quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Rita de Cássia Reis, José Guilherme da Silva Lopes

Educação química como resposta responsável ao ensino fundamental de ciências.
Rita de Cássia Reis*1,
José Guilherme da Silva Lopes1
1- Programa de Pós-Graduação em Química, Dep. Química, Universidade Federal de Juiz de Fora – MG.
*ritaeduquim@hotmail.com

O ensino de ciências praticado.
            Pensar em um ensino contextualizado que esteja inserido na realidade social do aluno e com o qual ele possa se identificar tem sido umas das preocupações de diversos pesquisadores da área educacional. Com relação ao ensino de ciências visto e praticado no ensino fundamental não tem sido diferente. Quando nos voltamos para a abordagem dada ao currículo de ciências deparamos com a visão interdisciplinar apontada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN’s (1998 a, 1998b) para este nível de ensino, no mesmo deveriam ser contemplados conceitos das áreas de química, física, biologia e geociências. Porém, o que observamos é uma abordagem disciplinar em consequência da opção por parte das universidades, por licenciaturas voltadas para as áreas específicas em detrimento da formação para área de ciências como aponta Oliveira (2003). O ensino dos conceitos químicos presentes no ensino fundamental se limita, na maioria dos casos, em uma abordagem dada no último ano do ensino fundamental que não leva em consideração tudo o que foi estudado até aquele momento fazendo assim pouco ou nenhum sentido para o aluno.
            Quando pensamos no ensino de química no ensino fundamental de ciências percebemos que:
Não são recentes as preocupações em relação à ineficiência da formação em química ao longo do ensino fundamental. Em geral, os professores de ciências tem formação deficiente em química, por isso é necessário intensificar o debate e a relação em torno desta problemática para que a química – tão presente na vivência cotidiana – possa ser mais contemplada na formação básica dos alunos, trazendo maior contribuição para a melhoria na qualidade de vida. (ZANON e PALHARINI, 1995, p.15)

O que se vê em termos de pesquisa, que envolvem o professor de ciências e o currículo de química no nível escolar discutido acima, é ainda incipiente. O que nos leva a constatar que o conhecimento químico no ensino fundamental, ciclo II, se restringe a algumas experiências e pequenos textos nos livros didáticos da série em questão. Como consequência desse quadro, cria-se um círculo vicioso, no qual o professor, muitas vezes, por não possuir uma formação que lhe proporcione um olhar amplo sobre as diferentes formas de se abordar um conteúdo, e por comodidade acaba se apoiando no livro didático. Para reafirmar esta ideia temos Lima e Vasconcelos (2006, p.397), nos dizendo que “o professor de ciências enfrenta uma série de desafios para superar limitações metodológicas e conceituais de formação em seu cotidiano escolar. (...) eles usam o livro didático como o recurso mais frequente”. Os autores ainda afirmam que em pesquisa realizada por eles com professores do ensino fundamental da rede municipal de Recife apontam como uns dos conceitos mais difíceis de ensinar os relativos à química e estes mesmos conceitos são apontados como sendo os que os alunos sentem mais curiosidade em aprender.
Ensinar química neste nível escolar não é antecipar os conteúdos que serão abordados no ensino médio, promover uma memorização de nomes e fórmulas, ou ensinar a classificar substâncias e reações como se isso fosse o suficiente para se afirmar que estudou química, proceder dessa forma é apenas trabalhar a química dos sinais identificáveis e passíveis de memorização, ou seja, uma ciência fora do cotidiano. Ao contrário, a química no ensino fundamental deveria ser tratada como uma área que dialoga com as demais para proporcionar ao aluno a oportunidade de relacionar a teoria com os fatos vivenciados no cotidiano, e até mesmo criando modelos explicativos.  De acordo com Lima e Silva, (2007, p. 97):
O estudo da Química no Ensino Fundamental supõe um diálogo amplo e interdisciplinar com a Biologia e com a Física. Isso, por sua vez, não implica perder de vista a sua especificidade. Faz-se necessário reduzir o número de conceitos e conteúdos de Química que costumam ser apresentados no Ensino Fundamental para investir na compreensão de ideias-chave e desenvolver as bases do pensamento químico, seja para estudos posteriores, seja para interpretar os processos químicos que permeiam a vida contemporânea.
           
As implicações dessa maneira de ver o ensino de ciências discutidas pelas autoras citadas podem ser notadas nas interações observadas dentro da sala de aula, através da forma como esse currículo foi proposto e será trabalhado. A maneira como o professor lida com os questionamentos dos alunos, o tipo de linguagem utilizada por esses sujeitos, entre outros aspectos irão determinar qual o discurso predominante e a forma de se conceber o conhecimento.

