quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Maria Edith Romano Siems

INCLUSÃO ESCOLAR DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: DA ELABORAÇÃO DISCURSIVA AO COTIDIANO PRATICADO
 Maria Edith Romano Siems

A discussão relativa ao direito de crianças e jovens com deficiência serem matriculados em classes comuns de escolas de ensino regular, iniciada em meados do século XX, como política integracionista, veio se intensificando nos anos 1990 em vários países do mundo, já com uma perspectiva que deslocava do sujeito para a sociedade a responsabilidade de criar condições para que todos pudessem ter acesso aos bens sociais coletivos, com destaque aqui, para o conhecimento socialmente acumulado.
 De uma trajetória discursiva que assumia como desejável e necessário o atendimento desses indivíduos em espaços exclusivos para pessoas com deficiências, que ofertariam serviços pretensamente especializados, predominante até a década de 1970, a um momento em que se admite e, em alguns casos, se recomenda a presença, a participação e o atendimento dos indivíduos nos espaços comuns a todos, que se fortalece no final dos anos 1990, uma longa trajetória se construiu.
O discurso predominantemente favorável à chamada Inclusão, fortalece-se e se dissemina em vários campos da vida social, impulsionado pelos movimentos sociais de pessoas com deficiência, ou de seus grupos de apoio que conquistam, a partir de sua integração social, voz e representatividade para a discussão de normativas legais pautados no princípio do “nada sobre nós, sem nós”. Neste sentido, Tratados, Acordos e Convenções Internacionais carregam a lógica de incentivo à construção de serviços e espaços sociais que considerem as necessidades e peculiaridades de diferentes grupos de sujeitos, incluídos aí aqueles que tenham especificidades de natureza física ou biológica que comprometam determinados campos de sua funcionalidade corporal.
No Brasil, país signatário dos mais relevantes documentos internacionais da área, proliferam os decretos, resoluções, portarias e todo um arcabouço legal no sentido de estabelecer critérios, regras e padrões que possibilitem às pessoas com deficiência condições de acessibilidade aos serviços e espaços coletivos nos campos da saúde, assistência social, trabalho e educação.
As pessoas com deficiência, tradicionalmente consideradas como indivíduos a serem atendidos no campo da saúde ou da assistência social, passam a ser nominados como sujeitos da educação, presentes na legislação educacional, em 1971. Mesmo que ainda reduzida e timidamente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5692 de 1971, apresenta recomendações no sentido de que as pessoas excepcionais[1] deveriam, “quando possível,” ser integradas aos sistemas de educação regular. Trata-se ainda de uma referência bastante dúbia, aberta a interpretações variadas, mas que traz, para o universo normativo da Educação, a responsabilidade de ampliar o olhar sobre estes indivíduos.
Em 1996, a então “nova LDB”, já incorporando os princípios apontados em Convenções Internacionais como a de Salamanca (1994), regulamentando parâmetros estabelecidos na Constituição Federal Brasileira de 1988, e em leis como a Lei nº 7853 de 1989, que estabelece direitos das pessoas com deficiência nos campos da educação, saúde, formação profissional e do trabalho, recursos humanos e edificações, traz a recomendação de que os educandos portadores de necessidades especiais, sejam atendidas preferencialmente na rede regular de ensino. Este preferencialmente, embora ainda traga em seu bojo espaço para interpretações variáveis e seja menos incisivo que a lei 7853 de 1989 que, inclusive penaliza criminalmente aqueles que recusarem matrícula a pessoas portadoras de deficiência, “por motivos derivados da deficiência”, traz em si a incorporação definitiva destes indivíduos como sujeitos de direitos também no campo da Educação e não mais assunto específico da saúde ou assistência social.
Historicamente as práticas de atendimento às pessoas com deficiência, se deram a partir da perspectiva médico-biológica, transitando entre tratamentos psicológicos, fisioterapeuticos, fonoaudiológicos, ou de terapia ocupacional, com uma expansão, no máximo, para o campo da assistência social aos indivíduos  e às  suas famílias. Em alguns casos estes atendimentos, em especial os do campo da fisioterapia e da terapia ocupacional, foram tomados como sinônimos de prática educacional, confundindo-se trabalho clinico com educação formal. Observando-se, no entanto, a rotina de atividades realizadas nas instituições tidas como especializadas em Educação Especial, vê-se uma desvinculação absoluta do campo da educação escolar, em especial se considerarmos a escola como espaço prioritário de transmissão do conhecimento socialmente acumulado pelos grupos humanos em suas diferentes dimensões.
A inserção de pessoas com deficiência em escolas regulares, se intensifica nas ultimas duas décadas. Especialmente fortalecida pelo amparo legal construído com a força dos movimentos de defesa das pessoas com deficiência, encontra escolas e professores que se colocam na posição de “não estarem preparados” para educar pessoas que contrariam os padrões de normalidade e homogeneidade considerados adequados a um desenvolvimento categorizado como “normal”. Argumenta-se que, no espaço do ensino regular, os alunos com deficiência “não estão aprendendo”, nem recebendo os apoios necessários ao seu pleno desenvolvimento e aprendizagem.
Será este “não aprender” uma realidade diversa do que se efetivava no contexto das instituições especializadas? Poucos são os estudos existentes neste sentido, mas há indicios suficientes para que se questione a validade das atividades oferecidas pelas instituições especializadas enquanto atividades escolares, embora seja relevante valorizar o desenvolvimento de atividades clínicas e terapêuticas nestes espaços.
Questionando-se os profissionais da educação, quanto à forma como concebem a validade ou não de que se faça a inclusão de pessoas com deficiência nos espaço sociais comuns a todos, dificilmente serão encontrados argumentos suficientemente intensos no sentido de condenar a inclusão de alunos com deficiência em espaços de educação formal. Os discursos em prol da defesa dos direitos educacionais das pessoas com deficiência, hegemônicos na mídia, no marketing e nas falas dos educadores se vêem confrontados, no entanto, com um  cotidiano de práticas pautados na “inclusão excludente” que traz os indivíduos para o interior das salas escolares, mas em que não lhe são asseguradas condições de acesso ao conhecimento e aquisição de habilidades adequadas para que possam permanecer e prosseguir em uma escalada crescente de aquisição dos conteúdos acadêmicos. Em suma, aceita-se a matricula, mas não se efetiva o compromisso de estabelecer um processo pedagógico que leve à real aquisição de conhecimentos e habilidades.
Daí se depreende que, nem toda a teorização acerca da validade filosófica e da relevância social e humana de que se realize a inclusão, tem sido suficiente para transmutá-la em prática. Como salienta Bakhtin (1993, p. 41) 
 Que uma proposição seja válida em si e que eu tenha a habilidade psicológica de compreendê-la não é suficiente, nem mesmo para o próprio fato da minha  concordância real ex-catedra com a validade da proposição – como meu ato realizado. E que é necessário acrescentar é alguma coisa saindo de dentro de mim mesmo; a saber, a atitude moral de dever-ser da minha consciência com relação a proposição teoricamente válida em si. É precisamente essa atitude moral da consciência que a ética material desconhece, como se ela pulasse por cima do problema oculto aqui sem vê-lo. Nenhuma proposição  teórica pode fundar imediatamente um ato realizado, nem mesmo um ato pensado, em sua real execução. De fato, o pensamento teórico não tem de conhecer nenhuma norma, seja qual for.
 
