quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Fabiana Giovani

O que a teoria de Bakhtin me ensina?
Fabiana GIOVANI,
UNIPAMPA (Universidade Federal do Pampa) - Campus Bagé

1-A questão principal
            É consenso admitir que Bakhtin é um dos grandes pensadores do século XX e que muito tem influenciado, principalmente, as ciências humanas neste século XXI. Estamos fazendo referência ao teórico do diálogo. No entanto, falamos de um autor do diálogo que deixa, com sua obra, muito mais questionamentos, possibilidades do que propriamente respostas e certezas. Assim, a partir de um campo de atuação – a educação – nada mais justo do que iniciar esse texto com questionamentos suscitados a partir de minha compreensão ativa diante de suas palavras.
            Ao lidar com educação e, portanto, com ciência, o primeiro questionamento que lanço é: O QUE BAKHTIN ME ENSINA? Questão que pode ser vista de outra perspectiva, no caso, mais coerente: O QUE EU APRENDO COM BAKHTIN?[1]
           
2- Buscando caminhos possíveis de respostas
2.1- O sujeito e a ciência
Com Bakhtin, aprendo a olhar para o outro. Outro que, como objeto das ciências humanas, é o ser expressivo e falante e, por isso mesmo, inesgotável em seu sentido e significado.
            Nesta perspectiva, não posso aceitar uma concepção de ciência que percebe e estuda o sujeito como coisa e aplica a ele uma forma monológica do saber, tornando-o mudo. Vejo na obra bakhtiniana uma insistência no trato do singular, do único, do irrepetível que tem como base uma reflexão sobre a existência do ser humano concreto. Um ser que se percebe como único e que reconhece estar ocupando um lugar único que jamais foi ocupado por alguém e que não pode ser ocupado por nenhum outro.
            O ser que se revela não pode ser forçado nem tolhido. É livre e por isso não apresenta nenhuma garantia. Dessa forma, o conhecimento que nos é possível construir não pode dar nada nem garantir uma certeza, como fato estabelecido com precisão e dotado de importância prática e única para a nossa vida.
            Morin (2009), em suas reflexões, comenta sobre um paradigma de disjunção que, no lugar de fazer a redução do humano ao natural, afirma que tudo o que é humano só é compreendido pela eliminação do que é biológico. Para o autor, eliminar o homem biológico em favor do homem cultural é uma visão igualmente mutilada. Propõe, então, que o paradigma da conjunção é mais completo na medida em que reúne os dois, mostrando que há um circuito ininterrupto entre o que existe de natural em nós e nós mesmos.
            Assim, embora seja posto que as ciências procuram o que permanece imutável em todas as mudanças, Bakhtin me faz aprender que trabalhar com sujeitos da vida real é fazer com que estes se abram livremente ao nosso ato de conhecimento. Não se pode, portanto, transferir esse conhecimento a categorias do conhecimento material. Nas palavras bakhtinianas, ‘a formação do ser é uma formação livre. Nessa liberdade podemos comungar, no entanto, não a podemos tolher como um ato de conhecimento (material)’ (395).
            Consequência disso é que com Bakhtin, aprendo a  me colocar num lugar onde termina a cientificidade exata e começa o que ele chama de heterocientificidade. Morin (2009) nos incita a compreender melhor esse lugar proposto por Bakhtin ao dizer que uma compreensão necessária – desde o fim do século XX – é a de que o mundo não gira sobre um caminho previamente traçado, como uma locomotiva anda sobre trilhos. Tendo o futuro como algo absolutamente incerto, é preciso pensar com e na incerteza, mas não a incerteza absoluta, porque, segundo o autor, sempre navegamos num oceano de incerteza por meio de arquipélagos de certezas locais.
            Enfim, com Bakhtin aprendo que o objeto das ciências humanas é a pessoa que age e se comunica, a pessoa em diálogo. É um ser partícipe ao mundo e não é simplesmente determinada por este mundo, sendo que é este o lugar  em que a pessoa se encontra e toma consciência de si. A sua participatividade ao mundo é condição de sua liberdade – responsável – na teoria bakhtiniana. Nas palavras de Boukharaeva (1997) sobre os estudos de Bakhtin:
A ciência só é possível na base da compreensão ativa da pessoa ativa. Assim, dois princípios fundamentais devem ser encarnados pela ciência: o princípio da pessoa partícipe (a pessoa participa na cultura, na sociedade, e não pressupõe, constrói ou descreve a cultura e a sociedade); e o princípio de contextualização histórica, objetiva, da individualidade partícipe. Daria para expressar a essência do novo tipo de ciência da seguinte maneira: pode se compreender a cultura, a sociedade e a pessoa somente através de concentrações humanas, até demasiadamente humanas, da experiência (BOUKHARAEVA, 1997, p. 47).

