quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Cynthia Nunes Milanezi

Responsabilidade e responsividade em textos escritos por alunos do ensino técnico integrado ao médio
Cynthia Nunes Milanezi[1]

Esta reflexão surgiu a partir de uma pesquisa de mestrado que buscou analisar, de uma forma geral, as práticas de produção de textos escritos de alunos do 2º ano de um curso técnico integrado ao Ensino Médio. Por meio de um estudo de caso qualitativo, com observação participante, registros em diário de campo, fotografias e filmagens, buscamos ainda analisar as propostas de produção de textos elaboradas pela professora e a resposta dos alunos a estas propostas. As observações aconteceram de junho a dezembro de 2010. As aulas de Língua Portuguesa aconteciam duas vezes por semana, às segundas e quartas, e duravam cinquenta minutos cada. A turma era composta por 36 alunos, entre 15 e 18 anos.
Durante o nosso período em campo presenciamos sete atividades de produção de textos escritos. Dois textos pertenciam ao modo de organização descritivo, um ao modo narrativo, dois ao modo argumentativo, um tratava-se de um trabalho sobre concordância verbal, nominal e por silepse e, por fim, presenciamos a elaboração de uma carta ao Diretor-Geral da instituição, proposta desenvolvida pela pesquisadora, por solicitação da professora de Língua Portuguesa. Além desses, os adolescentes já haviam produzido um texto descritivo, ao qual não tivemos acesso, e outro do modo narrativo, que também foi analisado na pesquisa de mestrado.
Para Charaudeau (2010), há vários modos de organização do discurso (enunciativo, descritivo, narrativo e argumentativo), os quais variam em função da finalidade comunicativa de um texto. Neste artigo, trataremos apenas dos textos pertencentes aos modos de organização de discurso ou tipos textuais descritivo e narrativo, uma vez que os temas tratados pelos alunos e as respostas dadas às propostas da professora nos surpreenderam e demonstraram que os alunos buscavam assumir a responsabilidade pelos seus dizeres ao responderem às propostas da professora. Para Bakhtin (2003), o texto é um enunciado e os enunciados podem ser caracterizados como individualidades absolutamente singulares. Para ele, “O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 261). Dessa forma, iremos analisar como os alunos se manifestaram nas produções escritas e de que modo eles se constituíram como autores-indivíduos, que dão respostas e assumem seus posicionamentos.
Primeiramente iremos analisar o trabalho com o modo descritivo de organização do discurso. A primeira atividade que presenciamos foi uma descrição de objeto. Os alunos deveriam, como tarefa de casa, elaborar uma descrição para adivinhação, a qual chamaremos de Texto A, que seria lido na aula seguinte. Ao propor a tarefa, a professora leu cinco descrições, de diferentes graus de dificuldade, para que os alunos tentassem descobrir os objetos, o que causou interesse e motivação. Na aula destinada à leitura das descrições, formou-se um círculo e todos leram suas descrições. Foram escolhidos pelos alunos desde objetos comuns do dia a dia da escola (borracha, lápis) e da vida (bola, celular), como alguns inusitados (veneno de cobra, cálcio), os quais nem foram considerados objetos pela professora e por certos alunos. Alguns descreveram o mesmo objeto, porém, de formas completamente diferentes. Um celular foi classificado como detentor de poder e objeto que domina o homem por alguns e por outros foi considerado um amigo para qualquer momento. Ao final das apresentações, a professora chamou a atenção para esse fato e ressaltou que algumas descrições foram mais objetivas e outras mais subjetivas e que, embora alguns tenham descrito a mesma coisa, cada um fez sua imagem do objeto e empregou o seu estilo de escrita, selecionando os substantivos, os adjetivos e a sequência da descrição de acordo com sua preferência.
Já a segunda atividade de descrição que presenciamos tratava-se de descrever a paisagem que os alunos viam da arquibancada da área esportiva da escola, Texto B. Segundo orientações fornecidas por ela, o texto deveria ter, no mínimo, três parágrafos com introdução (situando no tempo e no espaço), descrição (detalhamento com adjetivos e verbos de ligação) e finalização com comentários sobre o que mais lhes chamou a atenção ou surpreendeu.
A partir da leitura dos textos, constatamos que a percepção de mundo e o modo como os alunos significaram os seres e objetos foi bastante diversa. Muitos teceram elogios à área esportiva da instituição, detalharam aspectos do campo, da pista de atletismo e das quadras. Já outros criticaram o estado de conservação da área dedicada aos esportes. Alguns descreveram a beleza das árvores e da piscina de forma poética, mencionado, por exemplo, que a grama parecia brilhar. O conjunto de casas vistas no morro ao redor da escola foi classificado por alguns de favela, enquanto outros apenas chamaram de moradias simples. Também foi levantado o risco de desabamento em dias de muita chuva. Vemos, dessa forma, que uma atividade de observação e descrição levou os alunos a levantarem questões importantes, como a insegurança de quem vive em morros nas grandes cidades e o contraste entre a escola e as casas. Eles não se limitaram à descrição física, mas procuraram pensar em possíveis consequências de uma forte chuva naquele local onde a ocupação não foi planejada e não está sendo vistoriada. No entanto, essa dimensão e os procedimentos discursivos utilizados pelos alunos não foram discutidos após a leitura e correção dos textos.
