quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Amanda Sangy Quiossa

A pesquisa nas Ciências Humanas: compreendendo este percurso sob a perspectiva dialógica.
Amanda Sangy Quiossa – amandaquiossa@hotmail.com
Mestranda em Educação – PPGE/UFJF

INTRODUÇÃO
A pesquisa acadêmica também deve ser percebida como um gênero de discurso, uma vez que ela se constitui em uma forma específica de comunicação composta pelos três elementos fundamentais apontados por Bakhtin, são eles: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Segundo Bakhtin (p.279, 2003):
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua — recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais —, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional.

Os trabalhos acadêmicos se constituem sempre a partir de referenciais teóricos, com os quais os autores dialogam, concordando ou refutando o que foi lido. As produções acadêmicas, sempre buscam gerar um conhecimento novo, porém se pautando em teorias e trabalhos já existentes. Um exemplo desta prática é a revisão bibliográfica, que se faz recorrente no processo de construção das pesquisas. Estas estão sempre relacionadas àquilo que foi produzido anteriormente, no sentido bakhtiniano, se constituem como respostas aos enunciados anteriores.O conceito de dialogismo na obra bakhtiniana, se faz pertinente no processo de compreensão da construção das pesquisas acadêmica, uma vez que compreende a produção dos enunciados de forma elaborada, não desconsiderando a singularidade dos sujeitos – nesse sentido os enunciados são individuais, porém, os compreendendo como sociais, como respostas a enunciados anteriores que se dirigem a determinados destinatários.
A ideia da produção das pesquisas estar sempre relacionada a enunciados anteriores, significa ainda, que elas estão sempre condicionadas às escolhas do seu autor, às leituras e influências que pautaram a sua formação e a sua forma de compreender o mundo. Sendo assim, as pesquisas devem ser entendidas sempre, enquanto pontos de vista, enquanto uma resposta possível na cadeia dos enunciados.
Para refletir sobre esta cadeia de enunciados este trecho de Bakhtin se faz importante (BAKHTIN, 2003, p.275):
Os limites de cada enunciado concreto como unidade de comunicação discursiva são definidos pela alternância dos sujeitos do discurso, ou seja, pela alternância dos falantes. Todo enunciado – da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano ao grande romance ou tratado científico – tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensão ativamente responsiva silenciosa do outro ou, por último, uma ação responsiva baseada nessa compreensão). O falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva.

Para refletirmos sobre o processo de produção das pesquisas acredito que seja importante compreendermos a forma como elas são desenvolvidas no tocante a metodologia. Os referenciais da pesquisa podem se diferenciar um do outro sob o ponto de vista da finalidade da investigação, da realidade, da relação do pesquisador com o objeto de pesquisa e do produto final. Dentre as perspectivas existentes podemos citar: a positivista, a interpretativista, a crítica e a histórico-cultural. Acredito que a última seja a que mais se relaciona com a ideia da produção do conhecimento como algo parcial e subjetivo, a partir do lugar ocupado pelo seu enunciador no processo dialógico em que se dá esta construção.
Irei, de forma sucinta, apresentar estas perspectivas e realizar uma reflexão sobre a utilização delas nos trabalhos científicos em Ciências Humanas, tendo como referência o dialogismo bakhtiano, que considera que para que um enunciador construa um discurso -compreendo a pesquisa acadêmica como um discurso, um enunciado, ele leva em conta o discurso de outrem, que está presente no seu.

PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS
Começarei apresentando a perspectiva denominada de positivista, a qual tem como principal característica o controle do processo investigativo e a formulação de leis gerais. Sob este ponto de vista, a realidade é tida como objetiva. Esta vertente é muito utilizada na pesquisa quantitativa. No texto Metodologia das ciências humanas, inserido no livro Estética da criação verbal (2003), Bakhtin traz conceitos que servem como crítica esta perspectiva, utilizada com mais frequência nas ciências exatas e naturais. Trabalha-se com a ideia de objetividade na pesquisa para a produção de um conhecimento verdadeiro.Acredita-se na possibilidade da não intervenção do autor na análise dos dados pesquisados e na consequente objetividade no processo de investigação. Alguns conceitos desenvolvidos no texto supracitado, como o de sentido (p. 398), de contexto dialógico (p.410), de influência do contexto extratextual (p. 406), de tonalidade (p. 403) mostram que a objetividade pretendida por esta perspectiva, torna-se muitas vezes, impossível de ser alcançada.
Nas Ciências Humanas, a pesquisa constitui-se em algo tão sério quanto nas Ciências Exatas. O que as diferencia substancialmente é a compreensão do que é fazer pesquisa, que se ancora em bases diferenciadas. Nas ciências humanas, principalmente na pesquisa qualitativa, o pesquisador não trabalha com a ideia de exatidão, mas com a de interpretação.
Segundo Bakhtin,
A investigação se torna interrogação e conversa, isto é, diálogo. Nós não perguntamos à natureza e ela não nos responde. Colocamos as perguntas para nós mesmos e de certo modo organizamos a observação ou a experiência para obtermos a resposta. Quando estudamos o homem, procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu significado (BAKHTIN, 2003, p. 319).

No que se refere à questão da interpretação, podemos citar a existência de uma perspectiva que é totalmente baseada nesta ideia, a perspectiva interpretativista. Esta tem como finalidade de investigação a compreensão e a interpretação. A realidade não é tida como algo apreensível diretamente, mas é uma construção dos sujeitos em interação com a realidade. A relação do pesquisador com o objeto de pesquisa se dá de forma que são valorizados os fatores subjetivos que marcam a construção de significados. Os valores do pesquisador influenciam na seleção do problema, da teoria e do método. O produto final são análises indutivas e qualitativas, uma vez que o pesquisador é o construtor da realidade pesquisada.
Esta perspectiva se aproxima da histórico-cultural, porém, uma das diferenças é que nesta última acredita-se que a pesquisa acontece SOBRE o sujeito e não COM o sujeito. Na perspectiva histórico-cultural o sujeito investigado é entendido como alguém que modifica o pesquisador, que fala e interpreta a realidade a partir de um lugar específico e, que por isso, realiza a pesquisa de forma subjetiva. Desta forma, o pesquisador também pode ser compreendido como sujeito, que exerce influencia sobre as conclusões da pesquisa.
Outra vertente é a perspectiva crítica, que surge quando a pesquisa-ação, passa a adquirir maior força no cenário investigativo. Segundo essa concepção as pesquisas têm a intenção, além de compreender, intervir na realidade, de forma política e engajada. Nesse tipo de pesquisa, se lida com o coletivo, não com o individual, com um sujeito. A partir da análise de determinada realidade, é feita uma proposta de intervenção, de mudança.
É importante ter clareza de que a utilização destas perspectivas se dá de acordo com a necessidade e interesse do pesquisador. Sendo assim, não devemos entendê-las sob o ponto de vista evolutivo. Na arqueologia, por exemplo, geralmente a perspectiva interpretativista se justifica mais do que a positivista, tendo em vista que os objetos de pesquisa são artefatos de outro tempo histórico, que precisam ser analisados e interpretados pelo pesquisador.
Por fim irei tratar da perspectiva histórico-cultural, que se faz relevante dentro das Ciências Humanas, uma vez que compreende a forma de produção de conhecimento como algo social, valorizando as relações entre os sujeitos. Desta forma, os papéis do pesquisador e dos sujeitos que estão sendo pesquisados são ressignificados, de modo que a pesquisa se dá com o sujeito e não apenas sobre o sujeito. A teoria da enunciação de Bakhtin se fazimportante para esta perspectiva, na medida em que considera a interação como algo importante no estudo de fenômenos humanos.
Maria Teresa Freitas apresenta a perspectiva histórico-cultural, como (2003, p. 26):
Um caminho significativo para uma forma outra de produzir conhecimento no campo das Ciências Humanas. Ao compreender que o psiquismo é constituído no social, num processo interativo possibilitado pela linguagem, abre novas perspectivas para o desenvolvimento de alternativas metodológicas que superem as dicotomias externo/interno, social/individual. Ao assumir o caráter histórico-cultural do objeto de estudo e do próprio conhecimento como uma construção que se realiza entre sujeitos, essa abordagem consegue opor aos limites estreitos da objetividade uma visão humana da construção do conhecimento.
        
