quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Daniel Prestes da Silva

Aula de literatura: o uso responsável e ético de textos de um autor sobre a sua própria produção literária
Daniel Prestes da Silva (Graduação/UFPA)
E-mail: prestes.dan@gmail.com

Será possível um autor falar do processo de escrita como algo em devir?
A partir deste questionamento, discorreremos à luz da perspectiva bakhtiniana, sobre autor e autoria, entendendo esses processos como práticas sociais, no quais os papeis assumidos pelo sujeito são cambiantes dentro de uma mesma esfera, a de autor/ escritor.
Bakhtin (2010) entende que o processo de escrita é algo que não se pode explicar, não enquanto algo em devir; o que se pode fazer é falar do que ali já está posto, e quando isso acontece, já não é mais o escritor da obra que ali se encontra, e sim o autor.
Para entender melhor essa colocação, temos que ter em mente a distinção entre autor e escritor. O autor é uma figura abstrata, que só existe no âmbito discursivo; é ele que engendra, articula a trama que será desenvolvida e posta por um narrador. No que tange à figura do escritor, ele é o ser físico que inscreve a história no papel, por meio de signos gráficos. Este só existe no momento da escritura, da confecção, e é só neste momento que autor e escritor tornam-se uno.
Assim sendo, o escritor é uma prática social, assim como o leitor, já que estes só se materializam no âmbito da atividade, não podendo ser caracterizados como algo do presente, entendido aqui como a acepção de tempo verbal que indica hábito ou constância. Também não podemos entender a figura do escritor, por meio dessa mesma assertiva, em um presente contínuo, pois, como dito anteriormente, o processo de escrever é um vir-a-ser. Ao nos referirmos à prática, não estamos mais tratando do processo, e sim, de algo finalizado, findo, logo pertencente ao tempo passado, uma ação finalizada, mesmo que pertencente a um movimento inacabado.
Posto isso, como compreender o movimento de “um escritor falando do que escreveu”, usando o marcador pessoal “eu”?
A partir das considerações feitas acima sobre o ente escritor, não é-nos possível entender essa prática como algo coerente, já que no momento em que este “eu” fala, não é mais o mesmo “eu” que escrevia o texto, ele tornou-se “outro”, pois assume outra prática social, não mais como um escritor/autor, mas como um escritor/crítico, que analisa e vê possibilidades e intenções possíveis no texto que foi escrito.
Ele pode até dizer o que o texto quer dizer, mas isso não pode ser tomado como verdade única, pois assim considera o mesmo como algo fechado, que não pode ser atualizado por meio de interações dialógicas outras, feitas por outros sujeitos, que constituídos por discursos variados, encontrarão tantas outras possibilidades de leituras.
Portanto, escritores que falam de “sua” obra, não estão falando do que escreveram enquanto processo, e sim, do que está escrito, pois aqueles já não estão mais na prática social da autoria, mas vivem a identidade de leitor, que interpreta e compreende, a partir da sua constituição ideológica, o que ali está posto.
Por exemplo, com a carta de Caio Fernando Abreu (Porto, 22 de novembro de 1979), que se encontra no final de Morangos Mofados (2005), encaminhada para um amigo seu, Zézim, que trata sobre “o processo de escrita”, de acordo com um trecho do texto da orelha dessa edição, que transcrevemos a seguir: “Numa carta a um amigo, que poderá ser lida no final deste volume, Caio conta o processo de criação de Morangos Mofados, a analogia com a música Strawberry fields forever, o mergulho sofrido e necessário no mundo interior para dele extrair a literatura.” Ora, o trecho, anteriormente, exposto nos diz que Caio revelou ao seu amigo sobre o processo de criação, entretanto não é o que verificamos, quando vamos à fonte primária e citada. O trecho em questão segue abaixo:
Chama-se Morangos Mofados, vai levar uma epígrafe de Lenon & McCartney, to aqui com a letra de Strawberry fields forever pra traduzir. Zézim, eu acho que tá tão bom. Fiquei completamente cego enquanto escrevia, a personagem (um publicitário, ex-hippie, que cisma que tem câncer na alma, ou uma lesão no cérebro por excesso de drogas, em velhos carnavais, e o sintoma – real – é um persistente gosto de morangos mofados na boca) tomou o freio nos dentes e se recusou a morrer ou a enlouquecer no fim. Tem um fim lindo, positivo, alegre. Eu fiquei besta. O fim se meteu no texto e não permitiu que eu interferisse. Tão estranho. Às vezes, penso que, quando escrevo, sou apenas um canal transmissor, digamos assim, entre duas coisas totalmente alheias a mim, não sei se você entende. Um canal transmissor com um certo poder, ou capacidade, seletivo, sei lá.

