quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Flávia M. N. Motta

Adultos e crianças: notas sobre a responsabilidade e o respeito
Flávia M. N. Motta
Departamento de Educação e Sociedade/UFRRJ
flavia_motta@hotmail.com

A proposta deste ensaio é exercitar a análise de algumas situações do campo de pesquisa[1] operando com os conceitos de responsabilidade (Bakhtin, 1993) e respeito (Sennett, 2004).
Não é de agora que os conceitos bakhtinanos têm fornecido elementos interessantes para as pesquisas em ciências humanas. Amorim (2003, p.12) fala da polifonia e do caráter conflitual e problemático das pesquisas. O discurso como acontecimento torna-se unidade de análise pelo confronto que adquirem os diferentes valores presentes para a produção de sentido. Nas ciências exatas cabe ao pesquisador contemplar um objeto para conhecê-lo. Ao contrário das ciências humanas, não se estabelece um diálogo entre pesquisador e objeto (Freitas, 2002, p. 24). Fazer pesquisa em educação, assumindo o caráter histórico-cultural do seu objeto tem exigido que o conhecimento seja tomado “como uma construção que se realiza entre sujeitos”. (Freitas, 2003, p.26).
O texto de pesquisa retrata, quando assume seu caráter polifônico, uma dimensão dialógica, posto que nosso objeto é um sujeito que fala e, falando, produz sentidos. (Motta, 2010, p.66). A enunciação ocorre num lugar específico que lhe fornece materialidade e concretude. Pois, “quando o homem é estudado fora do texto e independentemente do texto, já não se trata de ciências humanas (mas de anatomia, de fisiologia humanas, etc.”). (Bakhtin 1992, p.334). Assim, considerando a palavra dita pelo sujeito de pesquisa, é preciso fazê-lo a partir de seu lugar de produção, seu contexto social e entendê-la como dirigida a um outro. Emudecer o sujeito, tomá-lo como objeto, nega sua enunciação como texto.
O pesquisador que observa as interações entre adultos e crianças num contexto institucional – em nosso caso, o escolar – ocupa o lugar de terceiro no diálogo, o sobredestinatário que permite ao enunciado ecoar para além da situação imediata e se inserir num fluxo interminável de comunicação. “Compreender é, necessariamente, tornar-se o terceiro num diálogo...” (Bakhtin, 1992, p.355). E ainda:
Todo diálogo se desenrola como se fosse presenciado por um terceiro, invisível, dotado de uma compreensão responsiva, e que se situa acima de todos os participantes do diálogo. (...) O fato decorre da natureza da palavra que sempre quer ser ouvida, busca a compreensão responsiva, não se detém numa compreensão que se efetua no imediato e impele sempre mais adiante (de um modo ilimitado). (1992, p. 356).

Quando tratamos do conceito de responsabilidade em Bakhtin, precisamos relacioná-lo à responsividade que se traduz na forma como os sujeitos concretos se colocam diante das situações com as quais lidam. Assim, se reflete no lugar que o sujeito ocupa na existência e implica na alteridade sob a forma de resposta ao outro. A reponsabilidade refere-se ao assumir os próprios atos, enquanto a responsividade é o responder a alguém ou a alguma coisa. O agir individual relaciona o que há de próprio e coletivo nas interpretações pessoais, posto que o sujeito compreende o mundo a partir de sua realidade histórica e cultural, mas ainda assim o faz em seus próprios termos, sendo portanto, responsável por sua ação. Para Sobral “trata-se de uma mediação que depende da apropriação específica que cada sujeito, singular que é, faz pessoalmente da interpretação (objetivação) coletiva do mundo dado” (2008, p. 227).
Como decorrência, temos que a responsabilidade vai se manifestar em situações concretas, através de práticas sociais inseridas em grupos cuja leitura de mundo influencia e limita as ações possíveis. O sujeito tem, então, uma orientação no seu pertencimento para decidir de acordo com os valores de seu contexto, mesmo quando sua ação se opõe a eles. A responsabilidade se manifesta no ato, pois vai demandar uma decisão que implica pesar um sistema moral abstrato e decidir, a partir dele, em cada situação concreta, materializando-o numa ética.
... a validade das decisões do sujeito (que são sempre éticas, inclusive apesar dele mesmo) depende não de abstrações, mas da articulação, junção, entre regras éticas (se assim se pode dizer) e as circunstâncias concretas da vida concreta, do processo situado de decisão, do agente: o sujeito, ao agir, deixa por assim dizer uma “assinatura” em seu ato e por isso tem de responsabilizar-se pessoalmente por seu ato e se responsabiliza por ele perante a coletividade de que faz parte - e, em última análise, perante a humanidade como um todo! (Sobral, 2008, p. 233).

