quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Hadson José Gomes de Sousa

Linguagem, Alteridade e Ensino
Hadson José Gomes de Sousa/UFPA (hadsonsousa@hotmail.com)

Sujeitos de linguagem
Há muito se discute no meio científico, especificamente no campo da Lingüística da Enunciação, em torno do ensino de língua enquanto um momento de inter-relação, comunicação verbal. Para tal, a presença do outro é de fundamental importância neste processo, pois pelo contrário não poderíamos considerar um ato de interlocução, comunicação verbal. A própria ideia de gênero (orais ou escritos), referência científica quando se discute o ensino de língua na atualidade, introduzida por Mikhail Bakhtin em seus apontamentos acerca da funcionalidade da língua concatenada à realidade, traz no cerne o endereçamento do discurso a outrem, como possibilidade única de interação. Para o filósofo da alteridade, Emmanuel Lèvinas, a linguagem, discurso, só se torna possível com a presença do Outro. Este estará sempre “presente”, não como objeto pensado, mas como pessoa, como interlocutor, que exige uma resposta (atitude responsiva).
O sujeito inserido numa metafísica que não considera o Outro como simples objeto de intelecção, objetivação, será sempre sujeito de linguagem, imbricado num jogo eu-tu, onde um não limita o outro; porque pela linguagem o Eu excede as fronteiras do si-Mesmo, de sua ipseidade. Com base neste escopo, a inter-relação, interlocução, dos sujeitos tornar-se-á possível com o uso da língua, dentro de um contexto extra-linguístico, numa situação real de comunicação.
A linguagem desempenha de facto uma relação de tal maneira que os termos não são limítrofes nessa relação, que o Outro, apesar da relação com o Mesmo, permanece transcendente ao Mesmo. A relação do Mesmo com o Outro – ou metafísica – processa-se originalmente como discurso em que o Mesmo, recolhido na sua ipseidade de – eu – de ente particular único e autóctone – sai de si (LÈVINAS 1988, p. 27) (Grifo do autor).

Para Bakhtin (1997a) é o uso que os sujeitos fazem da língua que, nas mais diversas atividades, enceta a relação. De acordo com este autor, as diversificadas esferas de utilização da língua demandam os variados tipos relativamente estáveis de enunciados: os gêneros do discurso. Os enunciados (orais ou escritos), concretos e únicos, produtos da relação responsiva entre os sujeitos, refratam as especificidades de cada situação de comunicação ou esfera da atividade humana. Estas idiossincrasias excedem o plano do conteúdo tematizado e do estilo verbal (utilização individual dos recursos da língua). É por meio deles que a língua ganha funcionalidade e serve de manancial para os diversificados constructos textuais.       
Esse autor negrita, portanto, um percurso que vai das esferas de comunicação à língua, isso implica na produção dos enunciados. A língua, nesta perspectiva, passa de um sistema de signos para subsídio, fonte de recursos, em potencial. O sujeito, a saber, não cria os sentidos, nem tampouco os sentidos linguísticos são suficientes para que se tornem sujeitos de linguagem, eles são reflexos das esferas da comunicação, ad infinitum.
Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso (Id. Ibid., p.279) (Grifos do autor). Dessa forma os sentidos linguísticos perpetrados, são reconfigurados nos enunciados e tornam-se vulneráveis a cada novo enunciado (caráter dinâmico, sócio-histórico, da língua). A interlocução, gênese dos variados gêneros do discurso, ipso facto, é o lugar de realização da língua e, congruente ao pensamento bakhtiniano, de concretização dos sujeitos pela linguagem. Bakhtin adverte que
Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida. A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua (Ibid., p. 282).

