quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Ana Paula Marques Sampaio Pereira, Maria Teresa de Assunção Freitas

A difícil tarefa de avançar na dificuldade
Ana Paula Marques Sampaio Pereira
Maria Teresa de Assunção Freitas

Esse texto descreve uma aula de reforço analisada à luz da perspectiva enunciativa de Bakhtin. Nesta aula, realizada em uma sala de uma escola pública no andar térreo e atrás da diretoria, estiveram presentes apenas a aluna Denise[i] e a professora. Denise possui 14 anos de idade e seis reprovações escolares.  Esse reforço é realizado após o término das aulas regulares, no período de onze horas até, no máximo, meio dia.


Início: 11h10minh
A professora chega à sala, coloca seu material sobre a mesa, espera que a aluna se sente em uma das inúmeras carteiras vazias e diz:
- Você viu que na sexta-feira apareceu a família do “R” na aula, não viu? Então vamos vê-la.
A professora escreve no quadro: Ra – Re – Ri – Ro – Ru
Denise lê: ra, re, ri, ro, ru.
A professora escreve logo abaixo:
ra- ro – re – ru – ri 
ar – or – er – ur - ir
Ao ler a segunda remessa de sílabas,  Denise lê: rrrra – rrrro – errrr
Professora: Não, ó: r – e: RRRRééé!!!!
Denise: U, URRR, URRRSSSo!
Professora: Ulha! Urso, tá nesse aqui de baixo, ó (aponta para o ‘ur’ na terceira fileira de sílabas). Esse é com RRRRRR.
Denise: Ur- urso.
Professora: Quando se pronuncia o r primeiro e o u depois vai dar outra coisa
Denise: rrrrruu, russo!
Professora: Então eu posso pronunciar o r primeiro (aponta para a sílaba ‘ri’)
Denise: Ri!
Professora: Ou eu posso pronunciar o i primeiro
Denise: Ingrêis!
Professora: O i primeiro e o r depois
Denise: ir, irrr
Professora: Não é? Então esse som aí você descobriu e você vai me dizer depois o que vamos fazer com ele, tá bom?
(A menina olha atenta)
(...)
Professora: Nesta fileira aqui eu tenho duas palavras que já estão formadas, você sabe qual é?
Denise: ur
Professora: Ur?
Denise: Urso!
Professora: Não, nessa fileira aqui, só com o que tem aqui (só com as sílabas lá representadas)
Denise: Ar?
Professora: Que palavra, o que significa ar?
Denise: Que falta ar?
Professora: Que falta ar! E a segunda? Vamos achar uma segunda palavra, que já vem também, prontinha no quadro.
Denise: Igreja!
Professora: Não, olha bem!
Denise: Urso?
Professora: do Urso só tem a primeira sílaba. Como a palavra ar você tem que achar uma palavrinha que tem aí mesmo!
Denise: ré! (lê ré onde estava escrito er)
Professora: O ré não tem e na frente não. Vai lendo.
Denise: ró...rrr, rrru, iii, iririrrrr.
Professora: Isso mesmo. O ir é uma palavra. O que é ir?
Denise: Ir embora. Eu vou ir embora.
Professora: Agora vamos tentar formar aquelas palavrinhas que você queria? Urso?
Denise: Urrrr.... Sô
Professora: Sô?
Denise: L.
Professora: Com l o sô?
Denise: ô
Professora: Ah, tem o ô e o que vem na frente? O s!
Denise: Ur-sô
Professora: Que mais?
Denise: Erra!
Professora: Muito bem, como é?
Denise: rrree
Professora: O e na frente
Denise: eeerrrrrrr-a!
Professora: Não o “er” e o “ra”.
A professora escreve a palavra “erra” no quadro e cumprimenta Denise:
- Denise, você está avançando na dificuldade!