Assim sendo, a partir das observações feitas na sala de aula, vemos que o trabalho com o modo de organização descritivo ainda necessita ser repensado, porque o ato de descrever pode ter diversas finalidades, não apenas definir. Além disso, uma descrição possui componentes que se configuram segundo determinados procedimentos discursivos e linguísticos, que variam de acordo com os objetivos. Infelizmente, percebemos que na escola os alunos produzem textos como um exercício, para aprender a fazer um determinado tipo de texto e utilizá-lo em outras situações, o que torna a atividade sem sentido para os alunos. Ainda assim, eles surpreendem e se colocam nos textos, mostrando suas preferências, tecendo elogios e fazendo críticas tanto às instalações da instituição, quanto ao conjunto de casas no entorno da escola.
O terceiro texto a ser analisado é uma narração fantástica (Texto C), que foi produzida algum tempo antes de entrarmos em campo, porém, nos foi entregue logo no início da observação participante, antes de ser devolvida aos alunos. As narrativas produzidas pelos alunos trataram de temas variados, como futebol, festas, aventuras pela escola, incêndios e alagamentos, que são comuns na região e muitas vezes impedem a entrada ou a saída dos alunos devido à grande quantidade de água que se acumula ao redor da escola. Outro tema recorrente foi a violência, pois muitos textos falaram sobre agressões, ferimentos e mortes, principalmente de alunos dentro da escola.
Uma aluna optou por se valer de uma narrativa com elementos fantasiosos para tratar de um tema bem real e recorrente nas escolas: o bullying, termo utilizado para descrever atos de violência física ou psicológica. Para Bakhtin (2003), tudo que estuda o humano deve estudar as relações entre pessoas situadas em determinado lugarespaço histórico e cultural, que só pode ser entendido de um ponto de vista dialógico da própria época. Dessa forma, a aluna trata de um problema que tem sido discutido atualmente de forma assustadora em jornais, telejornais e revistas. Nessa narrativa, um aluno que sofria violência psicológica resolveu se vingar e atirou no seu principal agressor, numa professora e, por fim, em si mesmo. Apesar de toda a gravidade da situação, após a retirada dos corpos, as aulas continuaram normalmente.
No mês de abril de 2011, foi noticiado em vários veículos de comunicação um acontecimento semelhante ao narrado acima: um ex-aluno invadiu uma escola municipal em Realengo, Rio de Janeiro, fez vários disparos ferindo mais de 30 alunos e matando pelo menos 13 pessoas. O assassino se suicidou após levar um tiro da polícia. Entre os mortos, estavam dez meninas entre 12 e 14 anos, e dois meninos. O assassino deixou cartas e vídeos e, em vários deles mencionou ter sofrido bullying na escola. Não cabe discutir o que exatamente motivou o ex-aluno a cometer esses crimes, mas sim refletir que os alunos sempre mencionam fatos relacionados com o seu tempo. Suas narrativas, por mais que contenham dados irreais ou fantasiosos, estão ligadas a acontecimentos que indicam sua posição no mundo, tanto em relação ao momento histórico-cultural quanto ao seu ponto de vista.
Outro aluno tratou de um tema polêmico: a sexualidade. Na história contada, ele e os amigos elaboraram um plano para observar meninas trocando de roupa após a aula de Educação Física. Um dos personagens disse que não se importava se o pai descobrisse o plano e achava que até teria apoio dele, que pensava ter um filho gay. Podemos, dessa forma, inferir que um desses personagens até gostaria que o pai soubesse do plano para comprovar que não era homossexual, fato que aparentemente seria importante para o menino, pois ser gay provavelmente traria problemas no relacionamento com seu progenitor. Outrossim, sair do armário é uma expressão utilizada popularmente para indicar a necessidade de uma pessoa revelar sua orientação sexual. Sabe-se que os homossexuais sempre sofreram preconceito em nossa sociedade e a sexualidade sempre foi tabu nas escolas. No início do ano de 2011, o Ministério da Educação elaborou um material com cartilhas e vídeos contra a homofobia, mais conhecido como kit gay, porém a sua distribuição às escolas foi suspensa pela Presidente da República no mês de maio de 2011, devido à polêmica gerada na Câmara dos deputados federais e em toda a sociedade.
