quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Renata Viana E. Fugiwara

Um processo educativo na saúde coletiva
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
RENATA VIANA E. FUGIWARA
E-mail: tata_fono@hotmail.com

A clínica é aqui pensada como um lugar de transformação, emoldurada a partir das necessidades trazidas pela população.  Dentro da saúde coletiva esse conceito de clínica é visto como uma potência de desobstrução dos entraves à saúde, que nos dá a possibilidade de continuarmos a pensar o novo, em projetos, laços sociais, etc... (MENDES, 2007).
O conceito de clínica é entendido na direção indicada por Mendes (op.cit.), como um campo flexível, permeável e, acima de tudo, construído pela capacidade de se pôr à escuta e de intervir em demandas de sofrimentos, sejam eles expressos por indivíduos ou por segmentos sociais.
 Para Mendes (op.cit.), a clínica faz parte de uma ética da ativação e da criação de formas saudáveis de vida, no sentido de empenho dos participantes em descobrir, no corpo e na alma, os impedimentos e as dificuldades em fazer fluir os processos vitais, além de reatar a alegria de viver, por participar da construção da existência. Segundo ela, isso ocorre porque a clínica possui uma “força”[1]  que reside na implicação com as dimensões intensivas das experiências, o que mantém a sintonia com o real, com as interseções entre as forças vitais e as condições formalizadas da experiência existencial.
A intervenção clínica no campo da linguagem se dá no plano das experiências ocorridas na relação terapêutica. Para Tassinari (1996), a relação terapêutica se caracteriza como base para que o espaço intersubjetivo, criado pelo encontro de paciente e terapeuta, se configure como espaço onde ocorrem as trocas relacionais, que promovem o desenvolvimento do paciente.
A evolução do caso clínico dependerá, portanto, de fatores ligados ao mundo interno e externo das relações do paciente, visto que está sujeito a desestabilizações e transformações, em maior ou menor grau, dependendo da época e das circunstancias individuais e coletivas com as quais se confronta (PAULA SOUZA, 2000, p.14).
Podemos, aqui, envolver os grupos terapêuticos no processo de participação popular na tentativa de produzir formas coletivas de aprendizado e investigação. Segundo Vasconcelos (2003), a educação popular na área da saúde pode promover o crescimento da capacidade de análise crítica da população sobre a realidade e o aperfeiçoamento das estratégias de luta e enfrentamento das dificuldades. Para ele, a educação popular é uma estratégia de construção da participação popular no redirecionamento da vida social.
Nessa medida, o que se lê a seguir é um caso de uma experiência de sujeitos afásicos no coletivo, ou seja, eles fazem parte de um grupo, potencialmente, forte e capaz de gerar mudanças tanto em sujeitos com lesão cerebral, quanto àqueles que participam do grupo como pesquisadores do funcionamento da linguagem no envelhecimento e nas patologias (o chamado Grupo de Pesquisa da Linguagem no Envelhecimento e nas Patologias – GELEP - IEL/UNICAMP). 
Trata-se de um grupo formado por sujeitos de diferentes localidades, com histórias marcantes, de diversas faixas etárias, de vários níveis de escolaridade, entre outras características. A maioria é composta de pessoas com lesões cerebrais focais após episódios de Acidentes Vasculares Cerebrais hemorrágicos ou isquêmicos, mas também há aqueles com vontade de entender o funcionamento da linguagem após um acometimento cerebral, como por exemplo, lingüistas, estudantes e fonoaudiólogos.
Esse espaço ao qual me refiro é o Centro de Convivência de Afásicos (CCA) localizado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) que realiza trabalhos “com” e “sobre” a linguagem, a partir de uma série de procedimentos metodológicos discursivamente orientados, bem como por propostas trazidas pelos sujeitos afásicos, pautadas naquilo que ocorre na vida em sociedade e no que é noticiado pela mídia e em diversos aspectos da vida que compartilham (COUDRY, 2002, p. 103).
É um lugar de interação cultural entre os diversos atores envolvidos em um determinado problema social para a construção compartilhada do conhecimento necessário à sua superação. O CCA procura problematizar, em uma discussão aberta, o que está incomodando os sujeitos afásicos de tal modo que prioriza a relação entre os sujeitos por ser uma expressão social usualmente desqualificada nos diálogos externos àquele espaço. O outro como educador cria estratégias para a superação da subordinação, exclusão e opressão que marcam a vida do afásico na nossa sociedade.
Semanalmente os sujeitos se reúnem para contar histórias, compartilhar angústias e sofrimentos. O CCA, de acordo com Morato (apud SOUZA, 2001, p.30) visa, principalmente, a restituição de papéis sociais, a reinserção ocupacional, a troca de um espaço simbólico de experiências, o fortalecimento de quadros interativos, a evocação de práticas discursivas, o enfrentamento das dificuldades, a reorganização lingüístico-cognitiva dos afásicos e a recomposição de aspectos referentes à subjetividade.
Para Kaes (1989, p.18), o modo de pensamento sobre a problemática grupal é o propulsor do entendimento das relações intersubjetivas trazidas e produzidas entre os sujeitos.
A participação dos sujeitos afásicos no grupo proporciona transformações que incidem sobre o modo como os sujeitos lidam com seus sofrimentos pela linguagem, mobilizando desejos, angústias e outras formas de experimentar seus próprios recursos para a produção de sentido. Neste contexto, a circulação dos gêneros discursivos se faz possível, na medida em que estes gêneros se configurem como diferentes possibilidades de expressão da individualidade na linguagem, por meio de diferentes exposições da subjetividade (BAKHTIN, 1992/2003, p.265). Para Bakhtin (op.cit. p. 285), o emprego dos gêneros é procedente do domínio sobre cada gênero:
Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade, refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso.
 Para este autor, o domínio dos gêneros discursivos é evidenciado nas relações didáticas e grupais, nas quais se evidência a (re) elaboração do discurso apreendido pelos sujeitos em outras situações comunicativas.
A partir dos diálogos semanais, soluções linguísticas vão sendo delineadas. Neste sentido, tem significado não uma atividade a mais na rotina dos sujeitos, sejam eles afásicos ou não, pelo contrário tornou-se uma ação social e integral à vida da população participante.
Em outras palavras, o CCA faz parte de um processo educativo na saúde coletiva. Esse espaço, portanto, produz um saber diário que nos orienta para os difíceis caminhos da saúde brasileira, construindo multiplicadores do saber em constantes transformações.
  
RFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. Os Gêneros do Discurso. In:_____. Estética da Criação Verbal.   4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992/2003, p.261- 306.
COUDRY, M. I. H. Linguagem e afasia: uma abordagem discursiva da neurolinguistica. Caderno de Estudos Lingüísticos. Campinas, SP: Unicamp, n.42, p.99-129, Jan/jun. 2002.
VASCONCELOS, E. M. Educação Popular, um jeito especial de conduzir o processo educativo no setor saúde, www.redepopsaude.com.br, 2003.
KAËS, R. Elementos para uma teoria psicanalítica do grupo. Trad. SOUZA, José; WERNECK, Mello . São Paulo: Casa do psicólogo, 1989, p.18.
MENDES, V. L. F. Uma Clínica no Coletivo: experimentação no programa de saúde da família. São Paulo, 2004, 175p. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica). Núcleo de Subjetividade Contemporânea, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
1.                   PAULA SOUZA, L. A. Objetividade, subjetividade e um caminho pelo meio. Distúrbios da Comunicação, São Paulo, v.12, n. 1, p.11-19, dez. 2000.  
2.                   SOUZA, Fl. F. O corpo dança: com(tra)dições e possibilidades de sujeitos afásicos. Campinas, 2001, 132p. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas.
3.                   TASSINARI, M. I. Relação terapêutica na clínica da linguagem: os pais de Alice nas vizinhanças da teoria psicanalítica. Distúrbios da Comunicação, São Paulo,v.8,n.1, p. 110, jun. 1996.


[1] O termo força é entendido aqui como a capacidade de transformação de um sujeito na relação terapêutica. 

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