quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Andréa Borges de Medeiros

A noção de responsivo em Bakhtin como recurso interpretativo dos movimentos discursivos das crianças no contexto de pesquisa.
Andréa Borges de Medeiros

O presente texto é parte de uma reflexão sobre os modos de lembrar das crianças quando em contato com os artefatos oriundos das práticas escolares e conservados pela escola. Trata-se de uma proposta de análise sobre o caráter singular das interpretações das crianças na cadeia de comunicação discursiva, levando em consideração os modos como as ações discursivas se constituem impregnados de valores, de modos de sentir, de ver e de existir dos outros. Assim sendo, a narrativa apresentada a seguir, expõe o acontecimento expressivo das crianças no contexto da pesquisa tendo como referência teórica a noção de responsivo em Bakhtin (2003).
As crianças caminhavam pelos corredores da escola partilhando lembranças narradas de maneira fragmentada, interrompidas por risos e por outras lembranças que insurgiam. A expressão “loira do banheiro” se repetida várias vezes. A ela eram acrescentadas outras, tais como: “-Eu vi”; “- A gente fazia medo no Adrianinho, aquele que já saiu da escola”; “-Todo mundo tinha medo da loira, mas todo  mundo queria que a gente chamasse ela de novo”. Elas também se lembravam dos amigos e das professoras com quem conviveram no passado. Lembravam-se dos espaços da antiga sede da escola e também da grande árvore; das escadas escuras e das aranhas que teciam as suas teias nas beiras do telhado declinante, ornado pela umidade absorvida no viés dos tempos. Temas distintos mesclavam-se com a história da loira: fantasmas, montes de areia que pareciam túmulos e se mexiam, espelhos e magias feitas com barro nas brincadeiras ao ar livre. Foi então que alguém atravessou o nosso passo e disse: “- Que história é esta de loira do banheiro? Isto é que é pesquisa?”
As crianças aparentemente não deram importância para aquela observação displicentemente lançada no contexto daquelas narrativas. Mas quando nos sentamos para dar continuidade aos encontros da pesquisa, Vinícius, interrompeu um história que  Sâmara contava e disse: “-Gente pára. Desliga a máquina!”
 Até aquele momento a filmadora não tinha se apresentado como um problema para elas que com desenvoltura contavam as suas lembranças sobre o seu passado na escola e sobre as suas experiências escolares. O mesmo não acontecia comigo, que sempre me atrapalhava com as gravações, já que, ao mesmo tempo, eu conversava com as crianças e fazia as filmagens. Mas a partir da intervenção do Vinícius a filmadora passou a incomodar a todos. Na sequência daquela fala, as crianças repetiam: “-é, desliga!”; “-anda, mostra pra gente o botão desligado!”.
Fiz o que elas pediram que eu fizesse: desliguei e guardei a filmadora. Porém, eu lhes disse: “-Mas por que isto agora? Nós combinamos que os encontros seriam filmados!” Vinícius respondeu o seguinte: “- É porque elas estão falando do barro e da sujeira do banheiro.” Luis Henrique complementou: “-É a história da Loira do Banheiro, vão achar que é mentira e bobeira.” Sâmara apresentou de maneira sucinta e direta a sua conclusão: “- Não pode falar perto de gente grande e de professoras, elas não vão acreditar. Não pode mostrar o vídeo!”
Logo em seguida, o que antes consistia numa prazerosa relação de parceria em torno dos acontecimentos narrados, transformou-se num diálogo tenso sobre o olhar das crianças para as maneiras como elas percebiam os adultos, principalmente os professores, em relação as suas falas e às histórias que contavam. A importância daquele acontecimento deu visibilidade ao caminho desviante do método ( BENJAMIN, 2004; 2007) daquela investigação, instigando decisões que implicaram retomar determinados combinados e refazer os procedimentos metodológicos.
A apresentação daquele diálogo travado sob a tensão da intervenção de um adulto nos movimentos narrativos das crianças se fez necessária, uma vez que, por meio delas, pude perceber a complexidade das relações construídas nos movimentos de pesquisa de campo e buscar compreender os deslocamentos da linguagem das crianças.