Por fim, analisaremos uma narrativa com o tema férias (Texto D), produzida no primeiro dia do retorno das férias de julho. A professora pediu que pegassem uma folha de caderno e desenhassem um retângulo, inserindo em seu interior um substantivo comum, um verbo de ação no pretérito perfeito do indicativo, um advérbio e um adjetivo. Após, convidou os alunos a desconstruir o texto sobre as férias, falando sobre o que não fizeram ou o que gostariam de ter feito, incluindo as palavras do retângulo. Disse ainda que não havia necessidade de título e nem mínimo ou máximo de linhas. Após essas orientações, os alunos elaboraram seus textos, alguns com dificuldade para encaixar nas narrativas as palavras escolhidas.
Para Bakhtin (2003), a relação do artista com a palavra é um momento secundário, derivado, condicionado por sua relação primária com o conteúdo. “Pode-se dizer que, por meio da palavra, o artista trabalha o mundo, para o qual a palavra deve ser superada, [...] deve tornar-se expressão do mundo dos outros e expressão da relação do autor com esse mundo" (BAKHTIN, 2003, p. 180). Para ele, a substituição do conteúdo pelo material destrói o desígnio artístico. Ademais, o todo artístico não pode ser reduzido a uma série de elementos puramente estéticos, composicionais, interligados por leis estritamente estéticas, uma vez que é, na verdade, uma superação de algum todo semântico necessário. No entanto, como mostrar a sua relação com o mundo e superar os elementos linguísticos e aspectos composicionais diante das tarefas de encaixe de palavras, como a que foi explicitada?
O texto que mais chamou a atenção da pesquisadora e gerou comentários da professora foi de um aluno que, ao relatar o que mais gostou de não fazer nas férias, disse que era exatamente produzir textos. Ele disse que não concordava com a exigência por textos perfeitos e enfatizou que adorou não ir à escola, principalmente nos dias das aulas de Língua Portuguesa. Diante do posicionamento do aluno sobre o que não fez nas férias, caberiam algumas perguntas: por que é tão ruim para ele produzir textos? Por que não se sente motivado? Será que outros alunos pensavam da mesma forma, mas não se manifestaram? O que seriam textos perfeitos para ele? E para a professora? Seriam textos sem erros gramaticais, com boa estrutura e com conteúdo? Por que a escola não lhe parece um lugar agradável? Por que não gosta das aulas de Língua Portuguesa?
Esse aluno assumiu total responsabilidade sobre o que disse, correndo riscos até mesmo de ser punido pela principal ou única interlocutora, a professora, que era exatamente quem o aluno queria que lesse seu texto. Por meio do que podemos considerar um desabafo ou uma provocação, o aluno foi corajoso e desafiou a professora a buscar outros meios de trabalhar a produção de textos, pois deixou bem claro que estava em desacordo com o modelo atual adotado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste texto, buscamos analisar como a responsabilidade e a responsividade se manifestaram nas produções escritas dos alunos de uma turma de 2º ano de um curso técnico integrado ao Ensino Médio. Vimos que, apesar de todas as condições impostas pela escola, os alunos surpreendem, sempre encontram espaços para se constituir, relatar suas experiências, seu sentimentos, desejos, o que não gostam e tudo aquilo que faz sentido para eles. “O autor ocupa uma posição responsável no acontecimento do existir, opera com elementos desse acontecimento e por isso a sua obra é também um momento desse acontecimento” (BAKHTIN, 2003, p.176).
Independentemente do modo de organização do discurso utilizado, descritivo ou narrativo, notamos que em todas as produções escritas, havia elementos relevantes e relacionados com a vida autêntica do indivíduo. E como analisar o discurso desses alunos, senão por meio da real unidade da comunicação discursiva: os enunciados? Como assinala Bakhtin (2006, p. 274), “[...] o discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso”. Assim sendo, seja descrevendo objetos ou cenários, seja durante o processo de narrar fatos reais ou imaginários, os alunos se constituem como sujeitos de dizeres responsáveis e responsivos, capazes de se colocar e de assumir riscos.
Acreditamos, desse modo, que as propostas da professora contribuíram para que os dizeres dos alunos viessem à tona, para que pudessem ser desvelados pontos de vista, argumentos, queixas, expectativas e ideias. Porém, notamos uma ausência de análise e discussão acerca dos conteúdos desses textos. Não basta trazer a produção de textos para a sala de aula; é preciso saber como lidar com os enunciados produzidos pelos alunos, promover debates em torno de seu conteúdo e a integrar a Língua Portuguesa com as demais disciplinas. Assim sendo, defendemos que a escola precisa dar ao texto um papel central, pois é por meio deste que a língua se efetiva e se torna potencial.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010.


[1] Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo/Ufes da linha de pesquisa Educação e Linguagens. Técnica em Assuntos Educacionais do Instituto Federal do Espírito Santo/Ifes.

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