Para isso, a partir de conceitos bakhtinianos, a autora destaca a importância da observação mediada, do grupo focal reflexivo e da entrevista dialógica na pesquisa em Ciências Humanas. Sobre esta última estratégia, Maria Teresa coloca que ela deve ser realizada numa perspectiva de interação verbal entre entrevistador e entrevistado, tendo como objetivo a mútua compreensão (FREITAS,2003, p. 34).
No texto Mikhail Bakhtin e as ciências humanas: sobre o ato de pesquisar, também é colocada a questão do encontro entre sujeitos no processo de pesquisa. Para Solange Jobim e Souza (2011, p.1):
Ao levar em conta a particularidade do encontro do pesquisador com o seu outro e, consequentemente, a especificidade do conhecimento que pode ser gerado a partir desta condição, o que se destaca é a produção de um conhecimento inevitavelmente dialógico e alteritário. Para Bakhtin há que se considerar a complexidade do ato bilateral e da profundidade do conhecimento que se constitui e se revela na relação dialógica eu-outro.
       
No texto Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas Marilia Amorim traz uma síntese da teoria dialógica de Bakhtin e as suas consequências para a pesquisa em Ciências Humanas. Com base nestas ideias, a autora percebe o texto como um lugar de produção e de circulação de conhecimentos, uma vez que pensa que a escrita da pesquisa não se reduz a uma simples transcrição de conhecimentos produzidos em situação de campo. Sendo assim, uma questão que se coloca importante para Amorim é a relação estabelecida entre o pesquisador e o outro. Neste sentido, ela destaca a importância de se compreender as diferentes vozes presentes em um texto, para se entender de forma crítica as pesquisas em Ciências Humanas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Bakhtin a produção de conhecimento tem relação com a vida, sendo um processo que deve ser pautado na responsabilidade. Desta forma, acredito na importância de refletirmos sobre o processo de produção científica, tendo a clareza de que, os trabalhos acadêmicos são produções e, por tanto, se constituem enquanto pontos de vista, enquanto produções dialógicas, que se dão a partir de palavras alheias. Pensar a produção destes textos como enunciados, dentro de uma cadeia dialógica, significa compreender que eles não representam uma única verdade, absoluta e irrefutável, mas representam o processo de compreensão em que o seu autor, através das suas palavras, produz uma réplica a enunciados anteriores, uma forma de compreensão ativa. Sendo assim, os conceitos de significado e sentido, presentes no pensamento bakhtiniano, se fazem relevantes para se pensar este caráter provisório da produção de conhecimento. 
A perspectiva histórico-cultural seconstitui em uma forma de se fazer pesquisas em Ciências Humanas, que, considera os universos particulares investigados como inseridos na esfera social. Além disso, a partir do pensamento de Bakhtin, estes enunciados são compreendidos como uma forma de resposta a um enunciado anterior, o que se relaciona com o conceito de responsividade, o qual, segundo Bakhtin (2003) se constitui na compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo. Este é sempre acompanhado de uma atitude responsiva ativa, uma vez que toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz. A importância desta metodologia se dá também, uma vez que há a valorização do papel ativo dos participantes das pesquisas e do investigador que, atua como ouvinte, recebe e compreende a significação de um discurso e adota simultaneamente, para com esse discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar (Bakhtin, 2003).

REFERÊNCIAS:
AMORIM, M. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas. In: Cadernos de Pesquisa, n 116, p. 7-19, Julho 2002.
BAKHTIN, M. Metodologia das ciências humanas. IN: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003a.
BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. IN: Estética da criação verbal.  São Paulo: Martins Fontes, 2003b.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 13ª Ed. São Paulo: Hucitec, 2009.
FIORIM, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
FREITAS, M.T. A perspectiva sócio histórica: uma visão humana da construção do conhecimento. In: Ciências Humanas e Pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. FREITAS. M.T.; JOBIM. S.; KRAMER. S. (Orgs.). São Paulo. Cortez, 2003. p. 26-38.     
JOBIM, S. Mikhail Bakhtin e as ciências humanas: sobre o ato de pesquisar. In: Escola, Tecnologias digitais e Cinema. FREITAS. M.T. (Org.). Juiz de Fora. Editora UFJF, 2011. (no prelo).

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