Fim:11:35

Segundo AMORIM (1997), essa é uma cena enunciativa. Assim, os dados não são trazidos por falas transparentes ou por ideias evidentes. Ao contrário, a fala se torna um instrumento de ação, é problematizada. Ela própria está em jogo. Assim, “as condições em que algo é dito, a quem é dito, seu efeito sobre a relação entre as posições enunciativas, tudo isso constitui a enunciação enquanto lugar de descoberta” (AMORIM, 1997: p.136).
Dessa forma, como compreender esse “diálogo”[ii] entre professor-aluno a partir da perspectiva bakhtiniana? Ao tratar-se de uma aula de aprendizagem da leitura e escrita, que concepções de linguagem aí estariam presentes? A quem elas interessam? Por quê?
A escrita é uma atividade tão fundamental e necessária ao ser humano quanto a fala, apesar das peculiaridades de cada uma. Ela pode ter o poder de prender ou libertar o homem. Seu caráter complexo se explicita na medida em que, considerada enquanto expressão de pensamentos, idéias, sentimentos, etc. é potencial de desenvolvimento da mente humana. No entanto, quando compreendida apenas no seu caráter instrumental, como uma prática de colocar palavras no papel, estudando as relações e regras de seu uso, a escrita se torna aprisionadora, por se encontrar esvaziada de sentido. Transforma-se em um ato monológico. Uma escrita pela escrita.
No evento anteriormente descrito, a professora apresenta à aluna três conjuntos de sílabas, sendo que dois são representados pelas mesmas sílabas, ordenadas de forma diferente. Um grupo é caracterizado pela consoante “r” antes das vogais e o outro pelas vogais no início das sílabas onde também aparece a consoante “r”. O objetivo da professora com esse exercício é o de ensinar à aluna a “família do ‘R’”. Para isso, a escrita é apresentada de forma esquemática, pronta, sem autoria e visando a memorização.
BAKHTIN já nos relatou essa forma de escrita no livro Marxismo e Filosofia da Linguagem (1999). Diz ele, referindo-se aos estudos disponíveis em seu tempo[iii], que a linguística elaborou seus métodos e se organizou baseada na dissecação de uma língua “morta-escrita-estrangeira” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1999: p.99), retirando das palavras sua maleabilidade e possibilidades de sentido em diversos contextos, encerrando-as no dicionário e estudando-as apenas como um sinal gráfico a ser codificado e decodificado. A escrita se tornou algo “estranho” e desvinculado da vida do sujeito. E, infelizmente, é essa escrita que geralmente ainda encontramos no ambiente escolar.
Desprovida de seu caráter social, a língua inexiste enquanto tal. Por isso, a aprendizagem da escrita se torna tão penosa na escola. Denise se concentra, está atenta e força sua garganta tentando produzir os sons das sílabas. Tem a ilusão que aquele aglomerado de letras possui um significado, representa palavras. A professora percebe seu desejo em “ler palavras” e tenta levá-la a descobrir “duas palavras que já estão formadas” nas sílabas sem vida, presentes no quadro. À pedido da professora, Denise busca um significado para as palavras, no entanto, elas já se encontram desprovidas de contexto e, portanto, esvaziadas de sentido.
 De um lado, a criança sente a necessidade de lidar com uma língua viva, dinâmica, capaz de comunicar e favorecer a interação. De outro, ela adquire palavras-sinais a serem decorados e repetidos sistematicamente, para em um momento posterior, serem aplicados na construção de frases artificiais. Tornam-se “palavras-escolares”, de uma língua escolar própria, fechada em si. Uma língua a ser estudada apenas na e para a escola. Restringem-se as funções da língua materna e também a reflexão do ser humano. A aquisição dessa habilidade escrita se torna tortuosa e até impossível, como podemos perceber no trecho:
Professora: Que palavra, o que significa ar?
Denise: Que falta ar?
Professora: Isso mesmo o ir é uma palavra. O que é ir?

Denise: Ir embora. Eu vou ir embora.


