quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Lucila Pesce

A FECUNDIDADE DO DIALOGISMO BAKHTINIANO PARA A EDUCAÇÃO.
Lucila Pesce
UNIFESP

Amparado em parte da vertente teórica de uma publicação anterior (PESCE, 2010) – que deriva do estudo de pós-doutorado em Filosofia e História da Educação desenvolvido na UNICAMP (PESCE, 2007) – o presente texto intenciona refletir sobre a fecundidade da arquitetura teórica bakhtiniana, em especial, o conceito de dialogismo, para a Educação.
Para Sobral (2005), a abordagem linguística sócio-histórica do Círculo busca as origens da evolução da consciência do homem no materialismo histórico. A partir daí, os fenômenos são observados em eterna modificação e os estudos situam-se como processos em movimento e mudança. Portanto, o materialismo histórico é visto como humus da abordagem linguística sócio-histórica, para a qual o conteúdo da experiência histórica do homem reflete-se nas formas de comunicação. Daí a linguagem situar-se como fenômeno histórico vinculado às funções sociais; qual seja, como meio de interiorização dos conteúdos historicamente determinados e culturalmente organizados e, por essa razão, como instrumento de conscientização e emancipação.
As considerações a seguir evidenciam o materialismo histórico como elemento fundante nos estudos do Círculo.
O Círculo trabalha com a interação entre o dado (o sensível do mundo) e o postulado (o inteligível), o singular e o universal, a materialidade e a criação simbólica, o ponto de vista “interno” e o ponto de vista “externo”, numa interação sempre irresoluta e, por isso, mais produtiva, sem demérito para outras abordagens, mas sempre em busca de superar as ênfases excessivas ou que ficam aquém do objeto (SOBRAL, 2005, p. 136).
Em virtude das idéias opositoras aos radicalismos stalinistas em voga na, então, recém formada União Soviética, o Círculo sofreu perseguições. Medviédviev e Volochinov desapareceram na década de 1930 e Bakhtin permaneceu exilado no Kazaquistão até 1936.
Bacharel em Letras, filósofo e historiador, Bakhtin trabalhou para fazer chegar às classes populares da Rússia pós-revolucionária, a Literatura e a Arte. Em sua fase marcadamente sociológico-marxista, Bakhtin adentra o terreno das investigações de caráter pragmático, notadamente no tocante à filosofia da linguagem compromissada com suas angústias políticas e éticas. Ao fazê-lo, expande suas preocupações linguísticas para além do domínio da fonética, da morfologia e da sintaxe e volta-se à linguagem como prática social. A partir dessa constelação teórica, aufere valor à enunciação, à interação verbal dos sujeitos sociais, ao contexto de produção dos discursos, enfim, às questões linguísticas atinentes ao cotidiano, pano de fundo da constituição da consciência humana. Em suas palavras: “Os sujeitos não ‘adquirem’ sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência” (BAKHTIN, 1997a, p. 108).
O livro Marxismo e filosofia da linguagem foi publicado na Rússia, em 1929, com assinatura de Volochinov. Bakhtin, em virtude de determinantes circunstanciais, escreveu distintos livros assinados pelos colegas do Círculo. Entretanto, a originalidade da sua estética e de suas idéias não deixa dúvidas de sua autoria sobre tais obras. Prova é que a agência de direitos autorais soviéticos não dispensa seu nome, em qualquer dos textos assinados por Medviédiev e Volochinov, tal como informam Clark e Holquist (1998).
Nesta obra sobressaem-se dois temas: o papel dos signos no pensamento humano e o papel da elocução na linguagem. Tais temas são de importância capital à compreensão bakhtiniana do quanto carregamos em nosso discurso, o discurso alheio. Nessa perspectiva, Bakhtin destaca: a palavra que o sujeito social incorpora do seu entorno (palavra alheia) funciona como uma contra-palavra de interpretação da próxima palavra e assim sucessivamente, até se tornar palavra própria. Nesse processo de incorporação, enquanto não há um esquecimento das origens da alteridade, a palavra ainda permanece no estágio de própria-alheia. Tal movimento de incorporação é primordial à compreensão do papel da linguagem enquanto instância constituinte dos sujeitos sociais, em geral, e dos alunos, em particular.
O conjunto de sua obra, com destaque para a acima citada, ao se erguer em meio à filosofia da linguagem de fundamento marxista, evidencia seu interesse pelos estudos da linguagem vinculados a questões históricas e sociais. Nesse contexto, Bakhtin sinaliza a linguagem como campo eminentemente ideológico; daí sua relevância à formação da consciência humana.
A constatação de que os seres humanos são historicamente datados embasa o entendimento bakhtiniano de que eles se constituem mutuamente, por meio da linguagem e dos históricos processos de interação social, nos quais se engendram negociações de sentido. O excerto a seguir é emblemático de tal entendimento.
Essa cadeia ideológica estende-se de consciência individual em consciência individual, ligando umas às outras. Os signos só emergem, decididamente, do processo de interação entre uma consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, conseqüentemente, somente no processo de interação social (BAKHTIN, 1997a, p. 34).
A consciência dos sujeitos sociais e a construção dos significados que a ensejam erguem-se em meio à alternância do diálogo. Para Bakhtin, não há palavra isolada, mas a partir de uma anterior e geradora de outra. A palavra consubstancia-se, pois, como produto da interação entre locutor e ouvinte, os quais alteram seus papéis, no inconcluso diálogo da vida. Nessa cadeia de enunciados evidencia-se a indissociabilidade entre palavra e fala, imagem e objeto, inerentes à natureza ideológica da linguagem. Para o lingüista, a palavra é o locus no qual a força social encontra sua maior expressão. Em seu dizer:
As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações socais em todos os domínios. É, portanto, claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. [...] A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais (ibid., p. 41).

