quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Claudia Santos de Medeiros

NOMES: Implicações das relações entre adultos e crianças
Autora: Claudia Santos de Medeiros
Instituição: Serviço Social do Comércio – SESC – Administração Nacional

RESUMO
Este texto é parte de pesquisa[1] realizada em um dos Centros de Atividades do Serviço Social do Comércio – SESC – situado na Região Norte do Brasil, em meio à complexidade do trabalho que desenvolve nas áreas de Cultura (teatro, cinema, artes visuais etc.), Lazer (turismo, esporte e recreação), Saúde (nutrição, odontologia e educação para a saúde) e Educação (educação infantil, ensino fundamental e EJA). Pretende gerar reflexões sobre as atitudes dos adultos no trabalho com a Educação Infantil, no que concerne ao uso do nome das crianças durante seus momentos de interação. As análises apresentadas apoiaram-se no trabalho de Mikhail Bakhtin e foram frutos de observações, entrevistas e convivência com crianças e adultos, em que dialogia, responsividade e alteridade estiveram presentes a todo instante, nos mostrando que as relações, como diria o próprio autor, nem sempre são uma experiência do equilíbrio e da harmonia.
PALAVRAS-CHAVE: educação infantil, responsividade, identidade, relações entre adultos e crianças

Ao tentar identificar concepções e práticas de infância, numa instituição cujo traço central é a complexidade de ações, observar e conhecer as relações entre a infância dos adultos e àquelas concepções, olhar para as relações entre adultos e crianças e crianças e crianças, realizar entrevistas, requereram, de mim, uma atitude responsiva, uma atitude não passiva. De inspiração etnográfica, a pesquisa aconteceu junto aos sujeitos – adultos de diferentes áreas e crianças da educação infantil.
Conhecer os adultos em meio às situações nas quais se deparavam, atuavam e dialogavam com as crianças revelou a existência de uma relação assimétrica entre todos, variando em grau de qualidade e intensidade, pois os falantes não estão em situação de compreensão passiva, mas sempre, segundo Bakhtin (2003, p. 272) esperando “uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução”. Toda enunciação é organizada no exterior do sujeito, “está situado no meio social que envolve o indivíduo” (Bakhtin, 1986, p. 121). Daí que os sentimentos dos adultos sobre infância, a sua própria, e a das crianças, não estão descolados de circunstâncias. “As pessoas aprendem umas com a experiência das outras e descobrem situações, problemas, iniciativas e realidades que nunca puderam imaginar existir” (Kramer, 2003, p. 75).

