quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Cláudia Maria Mendes Gontijo, Dulcinéa Campos

Elementos para pensar a pesquisa em educação
Cláudia Maria Mendes Gontijo (PPGE/UFES)
clammg@terra.com.br
Dulcinéa Campos (PPGE/UFES)

Introdução
Na perspectiva de pensar aspectos metodológicas referentes aos nossos trabalhos de pesquisa, no campo da educação, escolhemos alguns temas tratados nos textos de Bakhtin que podem nos ajudar nessas reflexões. Assim, abordaremos, neste texto, tendo em vista os seus limites, dois conceitos: palavra alheia e compreensão. Ambos, em nossa opinião, estão relacionados com os processos analíticos envolvidos nos trabalhos de pesquisa e, por isso, é importante destacá-los como temas ou conceitos essencias para pensar a pesquisa educacional.

Palavras alheias e compreensão
Um dos espaços de pesquisa privilegiado, em nossos trabalhos desenvolvidos no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, é o escolar. A inserção, nesse espaço, implica participação ativa nas práticas cotidianas escolares e nas relações que nele se constituem. Sendo assim, privilegiamos, em nossos estudos, as relações dialógicas, ou seja, as relações entre sujeitos que se realizam no espaço e tempo da escola. Para diferenciar as relações dialógicas ou entre sujeitos dos demais tipos de relações, Bakhtin (2003, p. 374), nos Apontamentos de 1970-1971, menciona três tipos de relações:
1) Relações entre objetos: entre coisas, entre fenômenos físicos, fenômenos químicos; relações causais, relações matemáticas, lógicas, relações linguísticas, etc.
2) Relações entre sujeito e objeto.
3) Relações entre sujeitos – relações pessoais, relações personalistas: relações dialógicas entre enunciados, relações éticas, etc. Aí se situam quaisquer vínculos semânticos personificados. As relações entre consciências, verdades, influências mútuas, a sabedoria, o amor, o ódio, a mentira, a amizade, o respeito, a reverência, a confiança, a desconfiança, etc.
De acordo com o autor, as relações entre sujeitos deveriam ser o objeto de análise das ciências sociais e humanas. Porém, para Bakhtin (2003, p. 379), nesses campos, “[...] não foram estudadas nem a palavra no corte dessa reciprocidade nem o eu do falante na mesma inter-relação”. As relações que se realizam entre sujeitos são essencialmente relações dialógicas.
No livro Problemas da poética de Dostoievski, Bakhtin (2005) assinala que as relações dialógicas, incluindo aquelas que o sujeito realiza consigo mesmo, não são, por tanto, objeto de estudo da linguística (pelo menos da linguística estruturalista), pois não pode haver esse tipo de relação entre unidades da língua.
As relações dialógicas são irredutíveis às relações lógicas ou às semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico. Devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas (Bakhtin, 2003, p. 183).
Nesse sentido, as relações dialógicas se situam em outro campo, no campo do discurso, porque este é por natureza dialógico. Não há, portanto, dicotomia entre as unidades da língua e o enunciado na perspectiva de Bakhtin. Uma única palavra pode se tornar um enunciado pleno se estiver situada no interior das relações que a engendraram.
Esse aspecto das relações humanas nos leva necessariamente a pensar o tratamento que damos às palavras dos outros na pesquisa em educação. Sabemos que, nós pesquisadores do campo da educação, lidamos, a todo tempo, com essas palavras, com as palavras alheias. Nosso corpus de pesquisa é não raro formado integralmente por essas palavras. Bakhtin (2003, p. 379) define a palavra do outro como “[...] qualquer outra palavra dita ou escrita na minha própria língua ou em qualquer outra língua, ou seja, é qualquer outra palavra não minha” (negrito nosso, itálico no original). Ele diz, ainda, que, nas palavras do outro, estão incluídas as minhas próprias palavras, porque elas são sempre responsivas, ou seja, compreendem sempre uma resposta e não podem ser pensadas de outra maneira.
Então, como lidar, em nossas pesquisas, com palavras que não são nossas, mas que, ao mesmo tempo, as compreendem? Uma primeira resposta advém do que já foi dito: as palavras alheias precisam ser analisadas, pensadas no recorte das relações dialógicas. Porém, essa resposta exige determinados posicionamentos nossos em relação ao mundo, aos seres humanos, à linguagem, etc.
