quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Karina Mayara Leite Vieira

Problemas do uso dos gêneros discursivos na escola ou estamos falando a mesma língua? 
Karina Mayara Leite Vieira. karina_letras@yahoo.com.br. UNESP (Univ. Estadual Paulista – Campus de Rio Claro).

Introdução
Aventuro-me a falar de educação e de ensino de língua materna a partir de uma perspectiva bakhtiniana. Arrisco-me a compartilhar inquietações quanto à relação dos gêneros discursivos e o ensino de língua na escola, tal como vem sendo proposta pelos discursos pedagógicos em voga, veiculados por documentos curriculares oficiais. O risco e a aventura se deve ao fato de que não sou uma leitora de longa data dos escritos de Bakhtin. Não me sinto com propriedade para falar, citar, dialogar com o autor. Sinto-me antes com vontade e é essa vontade que me move. As leituras são recentes e escassas: Marxismo e Filosofia da Linguagem, alguns artigos do Estética da Criação Verbal e excertos d’A Cultura Popular na Idade Média. O restante são leituras de textos de alguns autores que assumem a perspectiva bakhtiniana e dialogam e ampliam o conhecimento teórico-reflexivo sobre os escritos do autor e seu Círculo. É a partir desse labirinto de textos que compus algumas ideias que tenho a respeito de Bakhtin – principalmente no tocante às concepções de linguagem, língua, enunciado, enunciação e gêneros discursivos.
Esse arriscar-se, aventurar-se, enveredar-se pelo pensamento bakhtiniano e por tais questões implica propor um diálogo para que pensemos: de que língua estão/estamos falando quando propõem/ propomos (documentos oficiais e professores de língua materna – dentre os quais me incluo) trazer os gêneros discursivos para a escola? Estaríamos falando da mesma língua que Bakhtin? Em outras palavras, o discurso e as práticas pedagógicas sobre os gêneros discursivos estariam de acordo com os significados que Bakhtin atribui à linguagem, à língua, à interação entre os sujeitos?
O texto no qual Mikhail Bakhtin problematiza a questão dos gêneros discursos está em Estética da Criação Verbal (2006b). Trata-se de um artigo em que o autor oferece ao leitor a dimensão dos gêneros, deslocando-os do patamar da retórica e da poética, tal como eram classicamente categorizados por Aristóteles e Platão, para um âmbito discursivo mais amplo, abarcando os diversos usos da linguagem verbal, desde o mais prosaico ao mais elaborado.
Embora Bakhtin, ao propor uma discussão sobre os gêneros discursivos, não o tenha feito pensando na educação, ou especificamente, no ensino de línguas maternas, essa área e subárea do conhecimento apropriaram-se desse conceito. Aliás, o arcabouço teórico-reflexivo proposto por Bakhtin e seu Círculo vem sendo revisitado por diversos campos. Além da linguística, da literatura e da educação, também a história, a antropologia, a psicologia têm se apropriado dos conceitos bakhtinianos, uma vez o que une essas áreas é a linguagem.
Trata-se, como dito, de uma gama teórico-reflexiva, em que noções, conceitos, categorias se entrelaçam, se complementam: linguagem, enunciado/enunciação, dialogismo, polifonia, ideologia ou gêneros discursivos são conceitos interligados. Assim, não se pode compor a noção de gêneros do discurso sem considerar o que o autor compreende por linguagem, signo ideológico e dialógico ou polifonia discursiva. Não pretendo, é claro, explorar aqui todos esses conceitos, mas pensar – não perdendo de vista as concepções fundamentais do autor sobre linguagem e língua – nos termos em que os gêneros discursivos são propostos pela escola como instrumento de ação (e reflexão?) sobre a língua/linguagens.

A língua segundo Bakhtin
A fim de iniciar o diálogo, trago as considerações de Bakhtin (2006a), que, ao refletir teórica e filosoficamente sobre a linguagem, toma como unidade de estudo a enunciação, ou seja, a linguagem no processo vivo de comunicação. Sobre esta, o autor afirma:
é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.). (p.117, grifos do autor).
                       
