quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Luciane Aparecida de Souza

Práticas alfabetizadoras de uma escola pública de horário integral: práticas de transmissão ou interação?
Luciane Aparecida de Souza
Grupo FALE [1]– UFJF

O trabalho ora apresentado trata-se de um pequeno recorte de um dos capítulos de minha dissertação de Mestrado[2] em Educação, no qual é feito o recorte de um problema particular de interação na sala de aula: o das crianças que não conseguem interagir com modelos de leitura que não as consideram interlocutores[3].
Minha trajetória pessoal e profissional vem mostrando-me como o domínio da leitura/escrita, tomado por mim como espaço de luta e poder, tem sido negado às crianças das classes populares no decorrer da história, pois observando a relação entre a leitura e o projeto educacional, vejo que o processo de construção do letramento do povo brasileiro não conseguiu democratizar as condições de acesso para a maioria do povo.  Segundo a definição da UNESCO, analfabetos “absolutos” são pessoas incapazes de “ler e escrever um texto simples e breve sobre fatos de sua vida cotidiana”. Mas há também o que se convencionou chamar analfabetos “funcionais”, aqueles que, ao deixarem a escola, perderam o convívio com a leitura e a escrita e, embora tenham sido capazes, em um certo momento de suas vidas, de ler e escrever, com o tempo foram se tornando incapazes de fazê-lo. “Se acrescentássemos o número de analfabetos funcionais ao dos analfabetos absolutos, o analfabetismo mundial ultrapassaria a cifra de um bilhão de adultos (sendo a maioria mulheres)” (RIO DE JANEIRO, 1993, p. 5). Assim, os CIEPs eram a “esperança” de reverter tais números, proporcionando uma “educação integral” às crianças das classes populares.
Entretanto, as atuais práticas de alfabetização presenciadas nesta escola não vêm contribuindo de maneira eficiente para “formação de indivíduos críticos e criativos”, conforme as professoras colocam em seus planejamentos, uma vez que vivenciei com as crianças atividades de leitura com frases do tipo “Fani tem uma faca afiada” e “Felipe comeu o bife e o bofe”, como em uma das “lições” do 1º ano III.
Por tal caminho, ao contrário de se tornarem críticas e criativas, as crianças vêm se tornando facilmente manipuláveis, treinadas a partir de uma linha de montagem da escola. Entram juntas, caminham juntas e devem chegar juntas, passando pelo canal estreito da “normalidade”. As crianças que fogem à homogeneidade pré-definida vão sendo encaminhadas para outra “homogeneidade”, a homogeneidade dos alunos “com dificuldades”, dos alunos “especiais”. Variam as denominações, porém se mantém o mesmo preconceito em relação às crianças das classes populares.  No entanto, a escola tomada por objeto de reflexão fora pensada [justamente] para romper com tal lógica. Porém, a lição apresentada nos remete à imagem de um a sala de aula como um espaço em que não é permitida às crianças a possibilidade de dizerem o que sentem, de lerem palavras “reais”, de debaterem ideias.   Uma observação muito importante a ser feita nessas reflexões diz respeito às seguintes questões: na escola devemos aprender a escrever o quê? Por quê? E, principalmente, para quem?
Durante todo o período da pesquisa só vivenciei um momento em que esse espaço foi tomado de forma a contribuir efetivamente para o processo de alfabetização das crianças: o Dia do Professor.  Para presentear às professoras, a biblioteca organizou com as crianças cartões para que elas as entregassem ao final do dia:



Esse foi o único momento em que participei com as crianças de atividades em que elas realmente assumiram a condição de autoras, pois até então, não passavam de “meras espectadoras”.  A escola não apresentava aos alunos propostas de escrita que tivessem como objetivo mais amplo o envolvimento com a língua como forma de expressão, em que eles se sentissem autoras. As crianças não tomavam a palavra, fosse ela escrita ou falada, como mediação das relações humanas. Até porque para que “um fale é preciso que o outro ouça”, como aponta Bakhtin (1995), e isso não acontecia...
Para que um fale, é preciso que o outro o ouça e, por sua vez, fale, e o outro ouça, e fale de novo, e assim por diante, pois “o processo da fala, compreendido no sentido amplo como processo de atividade de linguagem tanto exterior como interior, é ininterrupto, não tem começo nem fim. (BAKHTIN, idem, p. 125).