Um pouco sobre os adultos e o que falam de sua infância e a das crianças da escola
Cada adulto tinha uma forma diferente de contar, olhar e reconhecer sua própria infância, mas a emoção era fato frequente. Enquanto alguns demonstravam dificuldades em falar, dizendo que “vai sair tudo engasgado!” (Entrevista AD[2].9) ou “eu não gosto nem de dizer, fico com vontade de chorar” (Entrevista AD.4), outros demonstraram a rememoração de uma infância feliz: Aiiii! Minha infância!!! Foi muuito boa, muita brincadeira!” (Entrevista AD. 6); Adorei lembrar, foi tão bom...” (Entrevista AD. 2). Encontrar-se com a infância que tiveram, para poucos, foi maravilhoso, mas, para muitos, constituiu-se num desafio: ao final da entrevista, mesmo com a memória de uma experiência, em grande parte, sofrida, resultou num olhar para sua infância “assim, como um desabafo, coisas que eu não tinha oportunidade de relembrar (...), eu gostei!” (Entrevista AD.4); como um momento que valeria a pena ser revisitado por vários motivos: “espero ter contribuído” (com a pesquisa) (Entrevista AD.8).
Entretanto, ao falarem das crianças da escola, especialmente os adultos das áreas de lazer, cultura e saúde, compararam-nas com as de outras escolas (públicas e particulares), reconhecendo seu domínio sobre o espaço, e as vantagens de nele estarem[3], pois “têm uma oportunidade fantástica (...) de estarem trabalhando com as professoras dessa forma (...). Pela área que se tem aqui, dá-se uma contribuição legal para o (...) ensino (...) e para o entretenimento (das crianças)!” (Entrevista AD.8). Mas, aquela ideia de domínio, é julgada de maneiras diferentes. Para alguns, “elas se sentem como se fossem as donas desse espaço”. (Entrevista AD.7), denotando liberdade de ação, alegria, felicidade, infância de verdade, como dito pelo AD.6: “– Eu olho de longe as crianças brincando aqui no parquinho e falo para o pessoal: - Ô vida boa! Não têm preocupação,(...) é só estudar e brincar!”. Para outros adultos, há falta de limites.
Em todas estas posições, nota-se a existência de um ideário de infância, entrecruzado com a idéia de aluno. A escola aparece como um território de promoção do desenvolvimento das aprendizagens. Para alguns adultos, esta seria indissociável da disciplina que regula e reprime; para outros, seria abrir, libertar pelo conhecimento e entreter. Contudo, percebe-se outra interseção, apesar daquilo que cada um considera adequado para as crianças: a autonomia das mesmas, pela qual a escola seria a principal responsável.
Muitos aspectos foram considerados durante a pesquisa para tentar compreender o que estava em jogo nas relações e práticas entre adultos e crianças, concepções de infância, sendo alguns adultos educadores e outros, não. Aqui, neste texto, decidi destacar o uso dos nomes para lançar a reflexão: de que maneira podemos contribuir de forma positiva na construção da identidade das crianças.   
Nomes
            O “nome” na escola tem um papel que vai muito além da sua função de identificar: revela respeito por cada um de seus sujeitos, a começar pelo uso de seus respectivos nomes e do tratamento dado a cada um em meio às interações entre as pessoas que faziam parte do universo da escola – profissionais, estagiários, crianças e os responsáveis pelas crianças.
Entre os adultos da escola, um sentido de identidade muito positivo: as professoras, as estagiárias, as professoras de educação física, as coordenadoras e a secretária eram identificadas e chamadas por seus nomes próprios, entre si e pelas crianças (estas também as chamavam de “professoras”, às vezes). Já as pessoas que trabalham na cozinha, nos banheiros e auxiliando a coordenação, são conhecidas como “seu” ou “dona” (seguidos pelo nome próprio). Da mesma forma, acontecia com as crianças, as quais se identificavam, eram identificadas e chamadas por todos a partir de seus nomes próprios, e nunca por apelidos (quando existiam crianças com o mesmo nome, o sobrenome era incluído, valendo o mesmo critério para os que tivessem nomes compostos; e quando estavam em condição de grupo, o nome da turma era utilizado[4]). Destaca-se que os responsáveis pelas crianças também eram tratados da mesma forma, ou seja, chamados e identificados por seus nomes.
            Os adultos de “fora da escola” – do cinema, das artes visuais, da odontologia, da biblioteca e da recreação[5] – se auto-intitulavam e se apresentavam como “tios” e “tias”. Muitos, ao chamarem as crianças, várias vezes diziam “menino”, “menina”, “chama aquele menino ali!”; alguns, quando em situação de discurso, referiam-se a elas como “moleques” e “molecas”, traço da cultura local. Geralmente, os nomes das crianças eram ditos quando estes adultos queriam chamar-lhes a atenção em situações de bronca ou constrangimento. Mas, havia adultos que usavam os nomes das crianças de outra maneira:

Evento 1: CINEMA (Turma da manhã): “VOCÊ TEM QUE PRESTAR ATENÇÃO!”
O técnico da Cultura e o estagiário de Artes se aproximam dando “Bom dia!”, as crianças respondem: “– Bom dia!”. Eles dizem: “ Bóra[6] de novo!”. As crianças gritam mais forte: “– Bom dia!!!”. Um deles vem com o microfone e diz:
Adulto: – A voz do tio não está boa hoje. Quem gosta de cinema? Qual foi a última vez em que vocês foram ao cinema?
Criança: Nunca! (diz um menino; as outras crianças não respondem).
Adulto: O filme chama “Minhocas”[7], é bem curtinho. (As crianças começam a perguntar do filme, se é da Turma da Mônica).
Adulto: Quem gosta de perguntar aqui?
Criança: Eu falo muito! (diz Paulo Henrique)
Adulto: Qual é o seu nome? (reportando-se a outro menino, aquele que respondera “Nunca!”)
Criança: Gerson.
Adulto: Gerson, você tem que prestar atenção! (Gerson parecia só estar conversando com os colegas; não percebi nenhum movimento ou fala diferente disso). A história hoje trata... (as crianças falam sem parar sobre o filme da Turma da Mônica, impedindo, de certa forma, a fala do adulto. Ele então decide continuar, falando, só que um pouco mais alto: “ Eu vou perguntar depois e vocês não vão saber me dizer!”. (Gerson fica calado; as crianças continuam pedindo que passe o filme da Turma da Mônica). (Diário de campo, 9.mai.2008)
Evento 2: PISCINA (Turma da manhã): “EU TÔ COM VOCÊ!”
(...) As crianças se sentam na borda e já batem os pés na água; uma delas pede que a professora da turma pule logo na piscina e todas gritam: “Professora! Professora! Professora!”. Ela pula para o delírio de todos que gritam: “ÊÊÊ!”. A professora de natação dá bom dia e todos respondem falando bem alto. Ela diz que isso mostra como estão fortes e animados. “ Vamos começar a aula?”; explica a primeira atividade: segurando um flutuador do tipo “macarrão” deverão atravessar o lado da piscina, dois de cada vez, cada qual acompanhado por uma das professoras; chegando à borda, subir e sentar-se. As crianças encorajam os amigos que estão na água gritando seus nomes em coro. (...). Está na vez de Hélio, que está com muito medo. Ela pede que as crianças deem apoio ao amigo e todos gritam batendo palmas no ritmo do nome do colega: “ Hélio! Hélio! Hélio!”: “ Bate a perna, Hélio, eu estou com você!”, a professora de natação diz, segurando-o firme enquanto ele nada. Hélio sorri enquanto saltita após sair da piscina. (Diário de campo, 6.mai.2008)
Nas atitudes diferenciadas dos adultos, a identidade das crianças toma proporções distintas. Os nomes dos meninos, em ambos os eventos, são destacados com sentidos que se opõem: no primeiro, é utilizado para identificar e expor e constranger a criança; no segundo, para identificar e reconhecê-la como capaz e merecedora de atenção. Bakhtin destaca que “qualquer enunciação, (...), constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta” (1986, p. 123), a fala, enquanto amplo “processo de atividade de linguagem tanto exterior como interior (...) não tem começo nem fim”, já que sua natureza é sempre social. Não se pode analisar qualquer comunicação verbal sem aliá-la ao que o autor chama de situação concreta. Esta traz, em si, características não só daquilo que se dá no imediato, mas, principalmente, do contexto social mais amplo. Nesse sentido, enquanto os nomes não se dirigirem a alguém serão apenas unidades da língua, contudo, ao serem endereçados, e assim assumidos, convertem-se em enunciados. As “unidades da língua são neutras, enquanto os enunciados carregam emoções, juízos de valor, paixões. (...) Os enunciados têm sentido, que é sempre de ordem dialógica” (Fiorin, 2006, p. 23). Ainda que seja um nome próprio.
            Bakhtin (2003) destaca que o papel dos outros “(...) para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo também real para mim mesmo), não são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação discursiva” (p. 301). Os participantes não são apenas elementos que fazem fluir um enunciado. Seriam também sujeitos em estado de percepção. Para Vygotsky (2000), percepção e linguagem se interligam, fazendo com que nossa visão de mundo vá muito além de seus aspectos meramente físicos, perceptíveis, tornando-a uma visão de mundo com sentido e significado. Daí que, se significados se constroem, é porque estão acontecendo aprendizagens. Que aprendizagens estarão construindo as crianças sobre si mesmas, e sobre o que é ser adulto enquanto participantes ativas daqueles discursos? O mesmo vale ser perguntado sobre os adultos.
            Transportando tal análise para aqueles eventos, os adultos ao agirem de forma muitas vezes contraditória, parecem expressar uma cisão, divididos entre seres profissionais sérios – leais à neutralidade do sujeito diante do conhecimento, da verdade –, e pessoas que se aproximam, recebem e retribuem. Estas duas partes ora caminham juntas, ora se separam. Contudo, num mundo no qual “uma teoria da formação num contexto em que as letras, as humanidades, são o conteúdo básico do ensino, tem que pensar de que se trata quando falamos de uma relação (...) na qual se põe em jogo o próprio eu” (Larrosa, 2000, p. 51). Nesse “eu” que se apresenta na criança e no adulto (que um dia já foi criança), existem pessoas cujas histórias estão sendo construídas. Muitos adultos entrevistados falaram, direta ou indiretamente, sobre os olhares que receberam na infância e os olhares que acham que as crianças da escola recebem.