Nele não há uma explicação ou revelação do processo de escrita de Morangos Mofados, muito pelo contrário, Caio se compara a um cego, na hora da composição, alguém que não vê o que está fazendo, portanto alguém que não sabe o processo. O máximo que ele consegue é sentir que algo nele acontece, quando escreve, e isso é verbalizado na parte do excerto em que ele se compara a um canal transmissor. Ele é o meio pelo qual a sua escrita aparece, um fio condutor, instrumento e ferramenta, que realiza uma tarefa sem sabê-la como.
No que se refere estritamente a Morangos Mofados, Caio se limita a fazer um brevíssimo resumo do que se encontra no conto e de impressões pessoais sobre o mesmo, verificados nas expressões “tão tão lindo” e “final alegre, positivo”, ou seja, ele faz juízos de valor. Já em relação à analogia, referida no texto de orelha de Morangos Mofados que se remete a carta, não existe, o que há, como visto no excerto acima, é apenas a afirmação de que o texto terá como epígrafe a letra da música de Lennon & McCartney, nada mais.
Nem no trecho em que Caio fala de como aumentar o arcabouço literário, de ideias e experiências poderíamos afirmar que há ali “um falar do processo de escrita”, pois não existe uma descrição contínua de como isso “acontece”, e sim a enumeração de atividades que podem ajudar alguém, neste caso Zézim, a criar, escrever um texto, como vemos no trecho a seguir:
Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto.
E ler, ler é alimento de quem escreve.

Mai adiante, Caio afirmará que:  “Cada um tem seus processos [de escrita], você [Zézim] precisa entender os seus”.
Portanto, entendemos que o autor da orelha do livro Morangos Mofados (2005), pode ter tido uma postura equivocada frente dois textos de um mesmo autor, interpretando um (a carta) como crítica/teoria de outro (o Morangos Mofados), evidenciando, assim, uma ato irresponsável e antiético para com os textos e seus possíveis leitores, que, pouco atentos, veriam o uso da carta como um texto explicativo de um processo de escrita e de elucidação mesma, dessa obra de Caio.
Tudo isto posto, concluímos considerando que, textos que falam de outros textos, escritos por um mesmo autor, encontram, não só, figuras identitárias diferenciadas, haja vista que a prática social ali exercida é diferente - não mais de autor-criador, mas sim de autor-crítico e do autor-leitor; como também sujeitos e contextos diferenciados, que influenciarão na leitura do texto, seja do autor-crítico ou de outro leitor, configurando-se então, como possibilidades interpretativas do texto escrito/lido.
Tendo isso em mente, o professor que fizer uso destes textos, que escritos pelo mesmo escritor, remetem a uma obra publicada daquele mesmo, deve ter a preocupação de mostrar aos seus alunos que, ali, é o texto de um crítico/leitor que toma elementos de análise e metodologias próprios de interpretação e compreensão textual, e não como se vê em algumas aulas de Literatura, como sendo a leitura “sacra” que explica o texto, matando outras possíveis análises que não seguem a linha de quem o escreveu.
Esse posicionamento do professor, frente tais modalidades textuais, evidencia uma postura responsável e ética, na concepção bakhtiniana de responsabilidade (respondiblidade) e ética (GEGE, 2010), já que permite um melhor uso e compreensão da produção de determinados autores, percebendo-os não só como pertencentes a uma única prática social e nem produtores de um determinado tipo de gênero textual. Mas, o mais importante é que tratam o texto literário como deve ser, um texto aberto para leituras múltiplas, inclusive a do sujeito que o produziu.
Assumindo essa postura diante dos textos, também permite aos alunos o desenvolvimento do pensamento crítico, pois os faz perceber a pluralidade do texto literário por meio de uma interação dialógica, na construção da imagem de outros, embasada por um referencial sólido, já que construído por meio de diálogo e do evidenciamento das multifaces dos textos literários.

REFERENCIAL TEÓRICO
ABREU, C. F. Morangos mofados. – Rio de Janeiro: Agir, 2005.
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal.  – 5ª ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010
GRUPO DE ESTUDOS DOS GÊNEROS DO DISCURSO – GEGe. Palavras e contrapalavras: conversando sobre os trabalhos de Bakhtin. – São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.

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