Assim, compreendendo que no processo de interação social vamos elaborando o que é dito, nos remetendo a outras falas ouvidas, e tomando consciência de nós mesmos, do outro e do que é dito, coloquei-me a perguntar: até onde a prática alfabetizadora desta escola contribuía para esse processo dialógico?
Segundo Bakhtin (2003), todo discurso tem como traço essencial (constitutivo) o endereçamento a um destinatário, cujo papel ativo no processo de comunicação não pode ser ignorado, já que determina não só o tratamento a ser dado ao tema, como também o querer-dizer do locutor e o gênero do discurso com o qual fazê-lo. Ainda segundo o autor, esses fatores são determinantes tanto no diálogo cotidiano quanto em obras de construção complexa e obras especializadas. Em ambas as situações, o discurso é uma unidade real, delimitada pela alternância dos sujeitos (falantes/escritores), na qual a individualidade se estabelece em relação aos demais discursos pela posição do locutor e com os quais mantém uma atitude responsiva ativa (concordância, discordância, obediência, execução, objeção, adesão etc), também esperada em relação a esse novo discurso. Nessas circunstâncias, a atividade discursiva é fruto da interação entre os seres, caracterizada por uma dimensão discursiva mediada pela linguagem, no interior da qual se forjam os processos de significação.
Para Bakhtin (1995, p, 94), “se a assimilação ideal de uma língua dá-se quando o sinal é completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento pela compreensão”, para os falantes de uma língua materna o sinal e o reconhecimento estão dialeticamente apagados, uma vez que “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” (idem, p. 95), servindo aos propósitos imediatos da comunicação em uma situação concreta dada.
As atividades que seguem abaixo ilustram como as práticas alfabetizadoras neste CIEP são entendidas como estrutura e análise da escrita. Elas nos mostram como é necessária a substituição de uma lógica enredada em um método que trilha um caminhar “mecânico” e sem sentido para a criança, produzindo uma escrita “escolarizada” e empobrecida. As atividades indicam como esta escola ainda concebe a linguagem como mera aquisição técnica da leitura e da escrita, como se às classes populares bastasse o mínimo.
                                               (Atividade do 3º ano III)

                                              (Atividade do 2º ano III)