O discurso em sala de aula.
Quando pensamos na prática escolar nos remetemos a duas ações que a compõe: a prática de ensinar e a prática de aprender. Segundo Freitas (2010, p.66):
Alunos e professores participam de uma construção partilhada do saber. Assim, o conhecimento não se restringe a uma construção individual, mas sim – realizando-se no coletivo – como uma construção social. Na sala de aula não deve haver lugar para o ensinar e o aprender de forma isolada. Toda ênfase deve ser colocada no ensinar/aprender como um processo único do qual participam igualmente professores e alunos. Na sala de aula o professor é aquele que, detendo mais experiência, pode funcionar intervindo e mediando a relação do aluno com o conhecimento. (Grifo da autora)

Assim as práticas de ensinar e aprender acabam gerando um discurso próprio marcado pela esfera social a qual pertence e o contexto histórico em que foi criado. Para Faraco (2009, p.21) “todo o dizer, por estar imbricado com a práxis humana (social e histórica), está também saturado dos valores que emergem dessa práxis”. Dessa forma, podemos afirmar que a escola e em especial a sala de aula sendo uma microesfera sócio-histórica possuirá um discurso que lhe é próprio, característico dos entes que a compõe e das relações que se estabelecem entre eles.  Entendemos como discurso todo e qualquer processo de comunicação que se estabelece entre o eu e o outro, isso quer dizer, que o discurso vai muito além do diálogo face a face. O discurso está nas relações de poder, nos gestos utilizados para se comunicar com o mundo a sua volta, na leitura do livro didático, e até mesmo na elaboração e execução de uma prova. Pois, não se comunica para ninguém, há sempre a atitude responsiva de um outro, segundo Fiorin (2008, p. 19) “todo discurso é inevitavelmente ocupado, atravessado, pelo discurso alheio”.
O professor ao tentar introduzir um assunto deve estar atento ao discurso dos alunos no inicio da exposição para que possa fazer uma comparação ao término, a fim de perceber quão real foi a aprendizagem. Através da palavra os alunos conseguem expressar seu nível de compreensão do assunto estudado, qual a importância e impacto que este novo conhecimento gera em sua vida pessoal, por meio dela eles podem transitar entre o conceito espontâneo e o científico. Para Bakhtin (1997, p.41):
As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais.

Ao analisarmos as interações dialógicas percebemos no discurso dos agentes da fala a evolução no uso de palavras com significados ideológicos cada vez mais elaborados. Assim para garantirmos um ensino interdisciplinar que contemple o conhecimento químico no ensino fundamental devemos atentar para como os conceitos de química emergem e são discutidos no plano social da sala de aula. Uma comunidade escolar, e principalmente o coletivo da sala de aula está a todo instante interagindo para a compreensão e estruturação de signos que lhe são próprios dentro de cada disciplina, aqui consideramos como signo toda forma de linguagem que para Bakhtin (1997, p.44) “(...) resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação”, esses signos são reflexíveis e refratam a realidade dos indivíduos do meio no qual circulam.
Para Bakhtin (1997, p.95) “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida”. Na sala de aula a linguagem científica estudada muitas vezes se configura como uma linguagem estrangeira com a qual o aluno deve encontrar na sua linguagem usual uma equivalente ou que remeta ao fenômeno vivido cotidianamente. Se os alunos não se identificarem com o discurso químico (e científico de forma geral) veiculado pelo professor certamente aquele não apresentará nenhum sentido. Com isso a química veiculada neste nível não passará de sinais a serem memorizados, não haverá a construção de signos exteriores através do discurso entre os entes da sala de aula que posteriormente passariam a fazer parte dos signos interiores de cada aluno.  Bakhtin (1997, p.95) ao comentar sobre o processo de aprendizagem de uma língua estrangeira afirma que a palavra inscrita no caderno, isolada de seu contexto possui sempre o mesmo significado no processo de compreensão, que será reconhecido, sendo um sinal. Porém, continua afirmando que um método correto e eficaz de ensino seria aprender essa nova palavra não com um significado único mais como uma palavra que pode assumir diferentes significados dependendo do contexto em que for empregada. O mesmo defendemos para o ensino dos conceitos químicos no ensino fundamental. Eles devem ser trabalhados ao longo das séries em diferentes situações de ensino, como verdadeiros signos que são, que apresentaram significados diferentes dependendo do contexto em que se aplicam, e não serem aprendidos como um conteúdo disciplinar único fora do contexto do qual emergem, como afirma Lima e Silva (2007, p. 102).
O processo de compreensão possui papel de destaque dentro da sala de aula podendo se apresentar sob duas formas diferentes, a compreensão passiva, aquela na qual o aluno apenas ouve e assimila o que é discutido em sala de aula, mas não apresenta nenhuma atitude responsiva, questionadora desse novo conceito tomando-o como verdadeiro e imutável. Ou uma compreensão ativa a qual traz consigo uma atitude responsiva e questionadora do aluno ao tentar compreender a fala do professor. Quando o aluno ao ouvir o discurso do professor gera em si um discurso próprio marcado pela sua vivencia forma uma replica e quanto mais numerosas e consistentes melhor é o processo de compressão. Logo, esse processo de compreensão ativa na escola é tido como aprendizagem, pois não se aprende o que não se compreende; aqui vale ressaltar a importância do diálogo na sala de aula como meio de verificação dessa compreensão. 
A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. Só na compreensão de uma língua estrangeira é que se procura encontrar para cada palavra uma palavra equivalente na própria língua. É por isso que não tem sentido dizer que a significação pertence a uma palavra enquanto tal. Na verdade, a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, isto é, ela só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro. (BAKHTIN, 1997, p.132) Grifo do autor.

