quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Janaína Moreno Matias

Inquietante respons(ável)sivo
JANAÍNA MORENO MATIAS
jannamatias@yahoo.com.br
UFRN- PPgEL

Durante a graduação um autor ressoava e propagava-se em vozes e vozes na academia, Mikail Bakhtin. Sussurros carnavalescos a respeito de suas ideias e de sua obra ecoavam nas paredes do saber. Tudo se resumia para mim em o homem do carnaval. E, confesso, adorei essa ideia carnavalesca. Fui à Biblioteca Central e lá estava um livro imponentemente bakhtiniano: A estética da criação verbal. Perguntas, dúvidas e inquietações, e acima de tudo, o receio de não compreender o conteúdo do texto, pois só o título já me amedrontava. Pensava eu, na minha rude ignorância, que o conteúdo da obra seria mais um para minha coleção de inacessibilidade intelectual, ou que talvez até pudesse ler e gabar-me de havê-lo lido e empoladamente dizer: é, de fato, Bakhtin é um grande autor... etc ... etc, como muitas vezes acontece nos templos do conhecimento. Isso não bastaria, eu queria mais. Conheci pessoas que se dedicam à leitura de Bakhtin, que compartilham essas leituras e que mostram que as ideias bakhtinianas vaticina que teoria e prática devem andar sempre de mãos dadas. Trilhei as veredas bakhtinianas, procurei conhecer, ainda que sem entender muito, suas obras, seus estudos, suas ideias. Adquiri vasto material de e sobre o autor, procurei e procuro ouvir atentamente o que se falava ou se fala sobre ele. Entrei em estado de encantamento, de apurado rigor intelectual. Entretanto, o saldo desse encantamento foi bem mais vantajoso do que se podia esperar. O filósofo russo direcionou o meu olhar para três pontos fundamentais em minha profissão - a ética, o sujeito e a linguagem. A partir desses três pontos ou da interação entre eles, esse texto tem como objetivo mostrar como esse recorte bakhtiniano inquieta a minha prática docente, faz-me refletir sobre ela e, como a atiça à reformulação constante.
Pois bem, da academia para a labuta diária de professora de linguagem e no meu caçuá pedagógico a ética, o sujeito e a linguagem. Em meu ato repetível, ou seja, em meu ato-ocorrência, nos termos de Bakhtin; entro em sala de aula cinco vezes, uma rotina semanal sem quase nenhuma alteração; em meu ato-tipo, indago-me sempre qual meu papel naquele lugar, frente àquelas pessoas? Não posso simplesmente entrar e sair daquela sala, expor um conteúdo, explicá-lo, logo após, averiguar através de exercícios ou quaisquer outros dispositivos se os meus alunos já o apreenderam e com isso achar que cumpri meu papel, que já mereço o soldo que recebo. Posso até viver a partir de mim mesma e contrariar o dito bakhtiniano:
Viver a partir de si mesmo, de seu próprio lugar singular, não significa viver para si, por conta própria; antes, é somente de seu próprio lugar único que é possível o reconhecimento da impossibilidade da não-indiferença pelo outro, a responsabilidade sem álibi em seus confrontos, e por um outro concreto, também ele singular e, portanto insubstituível. (BAKHTIN, 2010, p.22)

