quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Daniela Guimarães

A creche e a educação das crianças de 0 a 3 anos: responsividade e ética
Daniela Guimarães/UFRJ

Encontro Dialógico
EDUCAÇÃO COMO RESPOSTA RESPONSÁVEL
Este trabalho é fruto da tese de doutorado, concluída em 2008, na PUC-Rio, com o titulo “Relações entre bebês e adultos no berçário de uma creche pública na cidade do Rio de Janeiro: técnicas corporais, responsividade, cuidado”. A seguir, discorro sobre as relações entre aspectos teóricos da obra de Bakhtin e a pesquisa de campo do referido trabalho.
Desde a LDB de 1996, que estabelece a Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica, sendo oferecida nas modalidades creche ( para as crianças de 0 a 3 anos) e pré-escola (para as crianças de 4 a 5 anos), é uma demanda.a compreensão das especificidades educacionais das creches, especialmente do trabalho com os bebês.
Os modos de relação com os bebês e crianças pequenas são tradicionalmente marcados por um viés disciplinador, higienista e de controle. Assim, as crianças ocupam o lugar da falta, necessidade, desproteção e fragilidade. Isto se expressa em rotinas rígidas, práticas mecanizadas e no cuidado como conjunto de ações instrumentais e unilaterais – dos adultos em direção às crianças - dar banho, oferecer alimentação, fazer dormir, por exemplo. Além disso, o cotidiano é marcado pela ênfase na formação de hábitos e na modelação motora. Portanto, torna-se importante problematizar as formas de relação com as crianças pequenas e entre elas, tendo em vista abrir espaço para que se tornem visíveis de outras maneiras. Para tal, este trabalho dialoga com a produção de Mikhail Bakhtin, especialmente com o conceito de ato responsivo/responsividade, buscando neste caminho suporte para compreender as implicações dialógicas dos adultos com as crianças criança pequenas no contexto da creche.
A obra de Bakhtin localiza-se nos domínios da Arte, mas permite que possamos fazer articulações com a problemática da construção da subjetividade. A estética da criação verbal corresponde a uma estética do cotidiano. Quando se refere ao campo dos textos literários, abre-se para uma analogia com o mundo da vida. Nesta perspectiva, compreendemos os atos das crianças no plano da criação, no contato com os adultos e outras crianças.
Por ter como campo de pesquisa o discurso literário, Bakhtin (2003) focaliza prioritariamente o discurso verbal; mas em diversos momentos de seus textos, podemos perceber aberturas para a produção de sentido nas relações mediadas pelo corpo, a emoção, a posição axiológica de cada um, através do que podemos apontar como o primado da entonação. De acordo com o autor, "a expressão das relações axiológicas-emocionais pode não ser de índole explícito-verbal mas, por assim dizer, de índole implícita na entonação" (Bakhtin, 2003, p. 406).
Num dos seus primeiros textos, Bakhtin já afirmava que a linguagem passa a servir ao pensamento abstrato somente na atualidade, pois, historicamente, desenvolveu-se ligada ao pensamento participativo e ao ato realizado. A expressão do interior de um ato realizado requer a plenitude da palavra e isso significa considerar "seu aspecto de conteúdo (a palavra como conceito), tanto quanto seu aspecto palpável- expressivo (a palavra como imagem), e seu aspecto emocional-volitivo (a entonação da palavra) em sua unidade" (Bakhtin, 1993, p.49). Hoje, quando nos relacionamos com a criança pequena que começa a falar, andar e movimentar-se expressivamente de forma potente no campo social, torna-se fundamental considerar a palavra e construções de sentido emergentes em todas essas três facetas (conteúdo, imagem/aspecto palpável, emoção). Bakhtin (idem, p.50) afirma que aquilo que é experimentado no campo das ações é "algo dado" e ao mesmo tempo "algo-ainda-a-ser-determinado", na expressão social. Todo objeto/palavra carrega um significado próprio ao seu uso mais constante, mas reinventa-se ao ser apropriado pelo sujeito da palavra, sujeito da ação em cada momento.
É no processo de negociação e de diálogo, que se mostram diferentes posições através das quais adultos e crianças constroem sentidos acerca das coisas, acerca do mundo. Nesta trilha, o conceito de atitude responsiva, ou responsividade contribui para refletirmos sobre o comprometimento, responsabilidade e resposta do adulto na relação com a criança. Para Bakhtin (2003), a atitude responsiva é um critério de conclusibilidade do enunciado. Ou seja, o enunciado revela sua força, inteireza e expressividade quando é possível responder a ele, quando convoca a uma resposta.  Podemos dizer que isso se expõe em enunciados verbais e em composições não-verbais. Para Bakhtin (2003), “aprender a falar significa aprender a construir enunciados” (p.283) e isso envolve mergulhar nos gêneros discursivos correntes na língua, responder e ser respondido, construir um terreno de sentidos partilhados por conflitos e negociações.
É um desafio hoje desviar da concepção dominante de que a criança pouco sabe e o adulto transmite, completa, provê a criança. Como considerar os dois lugares de autoridade (da criança e do adulto), abrindo espaço à tradução, passagem do sentido de um para o do outro, sem diluição das fronteiras, sem um lado se anular?