Pesquisadora- “- Por que não podemos mais filmar os nossos encontros?” Vinícius- “-Agora a gente não autoriza mais. Você pode escrever as histórias que a gente conta, mas não pode filmar a gente falando.”
Sâmara- “- Não!   Vinícius, para a pesquisa pode.”
Ana Clara e Camila- “- É, pode. Para a pesquisa pode.”
Diego e Luiz Henrique- “-Só para a pesquisa!”
Pesquisadora- “- Como é que eu fico? Eu sou pesquisadora e também coordenadora da escola. E agora?
Camila- “- Você gosta de ouvir a gente falar!.”
Sâmara- “- Hoje ela gosta, né Camila! Porque tia, quando você era a diretora bem que “passava o fumo” em todo o mundo  quando o banheiro ficava todo sujo de barro. E até a Tia Vininha “passava o fumo” na gente!
Luiz Henrique- “- Mas tia, o banheiro precisava ficar sujo por causa do veneno que as meninas faziam! A gente só não podia contar pra gente grande.”
Sâmara- “- A gente saía correndo e todo mundo ria...quando chegava na sala a tia mandava ficar quieto.”
Ana Clara- “- A professora xingava a gente!”
Camila- “- É tudo história inventada, mas na escola velha a gente pensava que era verdade !”