Tenho plena consciência, empregada aqui no sentido de convicção, discernimento, compreensão de que eu e meus alunos somos sujeitos e como seres sociais interagimos um com o outro e não poderemos viver sem precisar ou depender um do outro.  Cada um de nós é um eu para-si, condição de formação de identidade subjetiva, e também um eu-para-o-outro, condição de inserção dessa identidade no plano relacional responsável/responsivo: só sou eu entre outros eus. Sou um eu que se define e concomitantemente define o outro, um ser inacabado em mim mesmo e que é o “outro” do outro, pois os seres não podem ver em si mesmos todos os aspectos que os constituem e só se completam na relação com outros seres. Em resumo, ao outro é dada a tarefa de nos completar e a recíproca também é verdadeira.
Eu e meus alunos sujeitos agentes imbuídos num mesmo ambiente escolar, agentes de um mesmo contexto, no qual nossos atos entram num dínamo dialógico que se constitui de interdiscurso, de inter-ação; homologamente conectados com elementos sociohistóricos - temo que muitas vezes eles não tenham consciência disso - mas creio também que eles não apenas se vêem como seres biológicos, pois eles percebem nitidamente que o agir deles e o meu podem interferir de maneira significativa em nossas vidas. A linguagem é a nossa principal ferramenta para que isso se efetive. E nela, o único objeto real e material que, de acordo com Bakhtin, dispomos para entender o fenômeno da linguagem humana: o exercício da fala em sociedade. Dito de outro modo, a língua falada nas casas, nas feiras, nos shoppings, nas igrejas (de qualquer credo ou natureza), nas repartições públicas, nas festas e nas baladas, nas regiões do baixo meretrício, nos terreiros de macumba, nos guetos, nos presídios, é sempre o que existe de materialmente palpável para o estudo. Quando vamos à escola, já levamos na mochila todo esse “material” precisamos dele para assegurar a formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral de um ser humano, precisamos dele para construir e preservar a nossa vida social, pois o mundo é um mundo construído, e não apenas dado de maneira natural.
Para Bakhtin o mundo está em movimento e em perene transformação, seu objeto está sempre em processo, não se deixa enformar e a imutabilidade não é parte constituinte de sua essência. Eis a razão pela qual Bakhtin não pode aceitar que uma língua seja um conjunto de formas (signos) e suas regras de combinação (sintaxe). Em uso, a língua é muito é muito diferente de seu modelo teórico. O signo, que para Saussure é uma relação entre um significante (um som, uma imagem acústica ou um grafema) e um significado (um conceito). Para Bakhtin, um signo acolherá tantas significações quantas forem as situações reais em que venha a ser usado por usuários social e historicamente localizados. O cotidiano nos ajuda a comprovar isto, vivemos no e para o cotidiano. Somos seres sociais mergulhados num tempo que chamamos de hoje e num determinado espaço – lugar que ocupamos -. A nossa fala diariamente modifica, acrescenta, exclui, inclui, afirma, nega, distorce os tantos significados codificados pela língua. Há uma realização histórica, portanto a unidade básica, em se tratando de linguagem, não pode ser o signo, mas o enunciado. E este é irrepetível, acontece num determinado local e em um tempo determinado, é produzido por um sujeito histórico e recebido por outro. O signo fica à deriva no oceano bravio que dispensa os sujeitos reais do discurso.
Por que, em sala de aula, nossa prática de linguagem não cumpre o papel de modificar, acrescentar, excluir, incluir, afirmar, negar, distorcer os tantos significados codificados pela língua? Por que isso não é preocupação de muitos docentes? Por que teimamos em viver um ledo engano e uma doce ilusão e, eu diria até uma multíplice tolice continuar uma prática docente que usa a linguagem como um mecanismo de mera transferência, de transmissão, de passatempo inútil ou inútil passatempo? Uma leva de perguntas que se repetem de Dã até Berseba. Prossigamos. Já explicitei o objetivo desse texto e reitero que por ele não respinga nenhuma nuança de lamentação, de lamúria. Ao contrário, é bem provável que ele seja uma imputação de culpa e muito mais provável ainda fruto de uma inquietação responsável. Não tenho mais álibi, menos ainda, desculpas esfarrapadas ou mal costuradas, para entrar em sala de aula e não cumprir ética, responsável e responsivamente o ato de educar em toda a sua plenitude, ainda que a duras penas. Devo e preciso colaborar com meus alunos naquilo que Bakhtin chama de segundo nascimento, de nascimento social e acrescento: isso proporciona e colabora também com uma espécie de renascimento em mim. Quem sabe esse renovar tenha me dado coragem de reunir aqui a minha palavra com várias outras e, esperar por quaisquer que sejam as contrapalavras com o intuito de, ainda, reformular a minha. [ ... ]

Referências
AMORIM, Marília. O pesquisador e o seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa, 2004.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe. Palavras e contrapalavras: conversando sobre os trabalhos de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. 128 p.

Nenhum comentário:

Postar um comentário