Muitas vezes, na pesquisa, evidenciava-se que a ação do adulto no contato com a criança era de intervenção, mudando o significado que ela estava dando a sua experiência, atuando sobre a sua ação, seja movendo-a do lugar onde estava, chamando sua atenção com as palavras, dando nomes ao que fazia, impedindo o curso do movimento, e de tantas outras formas.
Mergulhados nas interações que lhes dão contorno, os bebês criam sentidos expressivos. Como as formas gestuais e corporais das crianças vão sendo significadas nas interações que participam? Como, nestas interações, iniciam contatos? O gesto de apontar, o olhar, os objetos ofertados, os braços que se levantam em direção a pessoas e objetos, as expressões faciais são modos não-verbais que vão sendo vividos socialmente. Geralmente, são interpretados com palavras, limitando-se a um sentido possível (“esse choro é sono”; “está assim manhosa porque ficou no colo no final de semana”), mas não se esgotam nas palavras possíveis de compreendê-los. É possível perguntar sempre por outras possibilidades de sentido e esta é uma direção importante na educação das crianças pequenas.
Para Bakhtin (2003), ouvir, ou melhor, compreender, envolve uma tomada de posição. O autor afirma que "todo enunciado é um elo numa cadeia discursiva" (idem, p.289). A produção de linguagem da criança apresenta-se como continuidade de algo que brotou antes, provocando ressonância nas produções posteriores, conectada no coletivo. É muito comum, no campo da prática educacional e da pesquisa, a referência às primeiras palavras das crianças como "palavras soltas"; como "ainda não constroem frases", indicando uma posição ideal posterior, da frase complexa, planejadora, materialização do pensamento. No entanto, as palavras isoladas, orações pequenas construídas pela criança que começa a falar ou ações corporais sugerem as questões: como se engajam no elo da cadeia discursiva que compõem? Ao quê respondem e em que direção apontam (ou para onde/quem se endereçam)? Como são respondidos?
De acordo com Faraco (2003), para Bakhtin, relações dialógicas, constituídas nas interações face a face, são relações de sentido que se estabelecem entre enunciados referenciados no todo da interação verbal (não apenas em cada evento circunscrito). O contexto, a história, as intenções, a entonação que envolvem as  interações são elementos fundamentais na construção do diálogo, de fato, onde a criança é convidada a colocar-se e responder.
Assim, a possibilidade da criação da linguagem e subjetividade não se dá no ponto de partida, na primeira manifestação de cada palavra ou expressão, mas acontece no processo de experiência com o corpo, a palavra e também com os objetos. Bakhtin (2003) afirma que à princípio a criança  assimila a palavra do outro, inicialmente as palavras da mãe. Em seguida, essas "palavras alheias" são reelaboradas em "minhas alheias palavras", e, por fim, em minhas palavras, com a perda das aspas, evidenciando a possibilidade criadora. O processo de criação da e na linguagem relaciona-se com a perda das aspas, ou seja, o movimento de tornar próprio o que nasce "colado" nas referências do outro, o que acontece no campo da experiência, da realidade concreta e da vida.
O entendimento da constituição do eu como fruto das relações, a relevância de uma atitude responsiva (por parte de crianças e adultos em interação), a compreensão do diálogo como formação de elos em uma cadeia discursiva maior do que cada interação face a face são contribuições bakhtinianas importantes na focalização das ações das crianças no cotidiano. O posicionamento do adulto no contato com a posição que ocupa a criança implica numa atitude ética, numa reflexão sobre modos possíveis de ação, um jeito de ser, um modo de cuidar, que envolve não só intervir ou iniciar ações na direção das crianças, mas também agir sobre si, refletir sobre o sentido do seu próprio olhar e emoção, tendo em vista observar os bebês e dar sustentação às suas experiências. Neste percurso, agir com os bebês, na relação com eles, pode abrir espaço para encaminhá-las, oferecer modelos/técnicas ou observar e acompanhar suas ações e iniciativas.
Nesta pesquisa, o foco nos bebês e no que eles iniciam despertou a atenção para o olhar como apoio da experiência com o mundo e com eles mesmos. Também, no registro dos movimentos expressivos e relacionais destacou-se a oferta de objetos e o apontar, como convites à relação e ao diálogo; e, por fim a imitação como forma de expandir-se no contato com o outro. Estes atos das crianças convocam o adulto a responder e, neste sentido, apontam possibilidades da educação no contexto do berçário.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BAKHTIN, Mikhail. Toward a Philosophy of the Act. Austin: University of Texas Press, 1993.[1]
____________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 1a  edição.
____________. Estética da criação verbal. (tradução: Paulo Bezerra). São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e Diálogo: as idéias linguísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar, 2003.


[1]Aqui, usamos uma tradução feita por Carlos Alberto Faraco para uso didático e acadêmico.

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