A resposta por exemplos revela que Denise se encontra presa a uma esfera dos conceitos cotidianos, buscando sentidos funcionais para as palavras. No entanto, as frases encontradas para fornecer significação às palavras selecionadas talvez revelem mais que a vivência da aluna, deixando entrever nas entrelinhas seu estado de espírito (“falta ar/eu vou ir embora”).
Denise é elogiada: “está avançando na dificuldade!”. No entanto, apesar da aparente fixação de algumas sílabas, não há avanço, só dificuldade, só a visualização de um quebra-cabeça sem fim, de letras, sílabas e “imagens” de palavras. Os sons são artificiais. O trabalho que tem para pronunciá-los não se faz presente em sua fala cotidiana, serve apenas para codificar/decodificar letras, acentuando seus sons na tentativa de acentuar sua memorização.
SMOLKA (1988) esclarece que o dizer da professora é um indicador fundamental na compreensão da relação estabelecida pela professora com a criança e com a linguagem. Quando se refere especificamente à linguagem escrita, a professora revela uma concepção de linguagem e uma concepção de aprendizagem que vão influir diretamente no seu modo de ensinar. Segundo a autora, “ela apresenta a escrita como uma mera transcrição da fala” (SMOLKA, 1988: p.36).
BAKHTIN/VOLOCHINOV (1999), ao contrário, nos traz o legado de uma leitura e uma escrita a partir de uma língua viva, móvel, plástica. Material por excelência da existência humana, capaz de se impregnar na consciência do ser e fazer o que outro instrumento nenhum é capaz de realizar: expressá-la.
O indivíduo não recebeu a língua pronta para ser usada, ele a formou e foi formado por ela. Mergulhou na corrente da comunicação verbal e bebeu da água das palavras, transformando-as em vinho, ou melhor, em seu sangue, na medida em que foi absorvendo-as e constituindo seu ser, compreendendo a realidade através delas, comunicando-se com e (re)conhecendo seus semelhantes, conseguindo, através deles (os homens) e delas (as palavras), compreender a si mesmo e fazer emergir desse mar de inter-relações, a sua consciência.
Para BAKHTIN/VOLOCHINOV (1999) língua vai além de um simples instrumento presente apenas em conteúdos curriculares. A língua, segundo ele, não se separa, evolui junto ao fluxo verbal. Não é transmitida, e sim, assimilada e compreendida progressivamente. O sujeito “mergulha” em seu fluxo e vai progressivamente se integrando a ele. Portanto, a aquisição da escrita e leitura na escola não deve se restringir apenas ao estudo de normas e sinais. O ato de ler e escrever pode (e deve) ser visto como algo interessante e “vivo” para o aluno, assim como a linguagem oral. A língua materna não é estrangeira à criança, ela já a conhece e pensa através dela. Aprender a ler e escrever não é somente aprender a copiar e reconhecer letras, sílabas e palavras, muito menos aprender a fazer uso de um instrumento apenas em tarefas/atividades de um currículo escolar, mas aprender a compreender e utilizar essa nova forma de representação da língua (através da linguagem escrita) ativamente, em todos os contextos sociais.
De um modo geral, na escola, a língua escrita, como no evento observado, é compreendida como uma técnica, e sua aprendizagem se desenvolve muito mais ligada a um sistema normativo do que relacionada à  fala oral, à  linguagem usual dos falantes. Quem não aprendeu na escola essa língua “correta”, erudita e requintada, que todos deviam usar e poucos podiam compreender? Essa língua serviu e serve apenas para expressar a si mesma, a sua imobilidade, a beleza apenas superficial das palavras.
A escrita e a leitura são novas formas de ampliação do diálogo humano. Este, sob a forma de material escrito, exigirá maior elaboração para existir. As “novas” palavras não mais produzidas por sons, mas delineadas por um conjunto de letras e organizadas em enunciados vão registrando as ideias no papel, ou, atualmente, com os recursos da tecnologia informático-eletrônica, na tela do computador. É um esforço grande, mas que trará um ganho para a mente: ela passa a despertar cada vez mais funções cognitivas. O eu com o qual interagimos e os diversos outros com os quais conversamos através de uma folha, sem a necessidade do contato físico, provocam-nos, progressivamente, uma maior abertura ao social, às diversas vozes, às diversas compreensões, às diversas representações e, principalmente, à maior possibilidade de expressarmos o que pensamos, o que sentimos, como vemos o mundo e como concebemos esse ser que somos nós mesmos. A folha (ou a tela) pode vir a ser o reflexo de nossa consciência, a qual também traz consigo o reflexo de uma sociedade e tempo próprios.
Porém, o que se encontra presente no evento destacado são concepções de linguagem e aprendizagem que não consideram o processo de interação, interlocução e construção do conhecimento pelo aluno, muito menos, seus interesses, necessidades e condição de vida. O conhecimento prévio e linguagem própria do estudante não são respeitados e nem lhe é oferecida uma forma útil de compreensão e comunicação escrita fora do contexto escolar.
A diferença de linguagem entre professor e aluno pode revelar uma diferença social. Esta, por sua vez, ignorada nas relações de ensino-aprendizagem, torna ainda maior a dificuldade de compreensão do estudante. Desse modo, pode-se observar, através do evento destacado, que o ensino de língua esteve direcionado para a descrição da própria língua. Na realidade, para a sua fragmentação e sistematização. Nesse sentido, se a linguagem serviu/serve ao indivíduo como forma de tomar consciência de uma situação ou contexto - ou seja, (re)criar esta e/ou este no pensamento, para que seja expressa(o) por meio de palavras - no evento destacado a linguagem se torna desprovida de pensamento, exprimindo palavras, por meio de uma situação: a situação própria de uma aula de reforço, construindo uma língua própria da/para e pela escola.
Pode-se perceber, portanto, que o momento de reforço escolar, representado por esta aula não cumpre seu papel de trabalhar intensivamente a alfabetização de Denise, muito menos resolver seu “problema” em não dominar “adequadamente” a leitura e escrita, talvez, contribuindo, inclusive, para acentuá-lo. Denise “avançou na dificuldade”, no evento, sem ao menos conseguir detectar qual a sua dificuldade e que usos o conhecimento ali apreendido teria fora daquele contexto escolar.

REFERÊNCIAS:
AMORIM, Marilia. O detetive e o pesquisador.  Documenta, Rio de Janeiro, Cátedra Unesco de Desenvolvimento Durável, n.28, ano VI, 1997.
BAKHTIN/ VOLOCHINOV. Marxismo e Filosofia da Linguagem.  São Paulo: Hucitec, 1999.
SMOLKA, Ana Luiza B. A criança na fase inicial da escrita – A alfabetização como processo discursivo.  Campinas: Cortez/Unicamp, 1988.

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