quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Inez Helena Muniz Garcia

“Queria até um dia fazer um curso pra mim responder aquelas provazinhas...”: Trabalhadoras e Trabalhadores rurais e seus discursos sobre alfabetização de pessoas adultas.
Inez Helena Muniz Garcia – inezhmg@gmail.com
UFF - Universidade Federal Fluminense – Niterói (RJ)
Eixo temático: Educação como resposta responsável

O que eu não gosto é de uma palavra de tanque.
Porque as palavras do tanque são estagnadas, estanques,
desacostumadas. E podem até pegar mofo. Quisera um idioma de
larvas  incendiadas. Palavras que fossem de fontes e não de tanques.
Manoel de Barros

“Queria até um dia fazer um curso pra mim responder aquelas provazinhas...”, diz Maria Cassimiro de Melo Batista, 61 anos, conhecida  por D. Mocinha, moradora do Assentamento Palheiros I, localizado no município de Assu, Estado do Rio Grande do Norte, local de uma pesquisa, em processo de desenvolvimento. O contexto de estudo é a ação do Programa Brasil Alfabetizado em parceria com o governo do Estado do Rio Grande do Norte e o Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos – BB Educar, da Fundação Banco do Brasil, por meio do desenvolvimento e acompanhamento pedagógico do Programa Lendo e Aprendendo, que visava à alfabetização de jovens e adultos em todo o estado, num prazo de seis a oito meses.  O acompanhamento pedagógico, trabalho realizado ao longo do ano de 2006, aconteceu em nove municípios, situados em diferentes regiões daquele estado. Das turmas acompanhadas, a localizada no Palheiros I foi escolhida para a pesquisa.
O ponto de partida do acompanhamento pedagógico era a aplicação de um instrumento avaliativo, denominado diagnóstico inicial, que buscava verificar quais conteúdos relativos à oralidade, leitura, escrita, interpretação e matematização as/os alfabetizandas/os já dominavam e ao final do período, as/os alunas/os eram submetidos a um novo instrumento, o diagnóstico final. Na ocasião, as duas avaliações deixaram as/os alunas/os muito inquietas/os e preocupadas/os e sempre que nos encontrávamos, elas/eles se lembravam dos testes. Daí que, em 2009, D. Mocinha ao ser questionada: “E se a senhora soubesse escrever do jeito que a senhora tem vontade de saber, o que é que a senhora gostaria de fazer?”, ela responde: “Sabe o que eu queria fazer? Queria escrever melhor... Queria até um dia fazer um curso pra mim responder aquelas provazinhas...”
Tal resposta deixou-me inquieta. Com tantas coisas que ela sempre revelou ter desejo de escrever - cartas para duas filhas que moram longe, listas de compras, anotações diversas,  por que ela quer responder aquelas provazinhas? O que fazemos de um processo de alfabetização de pessoas adultas para que D. Mocinha deseje fazer um curso para fazer aquelas provazinhas
Segundo Bakhtin (1988), a intersubjetividade antecede a subjetividade, pois a linguagem carrega a história dos falantes, história essa que é também apropriada por todos.  Assim, os sujeitos não falam ou agem como supostamente desejam, mas também de outras formas, as quais conscientemente não reconhecem – ou se reconhecem – uma vez que a linguagem está banhada, impregnada de várias outras ideologias[1], principalmente a da classe dominante, que vai entranhando sorrateiramente via linguagem. Alguns enunciados, que se originam de outros discursos, vão sendo incorporados por nós e ancorados em nós, vão entrando em nossas vidas, vão-nos afetando de modos diferentes. Outros, não, brigam conosco uma vida inteira, disputam poder em nosso discurso interior. Esses signos ideológicos, portanto, vão formando a consciência dos sujeitos, o que e quem eles são.
Partindo do princípio de que a linguagem é constituidora e constituída na/pela atividade humana, numa perspectiva bakhtiniana (Bakthtin, 1988), todo o dizer está carregado de valores, não existem enunciados neutros. Bakhtin afirma também que a palavra está sempre relacionada às estruturas sociais, posto que, penetrando em todas as relações entre os indivíduos, é tecida por uma multidão de fios ideológicos, enredando todas as relações sociais, nem sempre harmônicas, são também relações de conflito, relações de poder. Se D. Mocinha me vê como a professora que faz um trabalho de acompanhamento pedagógico, não é novidade que procure me responder com algo que julga, poderá me agradar – saber escrever para responder as questões da avaliação. Quer melhor aprendizado do que esse?
No dizer de Bakhtin:
“Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância muito grande. Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A  palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.” (1988, p. 113)