Atividades de leitura como as destacadas acima consideram a língua como um sistema abstrato, imutável, separando o sujeito da linguagem, anulando-o em suas experiências individuais no processo de aprendizagem, assim como estigmatizando as variedades lingüísticas, a instituição escolar, contraditoriamente (ou uma aparente contradição, visto que atende aos interesses de uma formação social que impõe tal visão ortodoxa), subverte a reflexão proposta por Bakhtin (1995): a língua materna passa a constituir-se como uma língua estrangeira para seus falantes nativos, uma vez que as formas lingüísticas, desarticuladas e descontextualizadas de uma situação comunicativa concreta, são reconhecidas apenas como sinais, não signos, destituídas, portanto, de um valor lingüístico.
A educação é um processo social em que transformações podem ser geradas através da constituição de discursos e práticas discursivas que criem contextos de reflexão instituídos através de “aprendizagem de estratégias discursivas” (Kleiman, 1998, p. 282). Embora consciente de que uma efetiva transformação social não possa ser operada somente através de tais mecanismos, a autora salienta que tal ação poderia contribuir para a legitimidade de um dizer de um sujeito constituído através de um processo de interação. 
No entanto, atividades de leitura que priorizam a sonorização da escrita, nas quais a criança deve mobilizar um dispositivo desenvolvido pelo processo de alfabetização que lhe permita a transformação dos sinais gráficos em sinais sonoros, supondo que assim, consiga identificar cada palavra, mesmo aquelas cujos significados ela desconheça (como no caso de um aluno do 3º ano III, que deveria fazer uma frase com a palavra “antipático” sem saber o que significava tal termo) – nos fazem (re)pensar os conceitos de linguagem e interação e, principalmente, o sentido da leitura e da escrita dado pela escola.
Segundo Bakhtin (2003), a linguagem é uma forma de interação social que se estabelece entre indivíduos socialmente organizados e inseridos numa situação concreta de comunicação. Nessa perspectiva que Bakhtin (2003) concebe a língua como um fato social, concreto, individualmente manifestado pelo falante. Concebe, assim, a enunciação como realidade da linguagem, inserindo, também, a situação de enunciação como elemento necessário à compreensão das trocas lingüísticas. Como fenômeno de interação, na enunciação, o interlocutor ocupa o lugar de sujeito ativo na constituição do sentido e a linguagem articula o lingüístico, o social e o ideológico. Para Bakhtin (1995, p. 22), “a palavra é o modo mais puro e sensível de relação social [...] É, precisamente, na palavra que melhor se revelam as formas básicas, as formas ideológicas gerais da comunicação semiótica”. Assumida como forma de interação, a linguagem estabelece a relação do lingüístico com o extralingüístico e instancia o discurso, uma vez que toda palavra procede de alguém e dirige-se para alguém. Assim, a realização da palavra como signo concreto é determinada pelas relações sociais, pelos interlocutores e pela situação de produção. 
Ao inserir a enunciação no contexto social mais amplo, o autor não só enfatiza a importância da situação de produção, incluindo os “atos sociais de caráter não verbal”, como explicita a verdadeira substância da língua, ou seja, sua realidade fundamental, constituída pelo “fenômeno social da interação verbal”, que propicia as circunstâncias para a evolução real da língua: “a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta” (Bakhtin, 1995, p. 110).
Embora aspectos relacionados ao ensino-aprendizagem de leitura e de escrita no processo de escolarização formal de crianças não se constituíssem em preocupações para Bakhtin, suas reflexões têm respaldado a discussão em torno do processo de apropriação dessas práticas sociais. Dessa forma, transpondo os pressupostos bakhtinianos para o campo do ensino da leitura e da escrita, percebemos sua grande atualidade, necessidade e viabilidade no que tange, especialmente, à produção do texto/discurso escrito, aspecto que apresenta inúmeras dificuldades tanto para professores, quanto para alunos.
Assim, tomando-se o fato de que a comunicação entre os homens se realiza por meio de discursos coerentes, semântica e pragmaticamente organizados, o aperfeiçoamento das capacidades discursivas escritas necessárias à produção de textos coerentes e adequados a situações de comunicação diversificadas deve ser um dos objetivos do ensino de Língua Portuguesa: desenvolver e aperfeiçoar não só a competência lingüística, mas, principalmente, a competência discursiva. Para tanto, é indispensável propiciar ao aluno o domínio dos recursos lingüístico-discursivos, oferecidos pela própria língua, conduzindo-o à obtenção de efeitos de sentido adequados às diferentes circunstâncias em que realiza suas trocas lingüísticas orais e escritas.
No entanto, para a criança, aprendiz iniciante do sistema de escrita, ser submetida a construções totalmente descontextualizadas como “ai, oi, au, ué, uá” faz com que (re)pensemos nossas escolhas metodológicas.
Certamente, para a realização de práticas alfabetizadoras realmente comprometidas com as crianças das classes populares é necessário – além de uma postura de engajamento e crença dos profissionais da educação – o desenvolvimento de políticas de formação permanente, capazes de nos atualizar adequadamente nos princípios teóricos e metodológicos. Uma condição não pode vir separada da outra, pois as professoras se encontram em uma situação de aprendizes desse complexo processo de aquisição da leitura e escrita.  Darcy Ribeiro, ao ver os CIEPs construídos, atendendo às crianças, filhos e filhas da classe popular, pela qual ele tanto “lutou”, confessou: “Sonhei com paixão e ousadia as utopias maiores que poderia sonhar e não me arrependo. Utopia impossível para os pobres de coração. Mas aí estão concretizadas tantas de minhas utopias” (1986, p. 47).
Não tenho tanta certeza se o sonho de Darcy Ribeiro se concretizou em sua plenitude, da forma que o educador idealizou. Mas essa pesquisa me possibilitou ver que, se ainda não se concretizou, vem construindo outras estratégias, abandonando algumas outras, em um movimento constante que tenta fazer com que o sonho do educador seja uma realidade para as crianças, para as professoras, enfim, para todos e todas que acreditam que as práticas alfabetizadoras de uma escola pública de horário integral possam, de fato, atender às crianças para quem esta escola foi planejada, sonhada.  Ao sair desta escola na condição de pesquisadora, nela permanecendo enquanto professora, encontrei na fala de Boaventura “forças” para continuar acreditando neste espaçotempo, neste sonho, nesta “utopia”. Uma fala que parece mais adequada à realidade que vivemos hoje: “[...] utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de desejar e por que merece a pena lutar” (SANTOS, 1996, p. 323).

Referências Bibliográficas   
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995 [1929].
______. Estética da criação verbal.  4 ed, São Paulo: Martins Fontes, 2003.
KLEIMAN, A.B. A construção de identidades em sala de aula: um enfoque interacional. In: SIGNORINI, I. (Org.). Lingua(gem) e identidade: elementos para discussão no campo aplicado. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1998.
RIBEIRO, Darcy. O livro dos CIEPs. Rio de Janeiro: Bloch, 1986.
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1996.


[1] Grupo de Pesquisa Formação de Professores, Alfabetização, Linguagem e Ensino – FALE
[2] “Centro Integrado de Educação Pública: um espaçotempo alfabetizador em questão” – defendida no ano de 2005, pelo PPGE – UFJF.
[3] O trabalho buscou compreender as práticas alfabetizadoras realizadas cotidianamente em um Centro Integrado de Educação Pública – CIEP – em  turmas que correspondiam ao ciclo inicial da alfabetização: os três primeiros anos do Ensino Fundamental, no Estado do Rio de Janeiro.

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