quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Letícia Santos da Cruz

Reverberações discursivas: interações constituidas a partir da escrita docente
Letícia Santos da Cruz (UFRJ)

            Este texto é um recorte de uma pesquisa que preocupa-se em discutir a formação continuada de professores como uma forma dos mesmos repensarem suas práticas em sala de aula assim como seus processos de escrita e como esses podem influenciar no processo de aquisição da escrita de seus alunos. Parto da experiência vivida por alunas-professoras alfabetizadoras do Curso Extensão Alfabetização, Leitura e Escrita, oferecido pela Faculdade de Educação da UFRJ através do LEDUC (Laboratório de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação) em 2007.2.
            A pesquisa se inscreve teoricamente no campo da análise discursiva, tomando os sentidos produzidos nos portifólios como enunciados, e o dialogismo como ponto de costura entre os gêneros que os caracterizam. Para observar esses sentidos dediquei-me à análise dos enunciados produzidos em 13 portifólios. Tomei-os como gênero discursivo em que as produções das alunas professoras são documentadas de forma coerente, sistematizada e comentadas de forma que o professor formador e as mesmas possam acompanhar as evidências da aprendizagem e não somente como uma coleção de trabalhos.
            Baseada no apontamento de Bakhtin de que o “O gênero corresponde a situações típicas da comunicação discursiva, a temas típicos, por conseguinte, a alguns contatos típicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstâncias típicas. ” (Bakhtin, 2003, p. 293), escolhi a análise do discurso como metodologia. Essa pesquisa reflete o interesse em compreender como as enunciações presentes nas escritas das alunas professoras trazem as marcas de suas formações, memórias e práticas em sala de aula assim como a reverberação das vozes das formadoras. Também abarca um olhar dialógico que me permite confrontar a relação do Eu e o Outro em um campo organizado socialmente. Para Bakhtin, o “Outro é imprescindível para sua constituição” (GEGe 2009, p. 29). A dialogia está, portanto, no embate das entoações, nas mais variadas formas de visão do mundo, no interrogar, responder, questionar; nos atos de fala ou escrita, na apropriação da palavra como corpo social de um singular coletivo.
            Ainda segundo Bakhtin (2003, p. 293) “a expressividade típica do gênero não pertence à palavra como unidade da língua, não faz parte de seu significado, reflete a relação da palavra e do seu significado com o gênero, isto é, o enunciado típico.” Assim sendo, o portifólio como um suporte que carrega em si a possibilidade de englobar o potencial criativo do sujeito, colocando-se de forma autoral, assumindo uma maior responsabilidade pelas experiências de ensino e aprendizagem, assim como, declarar sua identidade, mostrando-se não somente como aluno, mas também como sujeito constituído pelas várias vozes socias que compõem sua aprendizagem e história de vida, reflete bem o que o conceito de enunciado propõe. Nos portifólios pude encontrar o estilo que se caracteriza pelo modo de compor, como dizer algo; o tema que traz em si as marcas ideológicas das escolhas e a construção composicional que são os traços de linguagem e das posições e lugares de onde escrevem as alunas professoras.
            Entendendo que a escrita das professoras reflete e refrata vários enunciados, foi possível  trazer à essa discussão a noção de reverberação. Para propor esta noção, aproprio-me do campo da acústica, visto que minha experiência como musicista coloca-me constantemente em contato com esse campo da linguagem, descreve-o como um processo que ocorre quando duas ondas sonoras são propagadas sob uma superfície refletora, guardando entre si uma pequena diferença de tempo no trajeto. Essas ondas sonoras, ao estabelecerem impacto com a superfície refletora, retornam, também em tempos de mínima diferença, preenchendo o ambiente com várias reproduções de som emitido originalmente. Dentre as características da reverberação, destaco como também de importância para esse contexto o fato de que um som refletido se espalha por todo o ambiente. O sujeito que estiver nesse ambiente será atingido primeiramente pelo som que vem direto da fonte sonora, ao mesmo tempo, o som continua se espalhando pelo ambiente, refletindo-se nas demais superfícies existentes no local indo também ao encontro desse sujeito, chegando com intensidades diferentes, umas chegam mais rápido enquanto outras percorrem um caminho maior para chegar até ele.