Quando avaliamos, avaliamos para quê? A nossa experiência e prática têm demonstrado que a avaliação vem sendo utilizada, na maioria das vezes, apenas como um demonstrativo daquilo que falta, ou seja, é usada, quase sempre, apenas para detectar o que o aluno não sabe, o que o aluno não conhece, o que o aluno não aprendeu, isto é, o exame não indica o que cada aluno sabe. Entretanto, diante dos resultados de uma avaliação, não é normal nos perguntarmos por que o aluno não sabe, por que o aluno não conhece, por que o aluno não aprendeu. Não nos interessa o que o aluno nos mostra, o que é evidente; isso não é capaz de suscitar questionamentos em nós. O que nos incomoda, inquieta e às vezes nos deixa indignados é julgarmos que nosso aluno não aprendeu aquilo que ensinamos, embora acreditemos que tenhamos nos esforçado para ensiná-lo.
Voltemos a D. Mocinha. Desde que a conheci, em 2006, todas as vezes em que nos encontramos ela sempre repete: “eu sei lá escrevê, mulé!” Em 18 de janeiro de 2010 estive em sua casa pela primeira vez. Achava-me ansiosa para encontrar materiais escritos. Nas paredes, algumas folhinhas (tipo calendário), algumas de 2009, outras de 2010.
Conversa vai, conversa vem, pergunto: tem alguma coisa que a senhora escreveu, algum papel guardado? Ela responde que não. Insisto um pouco mais, ela resolve remexer sua bolsa. Diz que se lembrou que havia feito umas anotações das ovelhas que nasceram. Fico inquieta para que ela ache o papel. Ela encontra a folha e fica segurando. Peço para ver. Finalmente ela me entrega uma folha de caderno onde escreveu: “Nascimentos 2008"[2].  Começo a ler. Logo no início encontro: “bureginho azul”. Curiosa, questiono: “D. Mocinha, já vi borreguinho de várias cores, mas azul eu não conheço. Existe?” Ela solta uma risada bem grande e responde: “não tem mesmo não.” Pergunto novamente: “de que cor então é o bichinho?” Ela responde: “ele é todo malhado assim de preto e branco, umas manchas pequenas.” Mais uma vez questiono: “por que a senhora escreveu então que a cor dele é azul?” Novamente ela ri e responde: “é porque eu não sabia escrever a cor dele, não sabia explicar, e então escrevi azul, que eu sei como é.
Se entendermos o diálogo enquanto pronúncia do mundo, como afirma Freire (1987), essa pronúncia não pode se restringir à fala, às opiniões e visões de mundo que são verbalizadas. O (a) alfabetizando (a) também tem o direito de poder pronunciar seu mundo através de sua escrita.
Sendo assim, a linguagem, não somente oral, mas também escrita, deve assumir um papel preponderante nos contextos de ensino e de aprendizagem, para que os (as) alunos (as) possam expressar seus pensamentos, suas palavras, seus mundos, para que se sintam sujeitos dessa prática social. Se o (a) aluno (a) pode dizer sua vida, deve também poder escrever a sua vida.
Compreende-se, então, a linguagem como uma prática social. Nesse processo, a linguagem não está “solta no ar”, ela está diretamente interligada à realidade, pois entre a leitura de mundo e a leitura da palavra há um ir e vir constante, e isso nos afirma o próprio Freire (1987).
 Segundo Fiori (1987, p.10): “talvez seja este o sentido mais exato da alfabetização: aprender a escrever a sua vida, como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se.”
Por que D. Mocinha deseja fazer um curso para fazer aquelas provazinhas?  Aquilo que escreve no seu dia a dia não é importante? Não revela que sabe, de fato, escrever? O que se deve ensinar a escrever? Deve-se buscar ampliar as possibilidades de usos e funções sociais da língua escrita para que nos processos de alfabetização de pessoas adultas, os (a) alfabetizandos (as) possam se constituir, através dos textos escritos que produzem, como sujeitos que buscam atribuir sentidos para suas vidas.
Como nos afirma Bakhtin (2003, p. 401): “o texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo.”