O diálogo chama atenção porque ele deixa à mostra o modo como as crianças sofreram o impacto do olhar de um adulto para as suas narrativas e também como  compreenderam a intervenção do Vinícius pedindo que a filmadora fosse desligada. Sem que houvesse qualquer explicação por parte dele, o tom veemente do seu enunciado fez com que as outras crianças criassem uma espécie de acordo na defesa de seus pontos de vista sobre o olhar de censura dos adultos para as suas falas e para as suas maneiras de expressar e viver as suas infâncias na escola. A referência às infâncias no plural considera as múltiplas dimensões do tempo vivido nas relações do cotidiano, remete-se a uma pluralidade de modos de ser e de agir no mundo.
As crianças na sua singularidade expressavam alteridades. Apresentavam-se num movimento que se orientava para o outro, o que na perspectiva bakhtiniana conforme Freitas (2011), expressa um modelo de “um eu não sistêmico e, sobretudo, impessoal, responsável, no qual o outro é constitutivo do eu, sem o qual eu não posso Ser” (no prelo). 
Isto significa supor planos de subjetividade que se constituem sob os mais diferentes contornos, entrelaçamentos e entrecruzamentos “imanentes à rede social” (MIRANDA, 2005, p.37). Tal afirmação enseja o contexto polifônico da produção de subjetividades já que supõe a ressonância de inúmeras vozes na voz de um único sujeito. A polifonia capturada dos pressupostos de Mikail Bakhtin sobre os diversos discursos, que constituem as vozes anteriores que configuram qualquer discurso proferido, imprimindo nele a marca de produção coletiva, produz ecos na idéia de subjetividade cingida pela pluralidade.
Então, se os enunciados criados pelos agentes do discurso são plenos de palavras alheias, em graus variados de “aperceptibilidade e de relevância”, e se essas palavras “trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos e reacentuamos” (BAKHTIN, 2003, p.294-295), o caráter singular da intervenção de uma criança na cadeia de comunicação discursiva pode ser tomado como uma produção impregnada de valores, de modos de sentir, de modos de ver e de existir dos outros.
Desse modo, a subjetividade, situada fora da dimensão da individualidade “se faz coletiva, o que não significa que ela se torne por isso exclusivamente social” (GUATTARI apud Luciana Lobo Miranda, 2005, p.39). A relevância do termo coletivo na apropriação feita por aquele autor não indica simplesmente uma alternância constitutiva. É mais do que isto porque ela situa a subjetividade na relação com um socius eivado de multiplicidades, de intensidades pré-verbais permeadas pelas lógicas dos afetos (idem, p.20).
Assim considerando, cabe supor que as crianças, motivadas pelo enunciado provocativo do Vinícius, criaram uma resposta para aquela intervenção primeira, lançada displicentemente por um adulto sobre a duvidosa natureza daquela pesquisa. Ela trazia implícito o descaso para com os modos de narrar das crianças. De qualquer modo, mesmo carregada de desconfiança e menosprezo, aquela pergunta implicou uma posição responsiva das crianças. Segundo Bakhtin, a posição responsiva “se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante” (BAKHTIN, 2003, p. 271) e, por isto, o autor supôs um processo ativo para os modos de compreensão/apreensão dos enunciados alheios. Mas a resposta não é assim algo previsível, e nem sempre acontece no rompante da fala, pode ser silenciosa, metaforicamente reeleborada, transformada. Entretanto, importa saber que “cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados” (idem, p.272), o que significa dizer que a criança, como todo falante, fala com seus alheios.  Talvez por isto as explicações de Vinícius sobre aquele intempestivo “desliga a máquina!” tenham sido desnecessárias para os seus amigos que partilhavam daquela experiência narrativa. Havia ali suposto anteriores, forjados numa fenomenologia de  escola que não escuta e que, mesmo sendo o espaço privilegiado para o educador(a) bem intencionado (a), quer seja ele(a)  diretor(a), professor(a) e funcionário(a),  corrobora para  silenciar as vozes das crianças. A escuta, reivindicada por elas, se efetivou na presença da pesquisadora, que justamente era a mesma diretora que segundo elas, “passava o fumo” quando se deparava com o banheiro sujo de terra. Isto trouxe um contraponto para a investigação sobre a Memória das crianças: o movimento de escuta que as crianças reivindicavam, mesmo que subliminar à denúncia da não escuta, foi assumido no contexto da pesquisa. Este contraponto instigou algumas questões complementares que podem ser assim apresentadas: Como pensar o lugar do educador frente à urgência da escuta das crianças? O que significa escutar as crianças? Tornar-se pesquisador garante uma postura de escuta?
Tais questões soaram como um pêndulo, que no seu movimento intermitente de ir e de vir, embalaram o vir-a-ser pesquisador na relação com aquelas crianças. Junto àqueles movimentos pendulares, supor a subjetividade como uma noção dispare da individualidade, e os enunciados como expressões prenhes de uma resposta, instigou outras chaves de leitura para  interpretar os modos de lembrar das crianças. Mas não só isto, o acontecimento vivido no curso da pesquisa instigou uma interpretabilidade em torno da compreensão da linguagem como “expressão”, tal como afirma Sonia Kramer (1996) quando se põe a buscar as convergências entre Bakhtin e Benjamin. Segundo a autora, ambos “dão ênfase as manifestações humanas, ao riso, às lágrimas, à imaginação criadora, ao sentimento, para além do signo arbitrário, focalizando na sua abordagem filosófica o dito e o não dito, bem como as relações entre linguagem e poder” (p. 216).
Fica então como uma proposta de continuidade para a reflexão que brevemente aqui se registrou, pensar que as crianças, nos tempos de seu viver e na expressão de suas infâncias, podem ensinar aos adultos e, portanto, a todos nós educadores, novas possibilidades de narrar e de construir a contrapelo outros modos de compor os currículos escolares e as culturas das escolas.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. . Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Lisboa: Assirio e Alvim,2004.
________________. Passagens. Org. edição brasileira Willi Bole- Belo Horizonte: Ed.UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 2007, 1ª reimpressão.
FREITAS, Maria Teresa de A. Identidade e Alteridade em Bakhtin. In: PAULA, Luciane de; e SATAFUZZA, Grenissa. Identidade e Alteridade. 2011 [ no prelo]
KRAMER, Sonia. Linguagem e tradução: um diálogo com Walter Benjamin e Mikail Bakhtin. In: FARACO, Carlos Alberto, TEZZA, Cristóvão e CASTRO, Gilberto (orgs). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Ed. Da UFPR, 1996.
MIRANDA, Luciana Lobo. Subjetividade: A (des) construção de um conceito. In: SOUZA, Solange Jobim (org). Subjetividade em questão. A Infância como crítica da cultura. Rio de Janeiro:7Letras, 2005.

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