Trazer para o campo discursivo a lógica de que todos os indivíduos tem o direito natural a serem parte de todos os espaços sociais é, sem sombra de dúvida, uma caminhada relevante. Não se trata mais de um momento histórico em que pais de crianças com deficiência deverão judicialmente requerer o direito à educação de seus filhos, sem amparo legal. Este acesso já se encontra legalmente estabelecido, em parâmetros legais que pouca abertura deixam ao questionamento. Também a construção discursiva ética quanto à igualdade de todos dissemina-se em vários meios. É preciso, no entanto que possamos trazer esta construção teórica do campo do discurso verbal para o campo do discurso enquanto prática social. Na ótica bakhtiniana, (1993, p. 30)
Uma teoria precisa entrar em comunhão não com construções teóricas e vida imaginada, mas com o evento realmente existente do ser moral – com a razão prática, e isso é responsavelmente completado por quem quer que conheça, na medida em que ele aceita a responsabilidade por cada ato integral de sua cognição, isto é, na medida em que o ato de cognição esteja incluído como minha ação, com todo o seu conteúdo, na unidade da minha responsabilidade, na qual e pela qual eu realmente vivo – executo ações.

Mas, como elaborarmos essa transposição? Como trazermos para  o conjunto dos profissionais atuantes nas instituições educacionais a responsabilidade que temos de permitir a todos o nascimento social, a possibilidade de “entrar na história”, que extrapola o nascimento fisico dos sujeitos (Bakhtin, 2004).
Entendemos aqui que, “a motivação consciente que o homem tem de seus atos realmente não serve, de maneira nenhuma, como explicação científica de seu comportamento” (Bakhtin, 2004, p. 85). No entanto, é fundamental que se busquem mecanismos que nos possibilitem transpor do plano discursivo verbal para o ato social responsavelmente praticado, a normativa da educação de pessoas com deficiência nos espaços educacionais comuns a todo sujeito social. Temos ainda o desafio de trazer do campo discurso enquanto verbo, para o discurso enquanto ato, a participação de todos em todos os espaços sociais.

Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. O Freudismo. São Paulo: Perspectiva, 2004. 
BAKHTIN, Mikhail. Toward a Philosophy or the Act. Austin: University of texas Press, 1993. ( tradução para uso didático e acadêmico de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza.
BRASIL. Ministério da Educação. Direito à Educação: subsídios para a Gestão dos Sistemas Educionais. Orientações gerais e marcos legais. Brasília: Mec/SEESPE, 2004.


[1]Tomaremos aqui a denominação originalmente utilizada como referência à pessoas com deficiência à época da promulgação de cada instrumento legal, acompanhando sua progressão histórica: excepcionais na Lei 5692 de 1971, pessoas portadoras de deficiência na Lei 7853 de 1989 e educandos portadores de necessidades especiais na LDB 9394 de 1996

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