Outrossim, Geraldi (2003) clarifica a importância da linguagem para o desenvolvimento do homem. Sem a linguagem, engendrada na relação com outrem, por isso interlocução, os sujeitos não têm como apreender os conceitos necessários para compreensão do mundo e, consequentemente, não podem alterá-lo, modificá-lo discursivamente. Concernente ao ensino de língua portuguesa, ponto que queremos perseguir nesta abordagem, este autor, ao dar à linguagem a importância devida, não sobrepuja esta em detrimento daquela. Esclarece que há mister pensar o ensino norteado pela linguagem que reforça o inacabamento da língua e ressalta seu sentido sociolinguístico.
Pertinente à interação verbal enquanto lugar de produção de linguagem e dos sujeitos pela linguagem, Geraldi adverte aos cuidados que devem ser considerados, ao adotar a tríade: língua, sujeitos e interações como fulcro do trabalho com a língua portuguesa no contexto escolar. Destarte, dar esta gradação ao ensino de língua demanda repensar os sujeitos da aprendizagem, seres nada inexoráveis, porquanto se fazem na interação verbal com os outros, suscitada pelo contexto trans-verbal (para usar a expressão bakhtiniana) – realidade que transcende a finitude dos sentidos linguísticos; passíveis de intelecção sem a exigência de uma atitude responsiva, que desembocaria no sentido enquanto infinitude – plenitude.  
Numa ótica bakhtiniana, o ensino de língua deveria ser perpassado por um conhecimento profundo dos enunciados, unidade e elo inalienável da cadeia da comunicação verbal, concatenados à diversidade dos gêneros discursivos. Caso contrário, o ensino desconecta-se do uso corrente, a língua torna-se apenas um conglomerado de signos e o ensino restringe-se aos conceitos pertinentes a constituição dos signos e a relação entre estes signos, trancafiados na oração, unidade da língua. Tudo isso, sem funcionalidade social; tendo serventia apenas para atividades linguísticas. (...) o estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real da comunicação verbal, também deve permitir compreender melhor a natureza das unidades da língua (da língua como sistema): as palavras e as orações (BAKHTIN 1997a, p. 288) (Grifos do autor).  
Bakhtin, sobretudo, refuta a redução da língua à expressão do universo individual do locutor, a um sujeito cartesiano: individual e indiviso; produtor da palavra e dos sentidos, apartado da inter-relação. Reforça, ainda, que com esta perspectiva subsumem-se as funções comunicativas da linguagem, sai de cena a interlocução. As palavras não são de ninguém e não comportam um juízo de valor. Estão a serviço de qualquer locutor e de qualquer juízo de valor, que podem mesmo ser totalmente diferentes, até mesmo contrários (1997a, p. 310).
Ainda sobre a palavra, ele expõe que, com relação ao locutor, ela apresenta-se de três ângulos díspares: como palavra neutra, palavra do outro e palavra minha. No primeiro, como constructo convencional e arbitrário de um sistema (a saber, o lingüístico); no segundo, como ressonância das vozes que perpassam e constituem o enunciado e, suscitam novos enunciados; por último, como discurso – expressão – dos sujeitos. A expressividade impressa na palavra, no segundo e terceiro ângulos, é consequência do liame com a realidade efetiva, nas circunstâncias de uma situação real de comunicação.
É enquanto propriedade do sujeito e unidade do enunciado individual que a palavra, carregada de expressividade, atualiza-se e ganha novas gradações de sentido na interação. Daí, um trabalho com a língua à luz de uma abordagem estrutural, ou seja, que privilegie somente o primeiro ângulo, centrado em atividades, estritamente, linguísticas, não possibilita a reflexão acerca dos recursos expressivos. Desconsidera, dessa forma, as possibilidades que os sujeitos têm de refletir sobre a linguagem – atividades epilinguísticas. Não há, enfim, lugar (contexto trans-verbal) para a constituição dos sujeitos e da linguagem; também, não há inter-subjetividade. E, consoante com Geraldi (2003), espaço para as operações discursivas, atribuição de sentidos aos recursos expressivos utilizados. O reconhecimento da alteridade, via única para interlocução, desaparece nessa concepção mecânica de ensino.