O que faço e a quem respondo quando faço são a dupla face do agir humano. O sujeito ético, portanto, está em relação com o outro de forma dialógica. Essa tensão entre a solidão individual e a submissão ao coletivo se dá pela responsabilidade situada no agir concreto de um sujeito em relação de responsividade aos outros.
Relacionar o ato ético ao respeito implica em procurar nele a dimensão de reconhecimento do outro numa postura dialógica que o toma como tão importante quanto o próprio agente da ação. Nesse ponto, começamos dar concretude aos conceitos abordados nas interações observadas entre adultos e crianças, antes, porém, vejamos de que forma o respeito está sendo tomado.
No livro Respeito: A formação de caráter em um mundo desigual (2004), Sennett aborda a relação entre desigualdade e respeito e suas consequências no contexto da contemporaneidade neoliberal. Embora seu foco recaia sobre as relações entre adultos a partir das desigualdades sociais, destaca a categoria da “dependência adulta” como fator aviltante e de demérito e afirma: “a caridade em si tem o poder de ferir; a piedade pode gerar desprezo; a compaixão pode ser intimamente relacionada com a desigualdade” (p.55).
Diferencia ainda respeito próprio e reconhecimento pelo outro, sinalizando a dificuldade de um diálogo equilibrado diante das fronteiras da desigualdade. O que nos permite reflexões sobre a relação desigual entre crianças e adultos onde a fronteira entre autoridade e autoritarismo parece oscilar permanentemente.
Na relação entre desiguais é importante, segundo Sennett (2004), aprender a não expor o privilégio de forma a parecer desrespeito. O status, que por sua vez é a “... posição de uma pessoa na hierarquia social.” (p.71) não deveria anular o reconhecimento que implica necessariamente numa mutualidade.
Na análise do sociólogo a conquista de respeito na contemporaneidade é produto de ações vistas numa lógica capitalista e que relacionam o valor pessoal à capacidade produtiva dos sujeitos. Ser capaz de cuidar de si mesmo, de forma a não “... se tornar um fardo para os outros...” (p.82); o autodesenvolver-se, transformando potenciais em capacidades e habilidades realizadas; “retribuir aos outros” (p. 83), elementos forjados na valorização de uma “ética do trabalho” (p. 131) que torna o respeito às crianças mais um elemento a ser construído após tornar-se adulta, inserido entre os outros componentes do vir-a-ser.
Como se manifestavam no cotidiano das instituições educacionais que atendem crianças na baixada fluminense ações de responsividade, responsabilidade e de respeito? Para levantar essa questão trago situações de campo das escolas observadas. Nos encontros do grupo de pesquisa, dois aspectos foram objeto de debate: o que há de específico no contexto observado – os pertencimentos da instituição, sua história, a ação dos seus agentes e as políticas públicas governamentais que incidem sobre ela; e o lugar do pesquisador – que ao se inserir no contexto pesquisado, não deve perder de vista que o olhar é o enquadramento de algumas cenas, pois, como sugere Berger (1999) “a maneira como vemos as coisas é afetada pelo que sabemos ou pelo que acreditamos” (p. 10). Nessa perspectiva, a análise que aqui apresentamos é uma interpretação da realidade pesquisada, fruto de nossa responsividade aos sujeitos observados e pela qual assumimos nossa responsabilidade.
Ressaltamos que não nos cabe julgar o trabalho dessa instituição, mas, escutarmos as falas do cotidiano dessas crianças e desses adultos e reconhecermos que a educação escolar não é uma prática isolada; as situações aqui descritas podem ser reconhecidas em outros contextos sociais, culturais, econômicos e geográficos. Essa realidade pode ser tomada para uma discussão das práticas de institucionalização das crianças e da educação de uma forma mais ampla.
As vozes que aqui trazemos foram coletadas ao longo da curta existência de nosso grupo de pesquisa. O material faz parte do banco de dados recolhidos em escolas públicas, de Nova Iguaçu e Mesquita, municípios da Baixada Fluminense/RJ. Para a realização das observações, prática pedagógica e pesquisa estiveram juntas. A entrada no campo, inicialmente, fez parte do estágio supervisionado em educação infantil e ensino fundamental. As situações observadas tornaram-se objeto de debates no grupo de pesquisa e ao término, os cadernos de campo foram digitados e revisitados, buscando com isso as recorrências, os ditos e não ditos, as relações de poder, as práticas de construção e de omissão de identidade e outros aspectos relevantes presentes no texto. Diante do material, algumas categorias emergiram do campo, entre elas, a imposição de uma visão religiosa do adulto às crianças que apareceu em vários relatos dos cadernos de campo. Durante as aulas a professora frequentemente mencionava:
Se você fizer bagunça, Jesus vai brigar; menino agitado Jesus não gosta. As próprias crianças em suas falas associavam o “bem” e o “mal” a comportamentos agitados e a atitudes calmas. Pelo que percebo a professora fomenta nos alunos essa ideia de ser bonzinho associado a Deus. (Caderno de campo, 26/10/2008).

