quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Mirian Silva Santos da Costa

Bakhtin na sala de aula: interação entre linguagem e vida
Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC
Autora: Mirian Silva Santos da Costa

Durante muito tempo, a escola desenvolveu a sua prática pedagógica de maneira linear, enxergando o mundo e os sujeitos de forma homogênea. Assim, o currículo, ou melhor, a grade curricular como era chamado antigamente, era composto de diversas disciplinas consideradas indispensáveis à formação do aluno para, no futuro, tornar-se um cidadão de bem para contribuir com o desenvolvimento da sociedade na qual estaria inserido. Numa visão cartesiana, essas disciplinas eram trabalhadas de modo estanque sem diálogo entre elas e muito menos com a vida. Se o trabalho pedagógico era assim desenvolvido em todas as áreas, não se poderia esperar que, em relação ao ensino de língua materna, fosse diferente.
Dessa forma, o trabalho voltado para o ensino de língua materna, também, seguiu o mesmo caminho. A língua, considerada como sistema linear, abstrato e homogêneo, passou a ser ensinada aos alunos, baseada na visão prescritiva da Gramática Normativa como “arte de falar e escrever corretamente”.
Assim sendo, considerada como sistema homogêneo, criou-se um modelo de língua a que o aluno deveria se adequar.  Desse modo, ancorado nessa homogeneidade linguística, o professor começou a trabalhar a língua padrão, não como uma variante da língua de modo geral, mas como única e exclusiva. Assim, passou a transmitir as regras da GN para seus educandos, que deveriam decorá-las, se quisessem se tornar usuários competentes da língua. Toda essa prática era desenvolvida sem considerar o contexto de funcionamento da linguagem nem a sua relação com o mundo e a vida dos sujeitos, algo que foi se perpetuando, chegando aos dias hodiernos.
Dessa forma, essa prática pedagógica no trato com a língua causa um estranhamento para o aluno que, ao chegar à escola com a sua linguagem, se depara com outra, transmitida pelo professor nas aulas de Língua Portuguesa, totalmente desconhecida para ele. Esse estranhamento é algo que Carlos Drummond expressa muito bem em seu poema Aula de Português, em que o poeta dá voz ao aluno que vive essa situação.
 
A linguagem
na ponta da língua,
tão fácil de falar
e de entender.
A linguagem
na superfície estrelada das letras
sabe lá o que ela quer dizer?
Professor Carlos Góis, ele é quem sabe
e vai desmatando
o amazonas da minha ignorância,
Figuras de gramática, esquipáticas
atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé
a língua breve, língua entrecortada
do namoro com a prima
O português são dois: o outro, mistério.

Conforme se observa no poema, o aluno chega à escola com “a linguagem na ponta da língua” e se depara com “a linguagem na superfície estrelada das letras”, a qual é estrangeira, para ele, pois “sabe lá o que ela quer dizer?”. Assim, esse aluno é levado a se sentir ignorante, diante da sua própria língua, e o professor passa a ser o detentor do saber, aquele que tem o domínio da língua, capaz de “desmatar o amazonas da ignorância linguística do seu aluno”. Desse modo, a prosopopéia, a catacrese, a hipérbole , a metonímia e muitas outras figuras de linguagem, junto com a próclise, a ênclise e a mesóclise e outros conteúdos diversos, da forma como são trabalhados nas aulas de língua materna, vão contribuído para aumentar a convicção do aluno de que, realmente, não sabe língua portuguesa.
Assim, diante dessa realidade, o aluno passa a não gostar da sua língua materna e, por conseguinte, Língua Portuguesa se torna uma disciplina crítica, conforme mostram as pesquisas apontadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN:
Desde o inicio da década de 80, o ensino de Língua Portuguesa na escola tem sido o centro da discussão acerca da necessidade de melhorar a qualidade da educação no País. No Ensino Fundamental o eixo da discussão, no que se refere ao fracasso escolar, tem sido a questão da leitura e da escrita. Sabe-se que os índices brasileiros de repetência nas séries iniciais – inaceitáveis mesmo em paises muito pobres – estão diretamente ligados à dificuldade que a escola tem de ensinar a ler e a escrever. (PCN de Língua Portuguesa/Ensino Fundamental p.19)