O excerto aponta para características fundamentais da linguagem e de sua materialidade – a enunciação: o fato de que é um produto da interação de dois sujeitos, ou seja, é dialógica, e condicionada pelo contexto de comunicação (para quem se fala, de onde se fala, os lugares sociais que ocupam esses sujeitos). Do produto da interação entre os indivíduos surgem “enunciados (orais ou escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo de atividade humana”. Os enunciados, “refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo de linguagem, […] mas, acima de tudo, por sua construção composicional” (BAKHTIN, 2006b, p.261).
Da soma desses três elementos, o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional, parte integrante de todo enunciado, resultam “tipos relativamente estáveis de enunciados”, os quais o autor denomina de “gêneros do discurso” (Op. Cit., p.262, grifos do autor). Em outras palavras, cada campo de comunicação humana produz enunciados mais ou menos estáveis, que são colocados em prática nos mais diversos momentos da enunciação.
O autor ressalta ainda a importância desses tipos relativamente estáveis de enunciados, os gêneros discursivos, pois sem estes a comunicação discursiva seria quase impossível. Isso porque “aprender a falar significa aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, evidentemente, não por palavras isoladas)”. E mais: “aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos um determinado volume [...], uma determinada construção composicional, prevemos o fim [...], desde o início temos a sensação do conjunto” (Ibidem, p.283).
A partir das palavras de Bakhtin, compreendo o quanto a questão dos gêneros está presente mesmo na comunicação mais cotidiana. Quer o falante tenha consciência ou não, seus enunciados se concretizam em gêneros discursivos e, mesmo sem perceber, o ouvinte reconhece o gênero do discurso do outro.

A língua nos PCNs
Um dos textos que se apropria (dialogicamente?) das reflexões de Bakhtin em torno dos gêneros discursivos são os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Nos PCNs de Língua Portuguesa, as referências aos escritos bakhtinianos são explícitas, recorrentes e enfáticas. Na introdução do volume, lemos a seguinte paráfrase acerca do conceito de linguagem: “uma forma de ação interindividual orientada por uma finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos da história” (BRASIL, 1997, p. 23-24).
Prosseguindo na leitura do documento oficial, lemos ainda: “a língua é um sistema de signos histórico e social que possibilita ao homem significar o mundo e a realidade”. E ainda: “A linguagem, por realizar-se na interação verbal dos interlocutores, não pode ser compreendida sem que se considere o vínculo com a situação concreta de produção” (Op.Cit. p.24-25).
E o documento oficial vai até as noções de discurso, texto e gêneros: “o discurso, quando produzido, manifesta-se linguisticamente por meio de textos. Assim, pode-se afirmar que texto é o produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um todo significativo e acabado, qualquer se seja sua extensão”. E, por fim, chegamos à concepção de gêneros:
Todo texto se organiza dentro de um determinado gênero. Os vários gêneros existentes, por sua vez, constituem formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura, caracterizados por três elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional.  (Ibidem, p.26).                                                                                                                                                                            

            O leitor deve estar se perguntando: mas o que há de errado com tudo isso? Está tudo muito bem fundamentado (é puro Bakhtin, diríamos de modo coloquial). Sim, a parte teórica do documento é toda fundamentada nos escritos de Bakhtin e em releituras de suas reflexões no campo dos estudos linguísticos: Bronckart, Dolz e Schneuwly também são citados pelo documento.
            O problema não reside na apresentação do conceito de gêneros discursos ou outros, mas sim na transposição didática de toda essa teoria. Após a explanação teórica, o documento estabelece o objetivo primeiro da escola quanto ao ensino da língua: “viabilizar o acesso do aluno ao universo de textos que circulam socialmente, ensinar a produzi-los e a interpretá-los.” (Idem, p.30). Entretanto, a essa altura do documento, o tom prescritivo dos Parâmetros torna-se incisivo, pois apresentam uma listagem de conteúdos (o que o professor deve ensinar), objetivos (por que o professor deve ensinar), orientações didáticas (como o professor deve ensinar), além de propostas de atividades e modos de avaliação.
            Além disso, do “o que”, “por que” e “como”, o documento estabelece o “quando”, o “momento adequado” para se alcançar tais e tais objetivos, para se trabalhar tais e tais conteúdos. Cabe, portanto, perguntar: qual o lugar dos gêneros discursivos no meio de toda essa parafernália prescritiva? Estes vêm em forma de receita, por exemplo: Conteúdos para o primeiro ciclo – Gêneros Discursivos – Gêneros adequados para o trabalho com a linguagem oral (uma lista) – Gêneros adequados para o trabalho com a linguagem escrita (outra lista). Ingredientes e modo de fazer. Diante de tantos “o que fazer” e “como fazer” sobraria espaço para o professor e a escola trazer para a escola verdadeiras práticas de uso da língua (dos gêneros discursivos)? Sobraria espaço para a leitura e a escrita? Para oralidade e a escuta? Leitura e escrita, oralidade e escuta como prática social e não como conteúdos curriculares. Os gêneros discursivos são a materialidade da enunciação, a enunciação, a materialidade da linguagem, e a linguagem, a vida. Sobraria espaço para deixar a vida entrar na escola?
            E por que toda essa prescrição? Por que não a vida? A proposta de um currículo nacional único faz parte de um projeto neoliberal que se instaura no país em meados dos anos 90. Sem parâmetros para os Estados da federação, o principal eixo da estratégia governamental desse projeto – a avaliação educacional – não é possível. Assim, o objetivo dos PCNs não é de ordem pedagógica e sim política, como aponta Geraldi (1996):
parece ficar evidente o objetivo dos PCNs: não só tem que ter um conteúdo nacional como também tem que ser do jeito que o SAEB quer avaliar, por isso precisa parâmetro nacional […] parâmetros configuram uma relação (selecionada e arbitrária) de conteúdos escolares considerados como válidos e necessários bem como sua operacionalização na programação escolar que será controlada pela avaliação nacional (p.13).
           