Linguagem e inter-subjetividade: o papel do(s) outro(s)...
É na relação com a alteridade de outrem que construímos os sentidos necessários para estruturar e concatenar os enunciados. Essa relação não se limita apenas a objetivações, um apreendendo o outro ou o sistema de normas que estruturam a língua (a gramática), mas é relação entre subjetividades, também. Se falar fosse simplesmente apropriar-se de um sistema de expressões pronto, entendendo-se a língua como um código disponível, não haveria construção de sentidos (GERALDI 2003, p. 10). Destarte, a língua nos é dada mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante a comunicação verbal viva que se efetua com os indivíduos que nos rodeiam (BAKHTIN 1997a, p. 303) (Grifo nosso).
Pertinente à construção de sentidos, Bakhtin (op. cit.) ratifica que em qualquer enunciado há a fusão de duas facetas: elementos objetivos e subjetivos. O objeto do sentido, a faceta objetiva (o todo do enunciado) é perpassada pelo que este autor nomeia de intuito discursivo ou querer-dizer – a faceta subjetiva. Essa combinação, atrelada ao contexto trans-verbal, à situação real de comunicação, compõe uma unidade indissolúvel – o enunciado estruturado em um gênero do discurso. O querer-dizer é percebido, captado, pelos locutores, pois interfere definitivamente na composição dos enunciados, na escolha do gênero, sempre relacionados aos enunciados precedentes – a cadeia de enunciados – dentro do contexto trans-verbal.
Mesmo nos enunciados isolados, marcados pelas circunstâncias individuais e pela subjetividade, não desaparecem as marcas dos outros locutores envolvidos na situação de comunicação. Essa interação com os enunciados individuais dos outros suscita e altera o intuito discursivo, individualizado, entretanto impregnado pelas palavras do outro. (...) a experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro. (BAKHTIN op. cit., p. 314-315).
O que Bakhtin nomeia de intuito discursivo ou querer-dizer, para o filósofo Emmanuel Lèvinas é a linguagem pré-originária ou dizer. Na concepção levinasiana o dizer está imbricado no dito, contudo o Outro interfere nesse diálogo do si a si – dizer.  Linguagem inexprimível por qualquer via de expressão; possível, somente, na subjetividade e/ou numa relação inter-subjetiva. Apesar de Lèvinas explicitar a limitação do dito, todavia almeja ultrapassar os limites do enunciado, do conteúdo tematizado. Portanto, o dito não é inexorável semanticamente. Isso levará ao que ele considera ambiguidade; que (...) está no “dito” que freqüentemente tem de “se desdizer” em expressões que assinalam a relação que é não-relação, o lugar que é não-lugar, a memória que é imemorável, etc. (COSTA 2000, p. 160) (Grifos do autor).
De acordo com o filósofo o dizer permeia o dito, mesmo atraiçoado por este; exige uma resposta do Eu (locutor). Descarta-se, portanto, o mero receptor de signos verbais. O dizer é uma maneira de saudar outrem, mas saudar outrem é já responder por ele. Quando Lèvinas afirma que o dizer implica um dito, explicita que o discurso – o dito – entre um eu e outrem decorre do diálogo interior no ser – dizer. Assim, Um “dizer” que é anterior ao mundo e à fala ontologicamente concebidos, anterior à linguagem compartilhada e a seus diferentes jogos, anterior à performatividade dos atos de fala, anterior às interpretações e, portanto, anterior às línguas (op. cit., p. 161) (Grifo do autor).
Assim, a comunhão da linguagem pré-originária dizer – demanda uma relação de inter-subjetivos. Bakhtin (1997a), congruente ao pensamento de Lèvinas, expõe que esta inter-subjetividade, inter-relação e luta com o pensamento alheio, é que constitui e desenvolve o nosso pensamento. Isso interfere definitivamente nas formas da expressão verbal do pensamento – no dito levinasiano. No mais, a inter-subjetividade, para estes autores, ratifica a atitude do eu enquanto interlocutor – que deve responder sempre. (...) o enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal e não pode ser separado dos elos anteriores que o determinam, por fora e por dentro, e provocam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância dialógica (Id. Ibid., p. 321). 
Para Lèvinas, a linguagem, discurso, é fundamentada com a presença de outrem. Neste âmbito, a linguagem engendra a Metafísica da Alteridade – relação entre eu e outrem. Descarta-se nesta relação, qualquer possibilidade de totalização, relação pelo conhecimento – forma ontológica de compreender o dito, que não diz o dizer. Mas, é relação do frente a frente, apesar da Distância (, pois o Eu não envolve o outro, antes o invoca,) possibilitada pelo dizer impregnado no dito, discursodiálogo, que subsume todo egoísmo do Eu: poder de reduzir o Outro ao Mesmo. Portanto é relação com o infinito – transcendente.            
A linguagem, desse prisma, erige um interlocutor, não um receptor inerte, um sujeito cognoscível. Coloca-o face a Mim, exigindo, para tanto, um falante, pois o Outro não é objeto de intelecção. Neste caso, o interlocutor, outrem, é de suma importância neste esquema de comunicação, que deve ser dialético-dialógico (dizer que implica um dito), que subsume a inexorabilidade do esquema clássico (emissão-mensagem-recepção). Irremediavelmente, o eu – interlocutor – é incitado a interagir, responder, ousar dizer o dizer – excedendo o dito. Consequentemente, o interlocutor – Eu – constitui-se pelo reconhecimento do interlocutor – Tu (outrem). O falar consistiria para cada interlocutor em entrar no pensamento do outro, em aí manter-se (LÈVINAS 2004, p. 209). Então, o reconhecimento de per si dá-se pelo reconhecimento do Outro. Atitude responsiva ativa e reflexiva: Responsabilidade.
Consoante com esse panorama, Bakhtin (1997a) também negrita a relevância do papel dos outros para os quais o enunciado é composto e destina-se. Para ele, é somente na relação com os outros, enquanto falantes, e não como ouvintes passivos, que o nosso pensamento torna-se real – tanto para os outros quanto para nós. Numa comunicação verbal os outros, participantes ativos, devem responder e ter uma compreensão responsiva ativa. O locutor elabora o enunciado almejando esta resposta dos outros – interlocutores.
Para Lèvinas, outrem na relação da linguagem, além de ser o destinatário, é invocado como infinito. Pois,
A linguagem (...) não consiste em invocá-lo como representante e pensado, mas é precisamente porque a distância entre o mesmo e o outro, onde a linguagem se verifica, não se reduz a uma relação entre conceitos, um limitando o outro, mas descreve a transcendência em que o outro não pesa sobre o mesmo, apenas o obriga, torna-o responsável, isto é, falante (2004, p. 58).

