quinta-feira, 6 de outubro de 2011

José Guilherme Franco Gonzaga

José Guilherme Franco Gonzaga
Orientador Pedagógico da Rede Municipal de Barra Mansa
Doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense – UFF
Membro da equipe da pesquisa “Interculturalidade–descolonizando o eurocentrismo da escola – um outro mundo é possível”- CNPq

O conhecimento (...) exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica em invenção e em reinvenção. Reclama reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o “como” de seu conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato. (Paulo Freire)

O som estridente da campainha que anuncia o fim de mais um dia letivo é seguido de vários outros sons, o arrastar de carteiras, a gritaria, ... A correria das crianças em polvorosa pela saída da escola, contrasta com a expressão de preocupação da professora que aos poucos vai colocando na bolsa alguns materiais que estavam sobre sua mesa. A testa franzida é, talvez, a maior expressão de sua preocupação com um grupo de alunos e alunas que, por mais que ela se esforce em ensinar, não aprende. O que aprendeu no curso de formação de professoras, não tem sido suficiente, o curso de pedagogia oferece pistas importantes, mas aqueles meninos não aprendem! O sentimento de não saber o que fazer, pressiona por uma desistência, mas e aqueles alunos? E sua responsabilidade?

A inquietação diante da possibilidade de seu fracasso mobiliza a professora para buscar novas práticas. No corredor encontra a professora da sala ao lado e, quase como um desabafo, relata suas ansiedades, tristezas, preocupações e seu sentimento de vontade de desistir... A conversa não é muito animadora, sua colega, também, anda descontente com a aprendizagem de seus alunos e alunas. Os não saberes, transformam-se em dúvidas, questões, possibilidades. É assim que nos momentos de encontro na escola trajetos entre a casa e a escola, sempre conversam, trocam experiências e juntas buscam soluções para os problemas que enfrentam.
Muitas professoras ainda desconhecem Bakhtin, mas conhecem sua responsabilidade única. São sabedoras de seu “não-álibi”, não por culpa, mas por responsabilidade com o sucesso escolar d@s educand@s e com sua própria resposta ao seu trabalho. Sabem que estão unidas em sentimentos e ações com seus alunos(as). O sucesso de um está interligado ao do outro. Ainda que conhecedoras dos problemas estruturais do sistema escolar, recusam o álibi, pois é à sua singularidade que caberá a “assinatura” daquela ação. Essa tensão não as imobilizam, ao contrário as movimentam na busca de novas possibilidades.
A essas professoras, que inquietas se colocam como problemas a própria prática, temos chamado de professoraspesquisadoras. Professoras que procuram “praticar o ensino-pesquisa-que-procura”, na tentativa de “superar tanto o ensino feito sem pesquisa quanto uma pesquisa feita sem ensino”. Não contentes com as possibilidades de fracassos buscam em livros, cursos de especializações, conversas com colegas e alun@s outras formas de fazer para que consigam contribuir para que todos e todas possam aprender.
Quando afirmamos a possibilidade da professorapesquidora não nos referimos a pesquisa no sentido estrito acadêmico, de um-a profissional que, em geral, “pesquisa práticas dos outros”. Não se trata de dar mais uma função a professora. Não! Ao falarmos de professorapesquisadora estamos falando de alguém que se coloca como problema sua própria prática, que pesquisa sua própria ação e que, na relação eu-sujeito que pesquisa o resultado de sua prática, outro-sujeito, dois sujeitos que, em interação, vivem o processo de ensinoaprendizagem.
O conhecimento é uma ciranda... começa não se sabe como, menos ainda como termina. Com Marx, aprendemos a impossibilidade de dissociação entre o fazer e o pensar, entre ação e reflexão, entre prática e teoria. É provável que outros possam dizer que Marx aprendeu com Hegel e este com Aristóteles, que teria aprendido com outros. O conhecimento jamais é inicial, ainda que alguns, em alguns momentos possam fazer sínteses e darem acabamento a algumas idéias, assumindo assim sua autoria. Aqui, particularmente nos interessa que foi com Marx que aprendemos a noção de práxis, como ação em que o ser humano transformando o meio, transforma-se a si próprio, pensa enquanto pratica e portanto ao agir se educa. Portanto, como afirma na terceira tese sobre Feuerbach “o educador ele próprio necessita ser educado”.