            Fazendo uma analogia com esse conceito acústico, tomei as vozes das professoras formadoras como as ondas sonoras propagadas, as alunas professoras como as superfícies refletoras e suas escritas como as reverberações dessas ondas sonoras. Essas, ainda dentro dessa perspectiva, comparadas às demais ondas sonoras que circulam pelo ambiente e retornam às professoras formadoras, são constituídas por suas memórias, as vozes do ambiente de trabalho, a convivência em família, o dia a dia nas ruas de seus bairros, em fim, do cotidiano, do que as constituem como pessoas, profissionais, estudantes, mães, mulheres e tantas outras identidades que assumem. O ambiente é o contexto em que elas estão inseridas, nesse caso, a sala de aula tanto como alunas e enquanto professoras. O sujeito em questão que recebe essa demanda de reverberações é o aluno, seja ele de que instância for, o que justifica a nomeação de alunas professoras.
            No âmbito da sala de aula da Faculdade de Educação da UFRJ, elas são alunas, na sala de aula com seus alunos, as professoras. Assim, como as alunas professoras do curso de extensão estão sendo alcançadas por todo esse processo que também constitui as professoras formadoras, seus alunos também podem ser alcançados por tudo o que através delas for refletido, reverberado. Dessa forma, torna-se possível perceber como as vozes das professoras formadoras são reverberadas e como as alunas professoras se apropriam dessas vozes transformando-as em um discurso autoral. A opção por reverberação e não eco, como nos aponta Bakhtin (2003, p 297) quando diz que “cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva”, está pautada em uma questão puramente vivencial. O eco, em minha experiência como musicista, está relacionado a um som que é propagado, dissipado, mas que não tem um retorno, o que o ouvido percebe é o som real. Assim sendo, dentro de minha perspectiva, o conceito de eco não se faz tão aplicável. Não tenho a pretensão de ir contra o que Bakhtin propõe, mas sim de contextualizar de forma mais adequada a minha pesquisa. Além do mais, seria preciso explorar esta dimensão semântica da escolha do tradutor a partir da língua original, o russo, o que não nos é possível fazer, por falta de conhecimentos desta língua.
            Olhar os portifólios a partir dessas considerações me permitiu compreender como esse suporte avaliativo foi revelador de um percurso que, exposto através de uma seleção significativa de comentários organizados e contextualizados, me trouxeram as seguintes categorias para análise: 1) O dialogismo como costura entre os gêneros – Em que tomei o dialogismo como à costura produtora de novas dialéticas. Entendendo a dialogia de forma vivencial através da autoconsciência e sua relação com as várias consciências que a formam, a escrita das alunas-professoras pôde ser vista de forma dialógica em que elas assumiram o lugar de professoras/personagens e autoras do gênero portifólio em que costuram outros gêneros para dizer algo de si. 2) Reverberações das vozes docentes  Propus-me a, na aglutinação das vozes das professoras formadoras com as vozes da alunas professoras,  perceber quais foram as reverberações evidenciadas nos portifólios, assim como ver se foi possível perceber a fala das professoras formadoras no discurso das alunas professoras e se na prática das mesmas com seus alunos os traços desse aprendizado surgiram.  3) Resgate das trajetórias pessoais como apoio para as práticas pedagógicas  Observei a presença do resgate das memórias pessoais, fossem elas através de fatos selecionados, textos, poemas ou narrativas como forma de expressar o aprendizado de novos saberes e práticas em todos os portifólios. Apresento abaixo uma tabela com os gêneros  encontrados de composição dos portifólios:

Gêneros que surgiram nos portifólios
Quantidade
Monografia
1
História Infantil
1
Diário
2
Descritivo
4
Relato Pedagógico
5

A tabela a seguir traz os recursos utilizados para expressar o investimento das  alunas professoras para compor esse suporte. Houve trabalhos que apresentaram mais de um recurso para essa composição.

Recursos materiais/ investimento no suporte utilizados na
 apresentação dos trabalhos
Quantidade
Apresentação do trabalho encadernado
2
Apresentação do trabalho em pasta catálogo
8
Apresentação do trabalho em envelope
2
Apresentação em bloco montado com cartolina
1
Utilização de fotos do ambiente de trabalho
3
Utilização de fotos de cunho pessoal
2
Utilização de anexo das atividades realizada na prática profissional
9
Trabalhos sem nenhum anexo de fotos ou atividade da prática profissional
2
Outros anexos (certificados de seminários, reportagens, textos de revistas, folders de espetáculos, cartuns, tirinha, etc)
2
                       
            Em cada um dos trabalhos lidos, foi possível identificar marcas de suas autoras, sendo que em alguns, os padrões da escrita universitária com citações, referenciais teóricos e com tom prescritivo fazia-se presente. Apresentavam os conteúdos adquiridos e narravam o que havia sido aplicado enquanto conteúdo. Talvez pela tradição histórica em relação à forma como os trabalhos acadêmicos devam ser feitos. Nesse sentido, houve o dizer sobre um determinado conhecimento, ancorado em uma forma pré-determinada de se dizer.
            Por outro lado, a formatação universitária não impediu que as professoras que optaram por esse caminho falassem de suas experiências. Elas puderam chegar a suas próprias conclusões em relação às suas práticas, ao que o curso trouxe de novo e em relação ao resgate de suas formações acadêmicas. Escrever sobre a prática não está posto em nenhum lugar. O que é para ser dito só pode ser dito por quem está na prática, nesse caso, as alunas professoras. Elas falaram de si na prática e da prática em si. Disseram como se percebem enquanto professoras no movimento do cotidiano escolar e como esse cotidiano as alterou. “No homem sempre há algo, algo que só ele mesmo pode descobrir no ato livre da autoconsciência e do discurso, algo que não está sujeito a uma definição à revelia, exteriorizante.” (Bakhtin, 2010, p. 66).
            Minha pesquisa demonstrou que houve a instauração do diálogo entre as professoras formadoras nas ações de formação desenvolvidas e que a reverberação dessas ações estavam refletidas nesse suporte assim como suas memórias trouxeram em si novos significados. Posso assim afirmar baseada nas evidências trazidas a partir dos fragmentos destacados em todo o meu trabalho, onde são trazidos relatos das contribuições das falas das formadoras, os acréscimos produzidos pelos conteúdos apresentados, as memórias despertadas por momentos vivenciados durante o curso e como tudo isso pôde constituir suas escritas.
            Quando as professoras alunas trazem em suas escritas reflexões de suas práticas e sobre essas práticas, sem com isso atribuir a essas reflexões um caráter prescritivo no sentido de dizer ao outro como fazer e o que fazer, elas estão com isso apropriando-se de suas próprias vozes, se constituindo assim autoras de seu dizer. A interação entre as professoras formadoras e as alunas professoras pôde ser identificada a partir da retomada que elas fazem dos conteúdos abordados no curso e como os mesmos puderam contribuir para o desenvolvimento de suas práticas. Essa interação traz também a tona uma reflexão em relação ao lugar de suas escritas e como essas marcam suas identidades como professoras. A visibilidade dada a essa prática através dos portifólios trouxe a elas a noção de pertencimento do movimento de suas aprendizagens  e da de seus alunos. Elas não estavam falando para outros professores, mas sim, para si como uma forma de agregar novas consciências. Essa visibilidade, imagens externas, constitui o sujeito e o acolhimento dessas imagens forma a autoconsciência. Para as alunas professoras, autoras de seu próprio dizer e fazer, a imagem externa produzida através de seus escritos constitui o acolhimento das vozes que fazem parte do cotidiano da Universidade a partir do momento em que estamos pensando a formação continuada do professor como parte do processo de construção de suas identidades. 

Referência Bibliográfica
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003
BAKHTIN, M. A personagem e seu enfoque pelo autor na obra de Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Problema da Poética de Dostoiévski. 5ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso - GEGe – Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos. Pedro & João Editores. 2009.

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