             Nascimento et ali (2011, p. 75) se perguntam: “Esses relatos poderiam ser considerados como indícios de que as crenças religiosas estão servindo de base para a formação do caráter das crianças matriculadas nessas instituições?” Tomar a própria religiosidade como referência parece significar a negação da diversidade e um descompromisso com a legislação, pois:
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. (...)
 § 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino. (BRASIL, Lei 9475/97, que altera a LDB 9394/96).

A atividade da criança - que poderia ter uma gama de explicações, inclusive o desejo de movimentar o próprio corpo, o que muitas vezes não é levado em conta nas ações educativas - é respondida pelo adulto de maneira a negar o que expressa e é objetivada no termo agitação, que perde o valor comunicativo, não suscitando diálogos que busquem entendê-la. A resposta do adulto conduz à entidade suprema e monológica do Criador (dentro de uma perspectiva cristã que é tomada a despeitos das outras religiosidades possíveis), com o qual não há contra-argumento possível. Não ser gostado por Jesus implica numa exclusão grave, especialmente em comunidades marcadas por um evangelismo crescente da população. Qual resposta da criança poderia dar continuidade a este diálogo? Assim, embora numa atitude responsiva – o adulto responde à ação da criança lida como um texto – a responsabilidade toma um desvio e assume uma característica de desrespeito à lei e à própria criança. Tenta fazer dela um personagem de um enredo que não estava posto a priori e ainda, afasta o professor do diálogo, não é a ele que a criança incomoda em sua agitação, mas a uma divindade.
Em outra observação percebemos que o corpo infantil é objeto da ação do adulto sem que lhe seja fornecida sequer uma explicação:
Depois de guardado o jogo de montar e a massinha, a professora pede que todos sentem no chão e façam uma roda. As crianças obedecem  e Ruam fala: - nós juntos 1,2,3! E todos começam a cantar a música do coelho da páscoa: "1 ovo, 2 ovos, 3 ovos assim". Enquanto as crianças cantam, a professora e a monitora pegam cadeiras e vão levantando cada criança e colocando-as nas cadeiras, que passam a ocupar o espaço da roda que antes era delimitado pelas crianças que estavam sentadas no chão. Chama atenção que as crianças não são convidadas a sentarem-se, seus corpos são conduzidos para essa ação e assim permanecem até o fim da atividade. (Caderno de campo, 25 de março de 2010).