Bakhtin assevera que
O próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não é o primeiro locutor, que rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas também a existência dos enunciados anteriores emanantes dele mesmo ou do outro – aos quais seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação (1997a, p. 292).

Lèvinas elucida, ainda, que pelo discurso – dito – o eu exprime o conceito de “interlocutor em geral”, próprio de outrem. Pela palavra não somente pensa-se no Outro, todavia fala-se a outrem explicitando tal conceito de si que o tem como pano de fundo. Aquele a quem falo mantém-se atrás do conceito que eu lhe comunico (2004, p. 58); imprime-se, ipso facto, um dinamismo no esquema de comunicação que extrapola a função informativa: o dizível e o indizível não se esgotam nas estruturas linguísticas, signos verbais.
Pensar a linguagem, não como objeto de ensino, como coisa passível de intelecção e ontologismos, mas como meio de fruição tanto para os sujeitos implicados no processo de ensinar e aprender quanto da própria linguagem, em liame com situações reais de comunicação, possível com o uso dos variados gêneros textuais, compôs o escopo desta discussão. Sem a presença do(s) Outro(s), sem interação, portanto, não há linguagem ou possibilidade de comunicação verbal. O ensino que não contempla estas perspectivas gera um verdadeiro apartheid entre língua e vida. Elide a atitude responsivo-ativa dos sujeitos. A assimilação do código linguístico e da leitura restringe-se a um trabalho de mãos e dedos voltado para um sujeito solipsista, nos moldes cartesiano: individual e indiviso; produtor, único criador da língua. No mais, ainda há muito a fazer para que o ensino de língua materna, ou a concepção de linguagem no contexto escolar, tenha como invólucro: interlocutores reais, uma linguagem real e contextos reais de comunicação. Só assim os sujeitos envolvidos neste processo sentirão necessidade da linguagem e de seu uso na vida. Tornar-se-ão sujeitos de linguagem, então.

Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão g. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997a.
BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto. In: ______. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão g. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997b.
COSTA, Márcio Luis. Lévinas – Uma introdução. Petrópolis: Vozes, 2000.
GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LÈVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino S. Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 2004.
__________. Totalidade e Infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.

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