Que resposta responsável a educação pode dar a D. Mocinha e aos outros sujeitos desta pesquisa que se veem como protagonistas de uma história que os constitui, que os organiza e os fortalece na busca por seus direitos, o que inclui a demanda por educação de jovens e adultos no próprio assentamento?  
Mais uma vez, Fiori (op. cit, p. 18) nos ajuda a refletir: “a alfabetização, portanto, é toda a pedagogia: aprender a ler é aprender a dizer a sua palavra. E a sua palavra humana imita a palavra divina: é criadora.”
Se D. Mocinha pode ter um bureginho azul, o que nós, professoras e professores podemos aprender com ela? Por que ela nos descola do lugar onde colocamos a alfabetização de pessoas adultas? Por que nós, professoras e professores, não podemos pensar uma alfabetização que seja “um ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores, numa alfabetização em que o homem desenvolvesse a impaciência, a vivacidade, característica dos estados de procura, de invenção e de reivindicação”, como noz diz Paulo Freire (1999, p. 112)?
Convoquemos mais uma vez Manoel de Barros, presente na epígrafe deste texto, que nos provoca em sua Aula:
“Nosso Profe. de latim, Mestre Aristeu [...] Falou que estava cansado de genitivos dativos, ablativos e de outras desinências. Gostaria agora de escrever um livro. Usaria um idioma de larvas incendiadas. [...] Mestre Aristeu continuou: quisera uma linguagem que obedecesse a desordem das falas infantis do que as ordens gramaticais. Desfazer o normal há de ser uma norma. Pois eu quisera modificar nosso idioma com minhas particularidades. Eu queria só descobrir e não descrever. O imprevisto fosse mais atraente do que o dejá visto. [...] O desespero fosse mais atraente do que a esperança. O que eu não gosto é de uma palavra de tanque. Porque as palavras do tanque são estagnadas, estanques, desacostumadas. E podem até pegar mofo. Quisera um idioma de larvas incendiadas. Palavras que fossem de fontes e não de tanques.E um pouco exaltado o nosso profe. disse: Falo de poesia, meus   queridos alunos. Poesia é o mel das palavras! Eu sou um enxame! Epa!...[...]”
Esse é o nosso desafio: entender educação como resposta responsável como aquela em que “ser docente-educador não é ser fiel a rituais preestabelecidos, mas se guiar pela sensibilidade para o real, a vida real, sua e dos educandos e criar, inventar, transgredir em função de opções políticas, éticas” (ARROYO, 2011, p. 51/52). Uma educação em que bureginho azul seja reconhecido e valorizado como conhecimento, conhecimento que se produz na prática social, na experiência social que aquelas provazinhas não conseguem ver, ignoram.
Referências
ARROYO, Miguel G. Currículo, território em disputa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail (V. N. Voloshinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 4. ed. São Paulo: Hucitec. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira, 1988.
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a segunda infância. São Paulo: Ed. Planeta do Brasil, 2006.
FIORI, Ernani Maria. Prefácio. In: FREIRE. Paulo.  Pedagogia do Oprimido. 17. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987, p. 9-21.
FREIRE. Paulo.  Pedagogia do Oprimido. 17. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
_____.  Educação como prática da liberdade. 23. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

[1]  No texto “¿Qué es el lenguaje?, de 1930, de Voloshinov, encontramos: “Por  ideología entendemos todo el conjunto de los reflejos y de las interpretaciones de la realidad social y natural que suceden en el cerebro del hombre, fijados por médio de palabras, diseños, esquemas, y otras formas sígnicas.” V. N. Voloshinov, V. N. “¿Qué es el lenguaje? In: SILVESTRI, A. & BLANCK, G. Bajtín y Vigotski: la organización semiótica de la conciencia. Barcelona: Anthropos, 1993, p. 217-243.
[2] Vide na página 5, cópia da folha com as anotações de D. Mocinha sobre os nascimentos dos borreginhos.

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