Assim, a resposta inicial, aparentemente, precisa e transparente, requer que nos posicionemos também com relação a uma outra questão que sempre esteve no centro das discussões filosóficas: quem é o produtor de palavras? Essa pergunta foi e tem sido formulada de modos diferentes nos diversos campos do pensamento humano. No campo da filosofia, por exemplo, ela foi feita da seguinte maneira: O que é o homem? Tendo em vista a diversidade de correntes no campo do pensamento filosófico, ela foi respondida de formas variadas. Segundo Nicola Abbagnamo (1999, p. 512), as definições de homem “[...] podem ser agrupadas sob os seguintes títulos: 1o definições que se valem do confronto entre o homem e Deus; 2o definições que expressam uma característica ou uma capacidade própria do homem.; 3o definições que expressam a capacidade de autoprojetar-se como própria do homem”. Não nos deteremos nas especificidades dos grupos de definições, mas podemos dizer que todas elas articulam uma tentativa de buscar no homem, no ser humano, uma característica geral que o diferencie de outras formas de vida ou que o identifique como tal. Desse modo, são definições insuficientes, pois elas conseguem dizer pouco sobre quem são os seres humanos, ou seja, quem são a Maria, o José, a Geralda e seu filho mais moço, todos humanos, com características físicas, formas de conduta, de pensar, sentir, etc., muitas vezes, incomparáveis.
Bakhtin responde à pergunta sobre quem são esses seres humanos, dizendo que o homem é um ser em constante acabamento e, desse modo, ele se desvia dos grupos de definições anteriormente apontadas. Ele não é um ser que está pronto ao nascer, não pode ser explicado por meio da abstração de uma característica que o defina e o distinga como tal e nem pode ser compreendido como um ser capaz de projetar sozinho a si  mesmo e o seu destino no mundo. Esta última posição leva a um individualismo exacerbado. A ideia de inacabamento do ser humano é central no pensamento bakhtiniano. Com essa ideia, ele coloca, então, obstáculos para as definições generalizantes dos seres humanos e sem consideração à sua natureza histórica, cultural e social.
Retomemos, portanto, a questão de como lidar com a palavra alheia. Para Bakhtin, nós estudamos os seres humanos falando e escrevendo, ou seja, estudamos os enunciados produzidos nas interações de comunicação social. Nesse sentido, ele diz:
Não pode haver um enunciado isolado. Ele sempre pressupõe enunciados que o antecederam e o sucedem. Nenhum enunciado pode ser o primeiro ou o último. Ele é apenas o elo na cadeia e fora dessa cadeia não pode ser estudado. Entre os enunciados existem relações que não podem ser definidas em categorias nem mecânicas nem linguísticas. Eles não têm analogias consigo (Bakhtin, 2003, p. 371).
Há alguns aspectos que precisam ser destacados na citação. O enunciado produzido em um dado contexto de enunciação: a) está orientado para enunciados passados e futuros; b) consequentemente, não é o último nem o primeiro – houve e haverá outros enunciados; c) é apenas um dos elos de uma cadeia mais ampla de enunciados. Assim, o enunciado é pensado por Bakhtin como resposta e, por isso, tem sempre uma orientação social e está carregado de outras vozes que o antecederam e que o replicarão. Fora dessa cadeia discursiva, os enunciados não podem ser estudados, não como enunciados. Eles podem ser estudados como formas da língua, pois a enunciação monológica, de acordo com Bakhtin (2003, p. 98), “é uma abstração”.
Em Marxismo e filosofia da linguagem, ao formular críticas ao objetivismo abstrato, ele diz: “Toda enunciação pensada como monológica não o é. Pelo contrário, inclusive a inscrição num monumento, constitui um elemento inalienável da comunicação verbal. Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal” (Bakhtin, 1992, p. 98). Em outra passagem da mesma obra, desta vez, ao tecer críticas ao subjetivismo idealista ou individualista, sublinha que o “[...] o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala, ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc.” (p. 123).
Essas considerações fornecem elementos importantes para se pensar em como lidar com a palavra alheia no contexto dos trabalhos científicos elaborados no campo da educação, mas também requerem reflexões sobre o processo de compreensão da palavra do outro por nós, pesquisadores. Com relação à compreensão, Bakhtin (2003, p. 377) tem a nos dizer que:
A falsa tendência para a redução de tudo a uma única consciência, para dissolução da consciência do outro (do sujeito da compreensão) nela. As vantagens essenciais da distância (espacial, temporal, nacional). Não se pode interpretar a  compreensão com empatia e colocação de si mesmo no lugar do outro (a perda do próprio lugar). Isto só é exigido para os elementos periféricos da interpretação. Não se pode interpretar a compreensão como passagem da linguagem do outro para a minha linguagem.(BAKHTIN,2003)

