quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Michele Cristina Ramos Gomes

Letramento e ensino de Língua Portuguesa: contribuições bakhtinianas
Michele Cristina RAMOS Gomes
Universidade Federal de Juiz de Fora

A interação verbal constitui
a realidade fundamental da língua.[1]
Bakhtin

Bakhtin, em 1929, preconizava as bases de um ensino de língua apoiado na perspectiva do letramento. O termo “letramento”, ainda não existente na época, é entendido hoje imbricado na concepção dialógica e social da linguagem (BAKHTIN, 1929). Portanto, as concepções bakhtinianas abriram caminhos para que a teoria educacional se posicionasse a favor de um ensino que proporcione uma transformação em prol de alunos “letrados”. De acordo com Soares (1998, p.47), letramento é o “estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita.”
Portanto, a perspectiva bakhtiniana de linguagem, intrinsecamente social, é hoje apropriada por inúmeras teorias de ensino de língua, uma vez que, no pensamento bakhtiniano, a linguagem é concebida de um ponto de vista histórico, cultural e social. Assim, Bakhtin não excluía os interlocutores da atividade linguística, ao contrário, a relevância que lhes foi atribuída contribuiu significativamente para que, atualmente, nos pautemos em um ensino de Língua Portuguesa que seja centrado em formar alunos preparados para agirem socialmente, extrapolando, assim, os “muros da escola”.
As aulas de Língua Portuguesa apoiadas em práticas de letramento abordam, desse modo, questões referentes a um ensino que tenha função social para além da sala de aula. Para isso, o professor deve ter claro em mente o conceito de língua sobre o qual sua prática é situada para que possa, assim, realizar constantes reflexões e análises de modo a averiguar se essas práticas condizem com a concepção de língua por ele adotada. Dessa forma, se considerarmos, assim como Bakhtin (1929), que a língua é substancialmente constituída na interação, ou seja, é produto da atividade humana coletiva, não podemos dissociar as aulas de Língua Portuguesa da vida cotidiana dos alunos e dos contextos nos quais os sentidos interacionais são construídos. De acordo com Bakhtin
a comunicação verbal não poderá jamais ser compreendida e explicada fora do seu vínculo com a situação concreta. (...) Ela entrelaça-se inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terreno comum da situação de produção (1929.p. 124).

As práticas de letramento, dessa forma, condizem com a perspectiva que considera a língua como fenômeno social da interação verbal, realizado através da enunciação ou enunciações (BAKHTIN, 1929). Ao falarmos em enunciação, no sentido bakhtiniano, não dissociamos discurso de contexto, de modo que “enunciado” e “discurso” são conceitos que pressupõem a dinâmica dialógica da troca entre sujeitos discursivos no processo da comunicação (MACHADO, 2005).
Nessa perspectiva, o objetivo do ensino de língua portuguesa é desenvolver nos alunos competências discursivas que os tornem aptos a agir socialmente e posicionarem-se enquanto cidadãos no mundo. O ensino deve, desse modo, ser pautado em mediações professor-aluno que tenham por objetivo refletirem sobre o uso e não priorizarem o estudo da forma e/ou do código da língua. Assim, o professor deve fazer com que o aluno perceba que as formas só fazem sentido se situadas em contextos sociointerativos. O ensino de gramática, dessa forma, deve ser realizado de modo contextualizado, com a finalidade de auxiliar as atividades de leitura e escrita. Portanto, não deve ser o objetivo central das aulas.
O ensino de Língua Portuguesa deve, então, ser subsidiado por uma concepção de língua como “algo vivo e que evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN, 1929, p.124). Nesse contexto, é essencial que as aulas de Língua Portuguesa privilegiem o trabalho com gêneros textuais de forma a situar o aluno na realidade social em que vive. Dessa forma, uma vez que os gêneros discursivos são formas textuais escritas ou orais relativamente estáveis, histórica e socialmente situadas, eles permitem que o aluno apreenda aspectos comunicativos e/ou discursivos essenciais para a vida em sociedade. Segundo Bakhtin (1979 apud MACHADO, 2005, p.155)
a riqueza e a diversidade dos gêneros é imensa, porque as possibilidades da atividade humana são inesgotáveis e porque em cada esfera da práxis existe todo um repertório de gêneros discursivos que se diferencia e cresce à medida que se desenvolve e se complexifica a própria esfera.