            Bakhtin (1986) fala da existência de um “universo de signos” (p. 32), um universo particular no qual “cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento dessa realidade” (ibid, p. 33). O que seria o nome próprio senão um fenômeno da natureza deste universo? Tal como as palavras, que se tecem “a partir de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (ibidem, p. 41), gestos, expressões, olhares, nomes também são veiculados no social, conferindo-lhe lugar também de enunciados. Cada maneira de chamar uma criança, um adulto, mais do parecer um simples fato corriqueiro, pode materializar “mudanças e deslocamentos quase imperceptíveis que, mais tarde, encontram sua expressão nas produções ideológicas acabadas” (ibidem, p. 42).
Apesar dos adultos realizarem distintas formas de chamar, olhar e se aproximar das crianças, e de si mesmos, nem sempre os momentos de interação nesta instituição permitiram que se desse a realização de diálogos que poderiam criar vínculos mais expressivos e afetivos entre todos. Todavia, vale registrar que muitos aspectos podem intervir nesses momentos, como a frequência das atividades junto às crianças, já que nem sempre os profissionais das áreas, fora os da educação, atuam sistematicamente com elas. Entretanto, o que se coloca em jogo aqui, é: se “o falante termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva” (2003, p. 275), o que pode significar ouvir meu nome para lembrar/ensinar o quão feio e chato, e/ou o quão especial e digno de respeito posso ser? Palavras e orações fazem parte do grupo das unidades da língua. Cada oração está cercada pelo contexto do discurso, no interior de um enunciado, gerando atitudes responsivas. Se as “palavras ainda são como cavernas, entre as quais conhecem curiosas linhas de comunicação” (Benjamin, 1995, p. 272), especialmente as crianças, será preciso que alguém traga uma lanterna e ilumine os caminhos. Os elementos expressivos presentes em cada fala, ao valorar relações, também revelam que há sempre um Outro que, ainda bem, pode ser “o único lugar possível de uma completude sempre impossível. Olhamo-nos com os olhos do outro, mas regressamos sempre a nós mesmos e a nossa incompletude” (Geraldi, 2003, p. 44), nos trazendo de volta ao nosso nome, aquele que, quando é chamado, nos faz ser e reconhecer-se num Eu, tomara, sempre em busca de algo especial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4, ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Coleção Biblioteca Universal.
____________. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 3, ed. São Paulo: Hucitec, 1986.
BENJAMIN, W. Obras Escolhidas – II: Rua de Mão Única. 5, ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. (3 ª reimpressão, 2000)
FIORIN, J. L. Introdução ao Pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
GERALDI, J. W. A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção ética e estética. In ___; JOBIM E SOUZA, S.; KRAMER, S. (Orgs.) Ciências Humanas e pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2007. p. 39-56. (Questões da nossa época; v.107).
KRAMER, S. Entrevistas Coletivas: uma alternativa para lidar com diversidade, hierarquia e poder na pesquisa em ciências humanas. In ___; JOBIM E SOUZA, S.; KRAMER, S. (Orgs.) Ciências Humanas e pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2007. p. 57-76. (Questões da nossa época; v.107).
LARROSA, J. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
MEDEIROS, C. S. de. Profissionais de educação, saúde, lazer e cultura que trabalham com a educação infantil: práticas e concepções de infância. Rio de Janeiro, 2009. 156p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
VYGOTSKY, L. S. Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


[1] MEDEIROS, C. S. de. Profissionais de educação, saúde, lazer e cultura que trabalham com a educação infantil: práticas e concepções de infância. Rio de Janeiro, 2009. 156p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

[2] “AD” refere-se ao adulto entrevistado.
[3] A escola fica numa área generosa, em meio à natureza, com muitas árvores, lago, áreas gramadas e animais silvestres.
[4] Sempre no início do ano cada turma decide o nome que terá. A escola define o tema, como nomes de pássaros, naquele ano. Conforme os estudos sobre os mesmos, as crianças falam sobre o que mais gostaram, e este passa a ser o nome que os identifica na escola, enquanto grupo.
[5] Gostaria de destacar que há uma recreadora que é chamada pelo nome, e não por “tia”, da mesma forma que também procura chamar as crianças.
[6] Expressão muito comum na localidade.
[7] Curta-metragem brasileiro em desenho de animação feito em massa de modelar. 

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