Gramsci aprofunda Marx, afirmando que todos os seres humanos são filósofos, porque refletem sobre o mundo seja na linguagem, na religião, na política. A partir de Marx e Gramsci temos pensado as práticas profissionais das professoras, em especial das escolas públicas que atendem às classes populares, portanto com menos acesso à cultura escolar. Somos defensores de que as escolas que hoje atendem essas crianças têm em seu cotidiano marcas específicas dos sujeitos que ali se relacionam. No curso de pós-graduação lato-sensu alfabetização das classes populares onde tenho nos últimos anos, trabalhado em colaboração com a Professora Regina Leite Garcia na disciplina Professora-pesquisadora, temos tido a oportunidade de conversar com essas professoras. A base teórica inicial da disciplina já foi apontada acima, mas ao acreditar que a prática é a teoria em movimento, fazemos destas concepções, apenas pré-textos para nos movimentarmos pelo terreno movediço das narrativas trazidas pelas próprias alunas-professoras sobre as inquietações de suas próprias experiências.
Regina, eu e as professoras-alunas do curso temos nos desafiado a transformar o texto que vai sendo tecido nos encontros da disciplina em uma nova teoria que possa dar conta da pesquisa das práticas narradas. Não desprezamos a elaboração teórica. Ao contrário, acreditamos que são as teorias que junt@s vamos compartilhando e cultivando nesses encontros que podem melhor nos ajudar a nos re-colocar as questões. Assim não as vemos como um ponto de partida, nem de chegada, mas com um complexo processo que possa melhor nos ajuda a desconfiar que outras práticas são possíveis.
O que afirmamos é que no texto que vai sendo tecido a partir das diferentes narrativas, há teorias, concepções filosóficas, políticas e epistemológicas. O que defendemos é que ao expor suas questões, as alunas-professoras que se tornam pesquisadoras, se firmam como autoras, produtoras de conhecimentos e teorias que dialogam com outros autores convidados para nossa roda.  E vamos, nesse movimento, ressignificando e atualizando coletivamente as teorias.
É constante, por exemplo, professoras narrarem que não viam questões que agora lhes parecem óbvia, o que também acontece conosco, professores do curso. É nessas pontas das redes de conversas que podemos chamar entender e entendo-a, melhor nos entendermos, a noção emprestada do Von Foerster, sobre nossa cegueira, em relação ao que não conseguimos ver. Somos cegos em relação à nossa própria cegueira. De forma que não vemos tudo o que nos rodeia, mas apenas aquilo que conhecemos e conseguimos explicar. E muitas vezes para que caiba na nossa explicação o “real” precisa ser reduzido. Então às vezes vejo muito mais do que posso explicar, mas só posso pronunciar o explicável. Em outras palavras, “real” é reduzido pelo limite do discurso, já que nem tudo que vejo posso traduzir em palavra. Ao assumirmos essa perspectiva de questionamentos da nossas práticas cotidianas podemos nos tornar mais sensíveis, mais atentas as sutilezas cotidianas, aos sinais d@s alunos, outr@s professor@s, que nos ajudem a reposicionar nossas ações.
Outros autores e até personagens, como o jabuti, de Guimarães Rosa nos ajudam a compor o entendimento da Professora-pesquisadora, afinal foi em uma de suas falas que o Jabuti nos ajudou a sistematizar a ideia de que “mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. Talvez Guimarães Rosa, antes de fazer-se falar através do Jabuti já tivesse lido Paulo Freire falar que não há docência-discência sem pesquisa. Ou ainda, quem sabe, Freire leu Rosa, ou ambos leram no mundo das coisas sem voz, mergulhados neste heteroglotico do qual Bakthim nos fala.