Que desigualdade se expressa nessa ação? Em um primeiro momento a professora pede que as crianças de posse de seus corpos, mudem de lugar, mas em seguida, tanto o corpo como a cadeira são tomados como objetos, manipulados em busca de uma ordem. Criança objetificada, incapaz de expressar domínio sobre seu próprio corpo, sujeito passivo da ação do outro, a quem sequer se destinam as palavras, mas um silêncio repleto de significados monológicos.
O sujeito é constituído pelas significações culturais produzidas a partir do momento que se relaciona produzindo sentidos. Assim, só existe significação quando ela ocorre para o sujeito e o sujeito penetra no mundo das significações quando é reconhecido pelo outro. Essa relação é mediada por um elemento semiótico, logo, a coisificação do corpo infantil exemplifica o que a instituição espera das crianças nesse momento: que se permitam transportar, depositar, se deixem estar. Nesse contexto a responsividade fica comprometida pelo não reconhecimento da criança como destinatária de uma resposta ativa do adulto. A relação entre desiguais reforça o desrespeito e o sujeito da ação – adulto – revela uma concepção que nega o outro em sua diversidade, transformando-o em extensão do seu próprio desejo.
Pablo: Tia, cortei um brinquedo!
Professora: Não é para recortar brinquedo, volta lá e recorte as letras do seu nome! (Caderno de campo, 28 de maio de 2010).

Ao refletir sobre a ação de desconsiderar o brinquedo recortado surge a questão: com que criança esse adulto interage? Aparentemente sua fala se dirige a um outro em um único de seus papéis sociais, o de aluno. A professora assina seu ato, assume a responsabilidade, dirige-se à criança numa atitude responsiva, porém parece haver um desencontro nesse diálogo; a criança buscando no adulto o reconhecimento de sua especificidade: crianças brincam! Mas, numa lógica que se insere na produtividade contemporânea, a professora reage redirecionando a criança ao seu papel naquele contexto, o papel de aluno. Não há mutualidade possível nessa relação.
Muito se tem produzido no campo dos estudos da infância, mas ainda parece haver um longo caminho a ser percorrido para que essas produções se façam ecoar nas práticas cotidianas. Kramer (2011, p.394) fala de um preconceito contra a criança que é negada em sua alteridade como um dos achados do campo de pesquisas com a infância escolarizada. Negar ao outro seu lugar é buscar fazer das interações uma prática monológica, é eliminar do ato ético uma das suas facetas na responsividade, afinal, na interação com as crianças, a quem o sujeito responde? Por fim, trata-se da aniquilação do respeito que deveria fundar-se no reconhecimento mútuo.

Referências Bibliográficas:
AMORIM. M. A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e epistemológica. In FREITAS, M. T., JOBIM e SOUZA, S. e KRAMER, S. Ciências Humanas e Pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo, Cortez, 2003, p.11-25.
_____. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas. Cadernos de Pesquisa, n. 116, p. 7 – 19, julho/2002.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
_____. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza da edição americana Toward a philosophy of the act. Austin: University of Texas Press,1993. (tradução destinada exclusivamente para uso didático e acadêmico).
BERGER, J. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco,1999.
FREITAS, M. T. A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana da construção do conhecimento. In FREITAS, M. T, JOBIM e SOUZA, S. e KRAMER, S. Ciências Humanas e Pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo, Cortez, 2003, p.26-38.
_____. A abordagem sócio-histórica como orientadora da pesquisa qualitativa. Cad. Pesqui. [online]. 2002, n.116, pp. 21-39.
KRAMER, S. Infância e pesquisa: opções teóricas e interações com políticas e práticas. In KRAMER, S e ROCHA, E (Orgs.). Educação Infantil: enfoques em diálogo. Campinas, SP, Papiris, 2011, p.385-396.
MOTTA, F. M. N. De crianças a alunos: transformações sociais na passagem da educação infantil para o ensino fundamental. Tese (Doutorado em Educação)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
Nascimento, A. et alii. "Menino agitado Jesus não gosta!" religião e ética em escolas de educação infantil. In Nascimento, A. (Org.) Educação Infantil e Ensino Fundamental: contextos, práticas e pesquisas. Rio de Janeiro: Nau editora, EDUR, 2011, p. 69-80.
SENNETT, R. Respeito: A formação de caráter em um mundo desigual. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Sobral, A. O Ato “Responsível”, ou Ato Ético, em Bakhtin, e a Centralidade do Agente SIGNUM: Estud. Ling., Londrina, n. 11/1, p. 219-235, jul. 2008.
_____. Ato/atividade e evento. In: BRAIT, B. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005, p. 11-36.


[1]O GRUPIs – Grupo de pesquisa infância até os 10 anos da UFRRJ, é coordenado por Anelise Nascimento e Flávia Motta. O presente trabalho refere-se à pesquisa Educação da infância de 0 a 10 anos: a experiência de ser criança no cotidiano das instituições educacionais.

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