Percebemos, assim, que a partir dos trabalhos realizados por Bakhtin foi possível a mudança no enfoque dos estudos sobre os gêneros, antes voltados apenas para o âmbito literário. Dessa forma, houve um direcionamento dos estudos para a esfera do discurso, por influência dos trabalhos do autor que afirmou a necessidade de um exame das práticas prosaicas que diferentes usos da linguagem fazem do discurso, oferecendo-o como manifestação da pluralidade (MACHADO, 2005). Nesse contexto, uma vez que a concepção bakhtiniana de língua engloba os gêneros discursivos que estão constituídos nos enunciados, a apropriação dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas humanas (BRONCKART, 1999 apud MARCUSCHI, 2008).
Além disso, percebemos que, se para Bakhtin, a dialogia entre ouvinte e falante é um processo de interação “ativa”, e se a própria interação entre os falantes de uma comunidade proporciona entre eles atitudes de respostas, podemos pensar na responsabilidade do professor não apenas enquanto mero transmissor de conteúdo, mas enquanto indivíduo/falante inserido em um processo de resposta ativa a todo tempo em sala de aula. Portanto, a postura do professor enquanto mediador de conhecimentos deve ser a de um sujeito crítico e consciente de que realizar um ensino “culturalmente sensível” (MARCUSCHI, 2008) é colocar-se no lugar do aluno enquanto indivíduo de outra esfera social, com outros costumes e crenças. E, portanto, o planejamento de suas práticas deve ser pautado tendo em vista a pluralidade cultural dos alunos. Para isso, a reflexão constante de sua própria atitude enquanto educador no que tange às respostas que tem proporcionado consciente ou inconscientemente a seus alunos é essencial para um ensino de valorização da diferença. E, principalmente, um ensino que vise à formação de sujeitos atuantes positivamente na sociedade. Como nos orienta Kleiman
é  na escola, agência de letramento por excelência de nossa sociedade, que devem ser criados espaços para experimentar formas de participação  nas práticas  sociais  letradas  e,  portanto,  acredito na  pertinência  de  assumir  o letramento,  ou  melhor,  os  múltiplos  letramentos  da  vida  social,  como  o  objetivo estruturante do trabalho escolar em todos os ciclos (2007, p.4).

Esses devem ser os verdadeiros objetivos do ensino de Língua Portuguesa considerando que, para Bakhtin (1979 apud MACHADO, 2005, p.161) “a linguagem é sempre uma imagem criada pelo ponto de vista de outra linguagem”. Assim, a aula de Língua Portuguesa que possui como base o trabalho bakhitiniano é voltada para a inserção social e percepção crítica dos alunos, ou seja, voltada para as práticas de letramento.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. (VOLOSHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud. Yara Frateschi Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1929/1995.

_______________. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. M. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1979.p.248-293.

BRAIT, Beth; MELO, Rosineide de. Enunciado/ enunciado concreto/ enunciação. In: Bakhtin: Conceitos-chave. Brait, Beth (org.). 2. ed. São Paulo: Contexto, 2005.
KLEIMAN, Angela. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna.   Signo. Santa Cruz do Sul, v. 32 n 53, p. 1-25, dez, 2007.
MACHADO, Irene. Os Gêneros discursivos. In: Bakhtin: Conceitos-chave. Brait, Beth (org.). 2. ed. São Paulo: Contexto, 2005.
MARCUSCHI, L. A. Produção Textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
SOARES, Magda. Letramento: Um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.


[1] BAKHTIN, Mikhail. (VOLOSHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud. Yara Frateschi Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1929/1995.


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