 Preocupado com a relevância do contexto histórico-cultural à formação dos processos mentais, Bakhtin debruça-se sobre o conceito de dialogismo. Ao fazê-lo, preconiza o diálogo entre os homens como objetivo a ser atingido, em face do contexto de incomunicabilidade presente em nossa época. Nesse movimento, postula que a competência linguística dos sujeitos ergue-se em meio às ações recíprocas de uns sobre outros, diretamente ou mediado por objetos ou signos. O linguista concebe dialogismo como um profícuo cenário de contradições entre distintas vozes, no qual se explicita o contexto ideológico dos falantes. A partir desse entendimento, releva o valor da linguagem à elaboração e explicitação do contexto ideológico.
Em concordância com Clark e Holquist (1998), sinalizamos que Bakhtin reconhece a existência como uma atividade plausível tão somente no contexto do devir, tendo em vista que sua energia está constantemente em processo de produção pelas mesmas forças que a impulsionam. Sob essa ótica, a abordagem sócio-histórica bakhtiniana desvela o dinamismo e a eterna inconclusão da linguagem, que se funda no dialogismo, em devir; como também o é a Educação.
Ao esclarecer que o conhecimento é construído na interação do sujeito com o objeto – mediada pelo outro, por meio da linguagem – e do sujeito com outros sujeitos, a abordagem bakhtiniana avança para a concepção de sujeito interativo. Dessa forma, Bakhtin (1997a) aponta novos caminhos ao trabalho com a linguagem. Ao fazê-lo, denuncia a característica sócio-ideológica da língua, existente na dialética relação entre os sistemas da língua e seus enunciadores.
O autor destaca a natureza dinâmica, relacional e ativa da compreensão. Tal condição situa as preocupações de Bakhtin no contexto das relações sociais, em que os falantes assumem-se como sujeitos sociais.
A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa... [...] compreender é cotejar com outros textos e pensar num contexto novo (no meu contexto, no contexto contemporâneo, no contexto futuro) (1997b, p. 290).

