quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Bruna Molisani Ferreira Alves

Responsibilidade de professoras de educação infantil em seus processos formativos
Bruna Molisani Ferreira Alves[1]
UFRJ/PPGE/LEDUC


“A ciência, a arte e a vida adquirem
 unidade somente na pessoa que as
 incorpora na sua unidade.”
(Augusto Ponzio)

            As discussões que proponho trazer para a roda a partir desse texto emergem da pesquisa que estou desenvolvendo no doutorado e que tem como objetivo analisar os gêneros discursivos produzidos por professoras de educação infantil, no contexto da formação continuada[2] proporcionada pelo projeto “As (im)possíveis alfabetizações dos alunos de classes populares pela visão de docentes na escola pública”, coordenado pela professora Ludmila Thomé de Andrade, a fim de conhecer o que pensam sobre o trabalho com a linguagem (oralidade, leitura e escrita) na referida etapa da educação básica.
            Parto do entendimento de que somos seres constituídos na e pela linguagem, nas relações sociais, em que “o outro impõe sua alteridade irredutível sobre o eu” (PONZIO, 2008, p.23). Nossos discursos se constituem nesse diálogo inevitável com o outro, sendo formados como respostas à palavra alheia da qual nos apropriamos, repetindo, manipulando, transformando, fazendo-a ressoar de forma diferente, expressando outro ponto de vista, porque enunciados a partir de um outro lugar. Essa apropriação do discurso alheio dá-se como relação ativa de uma enunciação a outra (BAKHTIN, 2009, p. 145), como responsividade, e consiste num trabalho de autoria em meio a uma multiplicidade de vozes que convivem e interagem num determinado cenário.
            Considerando as professoras como sujeitos produtores de conhecimentos, proponho-me a investigar seus enunciados orais e escritos buscando identificar o trabalho de autoria dessas professoras, de escolha e assinatura de seus discursos em meio aos diferentes discursos que circulam no cenário da educação infantil e da formação docente.
            As contribuições do pensamento bakhtiniano levam-me a pensar a formação como produção discursiva, como ato responsável, que é intencional, e que caracteriza a singularidade, a peculiaridade, o monograma de cada um, em sua unicidade, em sua impossibilidade de ser substituído, em seu dever responder, responsavelmente, a partir do lugar que ocupa, sem álibi, sem exceção. (PONZIO, 2010, p. 10)
Trago no título do presente texto a palavra responsibilidade, neologismo proposto por Sobral (2008, p.20), que une responsabilidade, o responder pelos próprios atos, a responsividade, o responder a alguém ou a alguma coisa. Dessa forma, penso as enunciações das professoras como atos responsáveis, únicos, irrepetíveis, inscritos no existir-evento de cada uma delas, e também como respostas aos muitos enunciados espraiados no dialogismo constitutivo de suas subjetividades. Seus enunciados configuram-se como novos elos na cadeia histórica da comunicação discursiva, como criação, absolutamente nova e singular, a partir de algo dado (BAKHTIN, 2003).
Nos processos de formação vividos pelas professoras, conteúdos são apresentados, possibilidades teórico-práticas são experienciadas, compartilhadas, configurando-se como os dados a partir dos quais vão criar suas práticas e conhecimentos. Tais processos implicam em atos reais de cognição, que incorporam cada significado extra-temporal no existir-evento singular (BAKHTIN, 2010, p. 55) de cada professora. A validade de suas práticas, de seus discursos está no ato historicamente situado e não numa unidade teórica abstrata, como ato de um sujeito encarnado em um ser humano real, efetivo, pensante para incorporar-se, com o mundo todo do existir que lhe é inerente enquanto objeto de seu conhecimento, no existir do evento histórico real, simplesmente como seu momento. (idem, p. 49)
As produções discursivas das professoras são, assim, analisadas como respostas aos discursos apresentados na formação – e a muitos outros que circulam em seus ambientes de trabalho, em diferentes momentos de sua formação, no campo de sua inscrição profissional, na sociedade em geral –, como fechamentos provisórios resultantes de um trabalho de compreensão em que compreender um objeto [um conteúdo, uma prática, um construto teórico, um discurso] significa compreender meu dever em relação a ele, (...) o que pressupõe minha participação responsável (p.66).
A partir do exposto, pergunto: Que compreensões as professoras de educação infantil estão construindo acerca do trabalho com a linguagem? Com que vozes dialogam em suas produções discursivas? Quais e como os discursos apresentados na formação continuada (EPELLE) estão sendo incorporados, ressignificados, rejeitados em seus discursos?
Num contexto histórico-político-científico que tem negado constantemente a possibilidade de espaços discursivos onde os professores possam se dizer (ANDRADE, 2003, 2010), com políticas educacionais que se sustentam em pressupostos que consideram tais profissionais como meros tarefeiros, negando o lugar de intelectuais, produtores de conhecimento, e pesquisas que, mesmo quando se dispõem a “dar voz” aos professores, ouvem seus discursos como inadequações e/ou distorções em relação aos conhecimentos científicos, investimos em processos formativos que buscam instaurar outras formas de pensar os professores e sua formação.
Conceber a formação como ato responsável implica considerar o lugar único, singular, situado histórico-culturalmente de cada professora, assim como possibilitar espaços para que possam se dizer, em percursos de autoria, (re)conhecendo o dialogismo e a interdiscursividade inerentes aos seus discursos.

Referências Bibliográficas
ANDRADE, Ludmila. A escrita dos professores: textos em formação, professores em formação, formação em formação. In: Revista Educação e Sociedade, Campinas, vol. 24, n. 85, p. 1297-1315, dezembro 2003
______. Personagens e enredos de práticas pedagógicas na cena da formação docente. In: Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 31, n. 110, p. 179-197, jan.-mar. 2010
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. [Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco]. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010
______. (VOLOSHINOV, V.) Marxismo e filosofia da linguagem. 13 ed. São Paulo: Hucitec, 2009
______. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Tradução: Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 307-335
PONZIO, Augusto. A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo. In: BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. [Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco]. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010, pp. 9-38
______. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. São Paulo: Contexto, 2008
SOBRAL, Adail. Ato/atividade e evento. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008, pp. 11-36


[1] Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), integrante do Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação (LEDUC/UFRJ) e do Grupo ALEPH/UFF. Bolsista CAPES.
[2] A formação continuada proposta pela pesquisa coordenada pela professora Ludmila T. Andrade iniciou-se em 2011 e está prevista para acontecer ao longo de quatro anos. Sua realização consiste em encontros semanais, denominados EPELLE (Encontro de Professores de Estudos sobre Letramento, Leitura e Escrita), com duração de três horas, em que são discutidas questões referentes a quatro eixos: teorias de alfabetização; crianças de classes populares e seus letramentos; formação de professores; escrita docente. Além disso, prevê horas de leitura de preparação para os encontros e de produção escrita dos professores participantes (planejamentos, anotações sobre os alunos, registros de práticas que possam ser publicados). Trata-se de uma proposta de “formação pela prática” que envolve professores que atuam nos anos iniciais da educação básica (educação infantil e 1º ao 3º ano do ensino fundamental) em escolas públicas do Rio de Janeiro.

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