Assim, em contraposição a uma completa empatia com o outro, Bakhtin assinala as vantagens para o processo de compreensão do distanciamento espacial, temporal, etc. pois o sujeito da compreensão não pode (não consegue) perder o seu próprio lugar. Portanto, a compreensão não é passagem da linguagem do outro ou tradução das palavras do outro para nossa própria linguagem, para as nossas próprias palavras. Nesse sentido, é importante acentuar que, se, por um lado, a compreensão requer que entremos em empatia com o outro, ou seja, é necessário “[...] ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele” (Bakhtin, 2003, p. 123), por outro lado, depois disso, é necessário que retornemos ao nosso lugar para que possamos completar o horizonte do outro com o nosso excedente de visão (completar o nosso horizonte com o horizonte do outro).
De acordo com Bakhtin (2003, p. 378), a compreensão está diretamente ligada à avaliação. Elas ocorrem simultaneamente, porque o sujeito busca compreender com a “[...] sua visão de mundo, de seu ponto de vista, de suas posições” os mundos dos outros. Na perspectiva pensada no parágrafo anterior, no entanto, essas posições não permanecem inalteradas, elas
[...] sujeitam-se à ação da obra [aos enunciados do outro] que sempre traz algo novo, não conhecido pelo sujeito que busca compreender. Somente os dogmáticos permanecem com as mesmas posições, somente eles não modificam as suas posições que permanecem inabaladas diante da palavra alheia (Bakhtin, 2003, p. 378).

No ato de compreensão, segundo Bakhtin (2003, p. 378), “[...] desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento”. Pensado dessa maneira, pesquisar é essencialmente um ato educativo. É um ato que completa mutuamente os parceiros da interlocução.  Esse autor também pergunta: “Que vantagens teria eu se o outro se fundisse comigo? Ele saberia apenas o que eu vejo e sei, ele somente reproduziria em si mesmo o impasse de minha vida” (Bakhtin, 2003, p. 80). E nós permaneceríamos nós mesmos. Essa redução do outro a nós mesmos pode empobrecer os acontecimentos, a experiência, a vida e a pesquisa em educação.
Antes de finalizarmos esta parte, não podemos deixar de lembrar, a propósito do acabamento/inacabamento dos seres humanos, que, segundo esse mesmo autor, nós nos tornamos o que somos por meio dos outros (Vigotski também acredita nessa constante constituição social do humano). Assim, a visão estética que construímos, inclusive do nosso corpo exterior, advém do reconhecimento do seu valor por outras pessoas. “Em sua íntegra, o valor da minha pessoa externa [...] é de natureza emprestada, que eu construo, mas não vivencio de maneira imediata” (Bakhtin, 2003, p. 45). Se é assim, que imagens, tendo em vista a autoridade do discurso acadêmico-científico, estamos ajudando a construir de professores, crianças, etc. com as nossas pesquisas? A que e a quem elas servem

Considerações finais
Resumindo, o processo de compreensão da palavra do outro não consiste na mera tradução dessa palavra pelo pesquisador. A compreensão é um ato criador, produtor de mudanças das nossas palavras e das palavras alheias. Também não é um processo de reconhecimento dos sentidos elaborados e expressos por um indivíduo isolado, mas de um sujeito que tem um horizonte rico em ideias, valores, saberes e fazeres.
Pensar a pesquisa como ato educativo conduz ao rompimento da separação pesquisadores e pesquisados. Cada um, com seu horizonte próprio, com suas vivências, são seres em constante acabamento, pois se complementam mutuamente.  Por outro lado, o resultado do trabalho de pesquisa ou os enunciados produzidos pelo pesquisador figuram saturados de linguagens, de vozes, pois sintetizam o resultado de encontro de duas ou de muitas consciências.

Referências
ABBAGNAMO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
______. Problemas da poética de Dostoiévski. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

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