Reportando-nos, mais uma vez, ao poema supracitado, a língua materna que é ensinada na escola, fora da realidade do educando, o seqüestra para um outro espaço em que ele é obrigado a esquecer “a língua em que comia, em que pedia para ir lá fora, em que leva e dava pontapé, a língua breve, língua entrecortada do namoro com a prima”. Ou seja, a sua própria história de vida, uma vez que, segundo os postulados bakhtinianos, linguagem e vida caminham juntas. Não há como separar a linguagem da vida, pois estão imbricadas, considerando que, para Bakhtin (2006, p. 261), todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem.
Comparando o que postula Bakhtin com a postura da escola quanto ao ensino de língua materna, percebemos que há uma discrepância muito grande. O que observamos, durante a nossa trajetória como professora de Língua Portuguesa e, ainda, hoje, acontece é que muitos professores desenvolvem a sua prática no trato com a língua voltada apenas para a GN, sem nenhuma interação entre linguagem e vida. Assim, os estudantes se sentem sem estímulo para estudar uma língua tão distante deles que lhes é imposta Na realidade, o que a escola deveria mostrar-lhes é que eles são sujeitos produtores dessa língua que é construída na interação. Fazê-los entender, também, que a língua não é, simplesmente, aquilo que está nos dicionários, no livro didático ou na GN, mas que é instrumento vivo de comunicação na vida dos sujeitos que a constrói e a utiliza para realizar o seu fazer; para expressar o seu dizer dentro de um contexto sócio-histórico. E que, fora desse contexto, a língua perde todo o seu sentido. Por isso, assim diz Bakhtin:
O enunciado concreto (e não a abstração lingüística) nasce, vive e morre no processo da interação social entre os participantes da enunciação. Sua forma e significado são determinados basicamente pela forma e caráter desta interação. Quando cortamos o enunciado do solo real que o nutre, perdemos a chave tanto da sua forma quanto do seu conteúdo – tudo que nos resta é uma casca lingüística abstrata ou um esquema semântico igualmente abstrato (a banal “idéia da obra”, com a qual lidaram os primeiros teóricos e historiadores da literatura) – duas abstrações que não são possíveis de união mútua porque não há chão concreto para sua síntese orgânica. (BAKHTIN, 2006, p. 09-10)

Diante do que postula Bakhtin, seria interessante, ainda, mostrar para o aluno que o domínio da língua está relacionado à capacidade do sujeito de adequá-la a cada contexto. Por exemplo, da mesma forma que a pessoa deve ter o bom senso para usar a roupa adequada para cada local e ocasião, o mesmo precisa ocorrer em relação à língua. Sendo assim, se ir à praia de paletó e gravata, é inadequado, o mesmo acontece com uma situação em que alguém queira participar de uma solenidade religiosa vestido de sunga.
Assim, apesar de sabermos que o filósofo russo não elaborou uma teoria da linguagem voltada para a prática pedagógica, conforme alerta Fiorin (2008):
Bakhtin não elaborou uma obra didática para ser ensinada na escola. Não há nela uma teoria facilmente aplicável, nem uma metodologia acabada para análise dos fatos lingüísticos e literários. (FIORIN, 2008, p. 12)

podemos, utilizar muitos dos seus postulados como orientação para nortear a prática pedagógica no que diz respeito ao ensino de língua materna. Assim ele se expressa:
A língua materna – sua composição vocabular e sua estrutura gramatical – não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de enunciação concreta (enunciados concretos) que nós mesmos ouvimos e nós mesmos produzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam. (BAKHTIN, 2006, 283).

Dessa forma, respaldados em Bakhtin, levando os seus postulados para a sala de aula, é possível desenvolvermos uma prática pedagógica voltada para o ensino de língua materna, através da qual se construa um diálogo entre linguagem e vida, evitando, assim, que, diante das aulas de Português, o aluno se sinta tão distante que chegue a acreditar que existe uma dicotomia: o português da escola x o português da vida. E que, para ele, o primeiro é “mistério”.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
GRUPO DE ESTUDOS DO GÊNERO DO DISCURSO – GEGE. Veredas bakhtinianas: de objetos a sujeitos. São Carlos (SP): Pedro & João editores, 2006.
BRASIL – Ministério da Educação/Secretaria da Educação Básica. Parâmetros Curriculares Nacionais/ Ensino Fundamental/ Língua Portuguesa. Brasília (DF), 1998.
FIORIN, Luiz Antonio. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.

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