            Nesse sentido, com Bakhtin aprendo que compreender a atitude do outro no mundo como necessária atitude criativa é condição da ciência de hoje. Isso porque a atitude de cada um é a personificação da sua verdade, que resulta da contextualização da pessoa, ou seja, fala-se de um sujeito concreto, único, insubstituível, ímpar e com sua verdade e responsabilidade.
           
2.2- O sujeito, o texto e o contexto
            Com Bakhtin, aprendo que sujeitos dialogam através de textos. A interpretação como correlacionamento com outros textos e reapreciação em um novo contexto - seja este meu, atual ou futuro - é a sensação de que saio do lugar. Essa é uma etapa de um movimento dialógico de interpretação no qual dialoga elementos como o ponto de partida (o texto e um movimento retrospectivo), contextos do passado (movimento prospectivo) e antecipação do futuro contexto. Nas palavras do autor:
O texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de texto eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo. Salientemos que esse contato é um contato dialógico entre textos (enunciados) e não um contato mecânico de “oposição”, só possível no âmbito de um texto (mas não dos textos e dos contextos) entre os elementos abstratos (os signos no interior do texto)  e necessário apenas na primeira etapa da interpretação (...). Por trás desse contato está o contato entre indivíduos e não entre coisas (Bakhtin, 2003 p. 401).

Morin (2009) apresenta a ideia de que um conhecimento só é pertinente na medida em que se situe num contexto. Assim, a palavra, polissêmica por natureza, adquire seu sentido uma vez inserida no texto. Reforçando, o texto em si mesmo adquire seu sentido no contexto.
Bakhtin me ensina que não existe a primeira nem a ultima palavra, assim como não há limites para o contexto dialógico. Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo, seja este presente, passado ou futuro, existem massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas que em algum momento, serão relembrados e vivenciados em forma renovada de acordo com o novo contexto. Nada mais é do que a grande ‘festa’ de renovação.
Ao trabalhar, na educação, com sujeitos e, portanto, com vida, estou lidando com precisão e profundidade. Porém, a precisão a qual me refiro não é a mesma de identidade (a=a) como ocorre nas ciências naturais. Trata-se da precisão como uma superação da alteridade do alheio sem sua transformação no puramente meu. Assim, o sujeito ao qual me refiro é um ser incompleto que constitui o outro como o único lugar possível de uma completude sempre impossível. Trata-se de um sujeito que não tem existência própria fora do seu ambiente social e necessita da colaboração do outro para se constituir, para se definir e ser o autor de si mesmo.
Dessa forma, aprendo com Bakhtin a olhar para o sujeito como um ser aberto, inconcluso, suscetível aos discursos vividos e compartilhados com os outros.

3- Considerações finais
            O meu objetivo, aqui, foi pensar sobre o que aprendo com a teoria de Bakhtin, partindo, para esta reflexão, de um campo específico de atuação – a educação.
Inicialmente, espero ter deixado claro que não é possível conceber a educação desvinculada da ciência, até porque é esta que conduz tudo o que ocorre nas práticas reais em sala de aula.
Nas poucas linhas do texto, evidencio que com Bakhtin  - o teórico do diálogo – aprendo a me posicionar no mundo de forma diferente; aprendo a conceber a ciência de forma diferente; aprendo a olhar para o sujeito – outro – de forma diferente; aprendo a olhar para o texto e para o contexto que permeia toda e qualquer relação social de forma diferente...
Porém, esse texto revela uma questão fundamental com relação à teoria de Bakhtin: ela nos suscita muito mais questionamentos, possibilidades do que propriamente respostas e certezas, como foi dito na introdução. Assim, o fechamento provisório é com um questionamento:
Como vivenciar - na educação – a concepção bakhtiniana, principalmente no que se refere ao diálogo? É possível as relações pedagógicas, que ocorrem em termos de dominação e obediência escolares, se transformar em lugares de diálogo? O que fazer? Como fazer?
A busca por uma(s) resposta responsável está aberta!

Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. São Paulo: Ed. da UNESP, 1993.
______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992/2003.
______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Ed. Hucitec, 2004.
______. Discourse in life and discourse in art: concerning sociological poetics. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza. New York: Academic Press, 1976.
______. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. Para uso didático. Versão em português, 1993.
BOUKHARAEVA, Louiza M. Começando o diálogo com Mikhail Mikhailovitch Bakhtin. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1997.
FARACO, Carlos A. Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Criar edições, 2006.
GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. Portugal: Universidade de Aveiro; Campus de Santiago: 2004.
______. Deslocamentos no ensino: de objetos a prática; de práticas a objetos. Apresentado na mesa-redonda “Gêneros discursivos e ensino”, no XIX Seminário do CELLIP. Unioeste, Cascável, 2009.
MORIN, E. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez editora, 2009.



[1] Geraldi (2010) defende que estamos vivendo, na escola, a era da aprendizagem, superando a era do ensino.

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