Mas o que mais tem nos chamado atenção nessa reflexão é o quanto podemos aprender uns com os outros em um ambiente marcado pela conversa responsiva e responsável. Diferenciamos aqui conversa como uma forma de diálogo responsável, porque uma certa informalidade que nos permite sermos mais coerente e dizermos o que de fato pensamos, sem muita preocupação de construir nosso argumento a partir do que é pressuposto que o outro espere que enunciemos. Ainda que saibamos com Bakhtin que não há enunciados soltos e que toda a minha fala, ao estar contextualizada precipita a fala do outro, em minha própria fala, ou seja sei o que o outro espera ouvir de mim e minha fala é por esse contexto influenciada. Ainda assim, acreditamos que as conversas informais possuem um  eco mais responsável.
Depois de aprendermos com Von Foerster que só vemos o que conhecemos e que somos cegos para nossas próprias cegueiras, aprendemos com Bakhtin que no encontro com o outro podemos ampliar nossa visão. O que não vejo em minha ação, pode ser instigado pela consciência do outro como excedente de minha visão. Essa tem sido nossa aposta. As conversas têm possibilitado às Professoras com que trabalhamos um olhar para suas práticas em posição exotópica.
A noção bakhtiniana de exotopia é a possibilidade de ver-se de fora de si, a partir da visão de outro. O outro tem um excedente de visão em relação a mim. Apenas um outro pode dar acabamento a mim, somente ele pode ter uma visão sobre mim em relação aquilo que não posso ver, pois nunca posso ver-me inteiramente. Minha cegueira em relação a mim mesmo, ou minha restrição de ver-me em ação pelo campo de visão que tenho e é limitado, só pode ser mais amplo no diálogo com o outro, que ao me responder responsavelmente sobre o que de mim vê, ajuda-me a me ver.
Defendo aqui a tese de que a noção de Exotopia nos ajuda a entender como a professorapesquisadora, ao transcriar sua ação, a partir das conversas com alunos(as) e outras professoras, ‘vendo-se’ por esses outros ‘olhares’ sobre si, mas de outros lugares, permitindo ver algo de si, ou das cenas cotidianas dos quais participa, que sozinha não conseguia ver, é o que tem permitido, a reflexão-ação de sua prática, completando o ciclo dialógico práticareflexãoprática que pode permitir mudanças em sua própria ação responsável.

O diálogo responsável com o outro ajuda a completar-me. Possibilitando, à professora, a transcriação de sua prática, colocando-se numa posição exotópica, permite ver-se de fora, ao mesmo tempo como autora e heroína daquela ação, se deslocando para um ponto de visão espaço-temporal em perspectiva, no qual pode refletir-se. Mesmo que minha fala seja uma tentativa de resposta ao outro, a riqueza da conversa está na imprevisibilidade, porque de fato, não sei o que o outro vê ou pensa, por que não estou vendo e ouvindo do lugar dele, por isso aprendo com ele ao ouvi-lo, por isso o outro é sempre surpreendente, não importa o quanto julguemos conhecê-lo e prevê-lo.
Ao compartilhar saberes e buscas na procura de uma ação perfeita, a professorapesquisadora compreende que não há ensino sem aprendizagem e que o ensinoaprendizagem é ato coletivo e compartilhado, fruto de uma reflexão crítica com o mundo. Não aceitando passivamente a função de mera reprodutora de uma teoria pensada por outros que, mesmo na melhor das intenções, aportam nas escolas prometendo a solução de problemas e que deixam, muitas vezes, apenas a marca de mais uma frustração.
Não acreditamos, portanto que a professora, possa se fazer professorapesquisadora sem o contato com outro, sem a alteridade, que lhe possibilita um exercício de exotopia, de autoria recíproca e de responsividade – responsabilidade de sua ação. Ao pensarmos, portanto em professoraspesquisadoras como plural, pensamos em uma resposta responsável e participante, que se posiciona e se responsabiliza pela sua existência com o mundo.


Bibliografia
Tantas vozes falam em minha voz que acho impossível fazer uma Bibliografia sem trair-me, por isso, deixo aqui apenas algumas obras com as quais dialoguei mais diretamente na elaboração dessa proposição de conversa:

BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
___________ Para uma filosofa do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza de Toward a Philosophy of the Act. Austin: University of Texas Press, 1993.
ESTEBAN, Maria Teresa; ZACCUR, Edwiges. Professora-pesquisadora: uma práxis em construção. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
FREIRE, Paulo Extensão ou comunicação? S. Paulo: Paz e Terra, 1977
GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
MARX, Karl e ENGELS, F. A ideologia alemã: Teses sobre Feuerbach. SP: Moraes,
1984.
FOERSTER, H. Von Visão e conhecimento: disfunções de segunda ordem. In: SCHNITMAN, D. F. (org) Novos paradgmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

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