Ancorado em uma concepção materialista-histórica, Bakhtin esclarece, em muitas de suas obras, que o sujeito é individual e socialmente constituído. O sujeito bakhtiniano é um ser corporificado no cotidiano, na enunciação, no dialogismo. Sujeito social e culturalmente situado em sua concretude histórica. Dito de outra forma, para o lingüista, a consciência não se constitui fora do corpo; ao contrário, é material, erguendo-se em meio à interação do sujeito com o contexto sociocultural inacabado. Nesse sentido, a história de um sujeito enquanto indivíduo é bastante semelhante às histórias dos sujeitos de seu contexto sócio-histórico. Contudo, as contra-palavras de cada um deles viabilizam a construção de identidades singulares. É o que sugere o seguinte excerto.
Na verdade, a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar (1997a, p. 108).

O conceito bakhtiniano de dialogismo (1997a; 1997b) percebe o quanto o individual e o social engendram-se, a ponto de a cultura tornar-se parte de natureza intrínseca do ser humano. Este entendimento tem desdobramentos diretos para a Educação.
A categoria conceitual de enunciado foi exaustivamente trabalhada por Bakhtin e, imbricando-se ao conceito de dialogismo, explicita a visão relacional do autor, o qual percebe a linguagem no seio de sua organicidade.
O enunciado é um fenômeno complexo, polimorfo, desde que o analisemos não mais isoladamente, mas em sua relação [...] com os outros (uma relação que não se costuma procurar no plano verbal, estilístico-composicional, mas no plano do objeto do sentido). [...] O enunciado está ligado não só aos elos que o precedem, mas também aos que lhe sucedem na cadeia da comunicação verbal. [...] O papel dos outros, para os quais o enunciado se elabora, como já dito, é muito importante (1997b, p. 18-19 e 20).
Segundo a abordagem bakhtiniana, a significação ergue-se em meio a um contexto relacional e fluido entre os enunciadores. Nesse movimento, “o colorido expressivo [das significações, grifo nosso] lhes vem unicamente do enunciado, e tal colorido não depende da significação dela [da palavra, grifo nosso] considerada isoladamente” (BAKHTIN, 1997b, p. 311).
Por essa razão, a perspectiva teórica bakhtiniana observa a dialética relação entre os signos culturais e as sociedades, através da qual um interfere no outro, em espiral contínua. Qual seja, os signos interferem na construção de uma sociedade mais complexa e elaborada; por conseguinte, esta nova sociedade construirá signos cada vez mais complexos e elaborados e assim sucessivamente.
A diversidade ocorrente na complexidade da existência humana também é outro ponto de atenção da abordagem bakhtiniana, a qual percebe a unidade do mundo nas múltiplas vozes e nos múltiplos significados que participam do diálogo da vida. Em outras palavras, para Bakhtin, a unidade do mundo é polifônica e polissêmica por excelência.
A palavra é concebida como elemento fundante na convivência com o outro, manifestada e edificada pela linguagem. Por meio dela, ação e emoção imbricam-se nas constantes, provisórias e inconclusas interações dos enunciadores. Tais idéias trazem em si a percepção da dimensão reconstrutora da linguagem, tão apontada pela abordagem do linguista.
Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro ilimitado). [...] Em cada um dos pontos do diálogo que se desenrola, existe uma multiplicidade inumerável, ilimitada de sentidos esquecidos, porém, num determinado ponto, no desenrolar do diálogo, ao sabor de sua evolução, eles serão rememorados e renascerão numa forma renovada (num contexto novo) (BAKHTIN, 1997b, p. 413-414).

