender, construir aprendizagens ao longo do processo de escolaridade.  
Na disciplina Filosofia que merece ser aplicada a partir do ensino fundamental, como está proposto, as experiências são incontáveis. No processo de produção de texto, o aluno terá o professor como  referência em seu projeto de dizer, ou seja, será o OUTRO que vai anteceder esse autor questionador. Nesse conjunto de trocas, dentro da interação em sala de aula, nada do que o aluno dirá deixará de estar valorado. Por outro lado, não podemos encarar o texto como algo sagrado. Essas palavras devem continuar sua trajetória de significação, de diversidade dentro da língua escrita e falada. É preciso contar as experiências, mostrá-las, seguir em frente. Nessa trilha, o caráter histórico-social caminhará junto, estabelecendo jogos sociais de poder, de mudanças, porque, na concepção de Mikhail BAKHTIN, “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência” (2004: 36). Houve o que dizer, houve razão para dizer, escolheu-se uma estratégia e comprometimento com esse dizer. Eis o despertar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRAIT, Beth (org). Bakhtin: conceitos-chave. 4ª ed. São Paulo: Contexto, 2007.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem.11ª Ed. Trad.Michel Lahud e Yara F.Vieira. São Paulo: Hucitec, 2004.
GERALDI, João Wanderley. A aula como acontecimento. Aveiro, Universidade de Aveiro: 2004.
O ESTADO DE S.PAULO, 26 nov.2008, p.D4.
SANTOS, Nilson. Filosofia para crianças: investigação e democracia na escola. São Paulo: Terceira Margem, 2000.
TIBURI, Márcia. Filosofia em comum: para ler-junto. Rio de Janeiro, Record, 2008.


[1] Entrevista concedida ao repórter Ubiratan Brasil, publicada no jornal O Estado de S.Paulo, na edição de 26 de novembro de 2008, no Caderno 2.
[2] Karl Marx defendia a "práxis" (ou prática) ou um materialismo ativo. Seu materialismo não pode se definir como meramente empirista, primeiro porque julga Marx que o empirismo é ainda muito abstrato, e segundo porque seu materialismo é dialético. Ou seja, matéria e idéia são categorias que de forma oposta se interelacionam, ou em termo tradicional, trata-se de uma "unidade de opostos". Tendo por a priori, a própria matéria (realidade), o princípio é materialista, mas não é um materialismo absoluto.
[3] Termo que ganhou notoriedade com o alemão Günter Grass, prêmio Nobel de Literatura, com a obra “Nas Peles da Cebola”, citado por Saramago em entrevista publicada em 26 de novembro de 2008 no jornal O Estado de S.Paulo.
[4] Leitmotiv, do alemão, motivo condutor ou motivo de ligação, é termo composto, expressão idiomática naquele originário vernáculo, para significar genericamente qualquer causa lógica conexiva entre dois ou mais entes quaisquer.

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