quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Maria Angélica de Oliveira Penna

Auscultar as palavras em anúncios publicitários de apelo sustentável
Maria Angélica de Oliveira Penna (GED – UNESP, Assis)

A realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos signos sociais. As leis dessa realidade são as leis da comunicação semiótica e são diretamente determinadas pelo conjunto das leis sociais e econômicas. A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica. A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos.  (BAKHTIN/ VOLOSHINOV)
   
Em dezembro de 2010, a revista Veja fez circular a edição especial Sustentabilidade (edição 2196). Nesse exemplar, a revista, em editorial intitulado “o fantástico mundo da sustentabilidade”, atribui à questão da sustentabilidade o rótulo de “zeitgeist- espírito dos tempos”, em uma referência a Hegel. A revista traz, em alguns artigos, denúncias sobre a utilização do tema da sustentabilidade como marketing pessoal de muitas empresas; mas o exemplar especial, ainda que necessário e bastante interessante, me levou a questionar, em atitude dialógica, se a própria revista não estaria no meio do turbilhão sustentável com vistas à lucratividade. Isso porque o público leitor/ouvinte, e especialmente um leitor crítico, de uma forma ou de outra, reconhece a ideologia que subjaz às práticas comunicativas de alguns segmentos sociais, quer seja pelos anúncios que veicula e que exibe seus patrocinadores, quer seja pela escolha das matérias e dos temas, e, especialmente pela forma como são abordados os temas [o que emerge, o que apaga, etc.]. Essa observação, no entanto, faço para reforçar a relevância de levar para as aulas de leitura e de produção textual materiais dessa natureza [midiáticos] para promover reflexões produtivas. Para investigar se a desconfiança com relação ao objetivo da revista é procedente, seria necessário inseri-la no contexto histórico contemporâneo, inseri-la no “grande diálogo social”, entre outras coisas, confrontando o número especial com os números regulares da revista, para assim recortar seu público, perceber seu tom, etc.
            Haveria que se questionar, por exemplo, se a revista, em si, se torna sustentável porque presta um serviço importante ao veicular matérias esclarecedoras sobre a questão da sustentabilidade.
            O mesmo questionamento vale para empresas como a Coca-cola, Petrobrás, Vale e para as tantas outras marcas que têm estampado na mídia sua colaboração para um mundo melhor com seus projetos socioambientais. Há que se perguntar se os produtos se tornam sustentáveis porque a marca colabora para com a questão da sustentabilidade ou se isso se trata apenas uma oportunidade lucrativa para as empresas em questão.
            Em matéria escrita por Barrucho, no caderno negócios da edição citada acima (p.46), o autor afirma que “as empresas no Brasil e no mundo descobrem que quanto mais sustentáveis elas forem, maiores serão os seus lucros”. O autor diz que um levantamento realizado pela consultoria americana Mckinsey, em junho de 2010, com executivos de empresas globais, “revelou que 59% veem a biodiversidade mais como uma oportunidade do que como uma ameaça a seus negócios”. Tanto é assim que, segundo Barrucho, as empresas estão criando “diretorias de sustentabilidade”, para equacionar a “sanha dos acionistas por lucros maiores” advindos de investimentos em proteção ambiental. Além dos acionistas, o autor diz que outra grande preocupação das empresas, como já foi dito neste texto, é o público, que tem demonstrado uma verdadeira preocupação com os impactos ambientais. Além disso, o autor informa que, há cinco anos, na bolsa de valores, criou-se o índice sustentabilidade.
    Falar do discurso da sustentabilidade de empresas como as supracitadas, é falar “de dentro” da história, para refletir sobre o fato de os sentidos serem históricos e se construírem localmente. Para Bakhtin, os sentidos se estabelecem no confronto entre tendências opostas, conflitantes.  Ao observarmos o discurso da Coca-cola Brasil, por exemplo, com a imagem que dele emerge de uma empresa brasileira e sustentável, perceberemos que ele entra em conflito com a imagem de uma empresa genuinamente americana que carrega consigo a própria imagem do consumismo.
No que diz respeito, ainda, às diferentes tendências e à dialogia que emerge das e nas práticas comunicativas, podemos perceber que nos anúncios publicitários que utilizam como tema a questão da sustentabilidade [especialmente por ser a sustentabilidade uma questão emergencial no tempo em que vivemos], falam as vozes de um tempo preocupado com questões de ordem ambiental e social; mas também falam as vozes de um tempo de consumo descompromissado; falam as vozes dos acionistas, do público engajado, do suposto “consumidor verde”; mas também falam inúmeras outras vozes sociais “comuns”. Falam as vozes de uma marca; mas também falam as vozes de um produto, que nem sempre aparece em evidência quando se trata de marketing institucional. Enfim, falam as vozes “do um” e as vozes “do outro”; falam as vozes do passado e as vozes do futuro.
É preciso, portanto exercitar a “ausculta”, como diria Augusto Ponzio[1]. Como profissionais preocupados com a linguagem, com a educação, seria preciso, então, “promover” a “ausculta”.
            O discurso da sustentabilidade na publicidade é um bom lugar para se enxergar a linguagem agindo. Se há uma distância entre o que se diz e o que se faz, não há uma reflexão sobre essa divergência, pois ela é apagada e naturalizada graças a estratégias estilísticas de ordem multidimensional e de ordem multissemiótica. É uma divergência que se existir na prática, é absolvida pelo fato de ela não estar registrada explicitamente na linguagem, por poder ser captada apenas nas lacunas do que se diz, isto é, nos locais reservados ao silêncio, como diria Ponzio (2008), a propósito do mutismo em Bakhtin (1970/2003). E é o próprio silêncio que nos propicia “auscultar” (PONZIO, ibidem), nas palavras, as diferentes possibilidades de significação.
            A proposta aqui, portanto, é de uma abordagem bakhtiniana para promover a ausculta.
            Nas palavras de Stam:
Uma abordagem bakhtiniana combateria a seletividade da escuta promovida pela mídia de massa. Recuperaria o potencial crítico e utópico dos textos midiáticos, mesmo quando esse potencial é negado ou reprimido dentro do próprio texto. A questão não é propor uma interpretação, mas trazer à luz as vozes abafadas, muito como a mixagem sonora de estúdio reelabora a gravação para realçar os graves, ou limpar os agudos, ou amplificar a base instrumental. [Robert Stam, 1989/2010, p. 334]

Referências:
BAKHTIN, M. Apontamentos de 1970-1971. Em: Estética da criação verbal. Trad. do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, (2003)
PONZIO, A. Alteridade e gênese da obra. In: A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Tradução MIOTELLO, V. PENNA. M. A. O. et al. São Paulo: contexto, 2008.
_________. O pensamento dialógico de Bakhtin como teoria inclassificável. Conferência de encerramento no I Colóquio Internacional Bakhtiniano. Catalão, GO: UFG, 2010
STAM, R. Da teoria literária à cultura de massa. Tradução Heloísa Jahn. São Paulo: Ática, 1992.
VEJA, SÃO PAULO. O fantástico mundo da Sustentabilidade. Edição especial, nº2196,ano 46, p. 20, dez 2010 – editorial de apresentação


[1] Em conferência, UFG – I colóquio Internacional Bakhtiniano, 2010.

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