Compartilho da ideia de que, em termos de qualidade de ensino da língua materna, principalmente da leitura e da escrita – calcanhar de Aquiles da educação brasileira – não houve uma mudança significativa pós-PCNs. E isso por dois motivos. O primeiro se deve o fato de que, apesar da introdução do texto em seus mais diversos gêneros como unidade de estudo, mantem-se o caráter descritivo e classificatório no ensino da língua.
Sabemos que um problema do ensino é o tratamento inadequado, para não dizer desastroso, que o texto vem recebendo, não obstante as muitas alternativas e experimentações que estão sendo tentadas. Com efeito, introduziu-se o texto como motivação para o ensino sem mudar as formas de acesso, as categorias de trabalho e as propostas analíticas (MARCUSCHI, 2008, p.52).

É possível afirmar que, na maioria dos contextos, o que houve foi a substituição das aulas de nomenclatura gramatical pelo estudo das superestruturas textuais, das características dos tipos e dos gêneros textuais. Assim, o que antes eram aulas de gramática transformou-se em aulas de linguística textual ou teoria dos gêneros discursivos. Sobre essa arriscada substituição, Delia Lerner (2002) alerta
Em todo o caso, sejam quais forem as causas que levaram a superdimensionar as superestruturas textuais, o importante é evitar uma nova substituição do objeto de ensino. Para formar leitores e escritores, é necessário dedicar muito tempo escolar ao ensino da leitura e ao da escrita. Não corramos o risco de substituí-los de novo por outros conteúdos: pouco se terá ganho quanto à formação de leitores e escritores, se o tempo que antes se dedicava a trabalhar gramática oracional se consagra à verbalização das características do diferentes formatos textuais”  (p.57, grifo da autora).
           
E pouco temos ganho com PCNs e toda esse emaranhado de proposta (políticas) curriculares. O segundo motivo é que essas políticas de mudança curricular não vêm atreladas a uma política de formação de professor. Não há currículo sem formação de professor. A mudança curricular não se faz com documentos e decretos, livros didáticos e materiais pedagógicos, avaliações externas e gratificações. Qualidade educacional se garante primeiramente pela produção ativa do professor, pela reflexão sobre o seu trabalho cotidiano, com apoio pedagógico direto, e pela reestruturação do trabalho pedagógico na escola – o que apenas é possível com uma política séria de formação docente e uma revisão da carreira do magistério e das condições de trabalho do professor.
            Vejo que já estou navegando por outros mares. É que falar em Bakhtin implica esse caminhar pelo campo do político e do ideológico. A questão inicial desaguou em um mar de problemáticas e interrogações. A proposta da escola de trabalho com gêneros discursivos anunciada pelos PCNs deveria implicar uma postura educacional diferenciada no ensino de língua materna, pois adotar a concepção de língua/linguagens como interação social significa considerar a língua e as diversas linguagens como o lugar de constituição dos sujeitos (GERALDI, 1984, p.43). Não me parece que esses documentos oficiais nacionais ou estaduais e as práticas pedagógicas neles propostas considerem os indivíduos – o professor e o aluno – como sujeitos constituídos na e pela linguagem.
            Primeiro porque a prescrição presente nesses documentos fere a autonomia do sujeito professor. Não é mais o professor que conclui, considerando o contexto de sua escola e de seus alunos, sobre o que eles querem, precisam aprender. O aluno, por sua vez, não tem o espaço que deveria ter se estivéssemos falando realmente de uma escola que entende a língua como interação social. Não se ouve a voz dos professores e, com tantos objetivos e metas a serem cumpridos, os professores não dão espaço às vozes de seus alunos.
            Os gêneros discursivos tal como os descreve Bakhtin não entraram de fato na escola. O que invadiu a escola foram formatos textuais, cujo razão de estarem lá não é a necessidade de interação entre os sujeitos por meio da escrita ou da oralidade, mas, antes, a mesma passividade diante do texto. Definitivamente, não estamos falando a mesma língua.

Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 12.ed. São Paulo: Hucitec, 2006a.
_________________. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Ática. 2006b.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
GERALDI, Corinta. Parâmetros Curriculares Nacionais? In: Ciência e Ensino. Campinas/SP, 1996. vol.1
GERALDI, João Wanderley. Concepções de linguagem e ensino de português. In: O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel: Assoeste, 1984.
LERNER, Délia. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Tradução de Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2002.
MARCUSCHI, Luiz A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. (Educação Linguística; 2).

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