Alguns apontamentos...
  Como educadores, qual tipo de compreensão queremos despertar em nossos alunos, qual tipo de estudante esperamos ter nas universidades brasileiras? Queremos o tipo questionador, aquele que apresenta uma atitude responsiva diante dos fatos, ou aquele que simplesmente assimila a informação? Se optarmos pelo primeiro, o individuo ativo que se coloca diante dos fatos refletindo-os criando contrapalavras que lhe são próprias, porque ainda temos o ensino de química no ensino fundamental pautado na compreensão passiva, na memorização de equações e nomenclaturas?
Na sala de aula de ciências, em especial, os sujeitos se apropriam de expressões, gestos e códigos quaisquer para se fazerem compreender. Neste espaço, procura-se por meio da linguagem, portanto do discurso, construir significados tais para a apropriação do conhecimento. Na produção de novos significados através da interação discursiva é necessário que o professor dialogue com os alunos e permita que os mesmos se expressem e que haja uma interação entre diferentes vozes. (MORTIMER e MACHADO, 2001, p.118)
Neste sentido nos colocamos a pensar que a grande tarefa a ser desempenhada por um professor, não de química apenas, mas das áreas de ciências como um todo, seria auxiliar os estudantes na passagem da simples identificação de sinais para a compreensão de signos. Para conseguirmos isso precisamos que os estudantes consigam trabalhar com os sinais das ciências (fórmulas, equações, representações com letras, por exemplo) em diferentes contextos até se criar um discurso no plano social da sala de aula, gerando signos exteriores que passarão a fazer parte do signo interior (discurso interior) do estudante.  Esses signos, tanto interior quanto exterior, vão refletir e refratar o meio à sua volta. Dar condições para que o aluno desenvolva um processo de compreensão ativa é fundamental para rompermos com a visão disseminada de que a química deve ser trabalhada apenas no último ano do ensino fundamental, permite que o aluno a entenda como uma área que apresenta relevância e impacto nas sociedades modernas, a desmistifica como sendo uma área difícil, além de permitir ao aluno uma visão mais integradora do ensino de ciências.    

Bibliografia:
BAKHTIN, M.; (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo. Editora Hucitec, 1997.
BRASIL; Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ciências Naturais. Brasília: MEC/SEF, 1998a.
_______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental; Temas Transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998b.
FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola editorial, 2009.p. 121.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008. p. 19.
FREITAS, M. T. A. A perspectiva Vigotskiana e as tecnologias. Educação: História da pedagogia 2 – Lev Vigostski. São Paulo, Editora Segmento, p. 58-67, ago. 2010.
LIMA, M. E. C.C.; SILVA, N. S. A. A química no ensino fundamental: uma proposta em ação. In: ZANON, L. B.; MALDANER, O. A. (org.) Fundamentos e propostas de ensino de química para a educação básica no Brasil. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007. p. 89-107.
LIMA, K. E. C.; VASCONCELOS, S. D. – Análise da metodologia de ensino de ciências nas escolas da rede municipal de Recife. Ensaio: aval. Pol. Públ., Rio de Janeiro, v.14, n°52, p. 397 – 412, jul/set, 2006.
MORTIMER, E. F.; MACHADO, A. H.; Elaboração de Conflitos e Anomalias na Sala de Aula; In: MORTIMER, E. F.; SMOLKA, A. L. B. (orgs); Linguagem, Cultura e Cognição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2001.
OLIVEIRA, M. P. P.; MAGALHÃES Jr., C. A. O.- A formação dos professores de ciências para o ensino fundamental. Disponível em: http:// www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/snef/xvi/cd/resumos/t0602-1.pdf. Acesso em: 18/06/09
ZANON, L.B.; PALHARINI, E. M. – A química no ensino fundamental de ciências. Química Nova na Escola, n°2, p.15-18, nov/1995.

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