Em relação ao conceito de dialogismo, Bakhtin (1997a) refuta a consciência linguística ingênua, ao destacar que os sujeitos e a linguagem não pré-existem à interação verbal. A partir das idéias do autor, que focam a linguagem verbal erguida em meio à dinâmica relacional, a interação verbal está sempre eivada do locus social no qual se realiza, sendo constitutiva dos sujeitos e da linguagem por eles veiculada. Em outra formulação, a consciência dos sujeitos ergue-se em meio aos signos internalizados, os quais são cunhados pelo trabalho social, histórico e ideológico. Nessa dialética relação, a dialogismo ergue-se como elemento fundante da constituição mútua dos sujeitos sociais e deve ser levado em conta no ethos educacional.
O dialogismo encontra-se no bojo das idéias do estudioso. Em seu dizer, “o monólogo pretende ser a última palavra [...] O diálogo inconcluso é a única forma adequada de expressão verbal de uma vida autêntica” (ibid., 1997b, p. 334). Nessa linha de raciocínio, cada fala insere-se na infinita cadeia de enunciados, respondendo, pelas contra-palavras, questões anteriores e prevendo interpretações. Tal dinâmica aponta o inacabamento da linguagem, justamente por ser utilizada pelos sujeitos, os quais se constituem nos processos lingüísticos históricos e interativos. Como podemos perceber o dialogismo bakhtiniano foca sua atenção na dimensão reconstrutora da linguagem; dimensão esta que vive nas interações de seus enunciadores, em distintos espaços sociais, incluso o da Educação.
O estudioso releva o valor da elocução ao desenvolvimento do sujeito social, nela incluindo a veiculação ideológica. Para Bakhtin, o enunciado não é determinado pela língua, como sistema puramente linguístico, mas pelas interações dos enunciadores. Nessa perspectiva, o fluxo da interação verbal é de fundamental importância à dimensão sócio-ideológica da linguagem. Dito de outra forma, para Bakhtin só há sentido no estudo da língua se concebida no fluxo de comunicação verbal, no contexto dos falantes, no qual a língua está em eterna modificação. A palavra – plena de ideologia e fazendo parte das transformações histórico-culturais – encontra-se em permanente fluidez. No dizer do autor, “A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais. [...] A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” (ibid., p. 66 e 95). Este entendimento é de fundamental relevância par as práticas sociais da escola.
A constituição social do sujeito o compreende na sua relação com o outro, diretamente ou mediada pelos signos. A teoria bakhtiniana situa a interação verbal como locus primeiro da produção de linguagem e ideologia. A partir daí podemos situar a linguagem como peça fundamental à compreensão crítica da realidade, pois a consciência surge e se organiza no diálogo.
Bakhtin sinaliza a perspectiva de alteridade nas interações verbais, ao sublinhar que:
É por isso que a experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro. [...] Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras literárias), estão repletos de palavras dos outros... [...] As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos (1997b, p. 313-314).
Uma breve incursão junto ao conceito bakhtiniano de dialogismo permite que desvelemos a positividade de suas proposições, em face das esferas constituintes dos sujeitos sociais, em especial, para o presente texto, a Educação. A dimensão dialógica da linguagem, em Bakhtin, exprime o caráter inovador da sua racionalidade. A fecundidade da teoria bakhtiniana fornece elementos para situarmos a linguagem no bojo das ações compromissadas com a constituição de seres humanos, com destaque para a Educação, quando entendida como resposta responsável.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. (VOLOCHINOV). (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. 8ª ed. Trad. M. Lahud e Y. F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 1997a.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. (1979). 2ª ed., Trad. M. E. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997b.
CLARK, Katerina & HOLQUIST, Michael. (1984). Mikhail Bakhtin. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998.
PESCE, Lucila. As contradições da institucionalização da Educação a Distância, pelo Estado, nas políticas de formação de educadores: resistência e superação. Pós-doutorado. Filosofia e História da Educação. Universidade Estadual de Campinas, 2007.
______. Formação online de educadores sob enfoque dialógico: da racionalidade instrumental à racionalidade comunicativa. Revista Quaestio (UNISO), v. 12, pp. 25-61, jul. 2010.
SOBRAL, Adail. Filosofias (e filosofia) em Bakhtin. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. pp. 123-50.

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